A Vida Imitando a Arte. Um Conto de Fadas Moderno. Parte 6.

Um conto erótico de Ménage Literário.
Categoria: Heterossexual
Contém 8042 palavras
Data: 08/12/2025 14:40:10

As mãos dela tremiam. Ele se aproximou mais um passo, sem tocar, mas perto o suficiente para aquecer, para acalmar, para que ela se sentisse segura.

— Me deixa te tirar disso, Lisa. Me deixa te dar outra vida. Uma vida limpa. Só sua. Sem dono. Sem medo.

Monalisa sentiu os olhos arderem.

— Por quê? — Sussurrou. — Por que você faria isso por mim?

Vágner respirou fundo, a encarando com ainda mais determinação, a centímetros de seu rosto.

— Porque você sempre foi importante pra mim. Desde criança. Porque ninguém … ninguém deveria só sobreviver. — Ele se afastou, com lágrimas nos olhos. — E porque eu perdi você uma vez. Eu não vou perder de novo.

A palavra final pairou entre eles como promessa e sentença:

— Vem comigo. Deixa-me te mostrar que a vida pode ser bem mais incrível e divertida do que aquela prisão que você chama de casa.

Continuando:

Parte 6: “No Fogo Cruzado Por Você”

O barulho dos ônibus ao longe, o fluxo de gente descendo a ladeira, vendedores recolhendo suas barracas … tudo parecia distante para Monalisa. Ela olhava para Vágner como se tivesse sido arrancada de um sonho, ou de um pesadelo. O convite dele ecoava em sua mente, apertando o peito, gerando ondas de ansiedade que ela mal conseguia processar.

Vágner esperava. Os olhos firmes, mas cheios de preocupação. Ele tinha acabado de abrir sua alma, de expor sua intenção mais profunda. E agora ela precisava responder. Mas não conseguia.

Monalisa engoliu seco, virando o rosto de leve, um gesto quase imperceptível, mas carregado de dor.

— Lisa? — Vágner sussurrou, dando meio passo à frente.

Ela respirou fundo, sentindo a garganta arranhar. Queria dizer “sim”, queria acreditar que podia simplesmente ir. Mas a voz de Vinícius ecoava dentro dela: “Sem mim, você não é nada. Não tenta voar que eu corto suas asas”.

Aquilo ainda prendia seus movimentos, mesmo quando ele não estava perto.

— Eu … eu preciso pensar, Vágner. — Ela finalmente conseguiu dizer, a voz baixa, quase trêmula. — É tudo muito … de repente. Eu não posso simplesmente largar tudo e ir embora assim, do nada. Eu nem sei mais o que é certo ou errado.

Ele franziu a testa, frustrado, mas tentando controlar a própria ansiedade.

— Lisa, não é largar tudo. É se salvar.

Ela balançou a cabeça, desviando o olhar para o chão.

— Você fala como se fosse fácil. Mas você não entende … — Ela apertou a bolsa contra o corpo, como se fosse um escudo. — ... o Vinícius … ele … eu não posso só desaparecer. Ele não vai deixar. Você sabe disso.

Vágner deu um passo mais perto, abaixando um pouco a voz.

— Eu sei que ele te machuca. Sei que te prende numa dívida que nem é sua. A tia Socorro me contou tudo. Você não merece isso, Lisa. Nunca mereceu.

Monalisa sentiu o coração acelerar, uma mistura de vergonha e alívio por alguém finalmente ver o que ela sempre escondeu.

— E tem mais. — Ela completou, sem olhar para ele. — Eu … não quero ser um peso na sua vida. A gente acabou de se reencontrar. Você tem seus planos, sua vida. Eu não posso chegar assim, trazendo problemas. Eu nem confio mais em mim, Vágner … como é que eu vou confiar nos outros?

A dor naquelas palavras bateu forte nele. Vágner respirou fundo, segurando o impulso de abraçá-la.

— Você nunca vai ser um peso pra mim, Lisa. Nunca. Eu esperei anos por uma chance de te ver de novo. E eu vou te ajudar, com ou sem comunidade, com ou sem fuga. Só … me deixa estar do teu lado. Me deixa tentar.

Ela voltou a olhar para ele, olhos marejados, mas sem derramar lágrimas. Estava cansada até para chorar.

— Me dê um tempo, Vágner. Só isso. Eu prometo que vou pensar. De verdade.

Ele assentiu devagar, engolindo o medo de perdê-la para sempre.

— Tudo bem. Só não demora. Lembra do que eu disse: sexta-feira. Eu vou tirar a tia Socorro. A gente sai rápido, sem chamar atenção. Se você vier … eu te levo comigo, Lisa. Eu te tiro daquela vida.

Um silêncio pesado caiu entre os dois, cheio de promessas e incertezas. O ônibus dela virou a esquina. Vágner tocou de leve em seu braço, num gesto contido, quase reverente.

— Você merece ser livre, Lisa.

Ela fechou os olhos por um instante, sentindo o vento quente da tarde e o peso da própria hesitação. Quando subiu no ônibus, olhou pela janela uma última vez. Vágner continuava lá. Firme. Esperando.

O caminho até em casa pareceu mais longo do que o normal. Monalisa mal prestou atenção no trajeto, sua mente estava presa nas palavras de Vágner, em cada detalhe, cada silêncio, cada verdade inconveniente que ele teve coragem de dizer.

Mas, por mais que tentasse se concentrar naquilo, o nome de Vinícius latejava dentro dela como uma ameaça. Ele perceberia que algo estava diferente? Que ela estava … vacilando?

Ao entrar em casa, Monalisa respirou fundo. O ambiente estava silencioso, escuro, exatamente como ela havia deixado naquela manhã corrida. Tirou os sapatos, deixou a bolsa no sofá, abriu a geladeira e encarou sem fome o resto do jantar da noite anterior.

Vinícius ainda não estava lá. E isso, por si só, já era estranho. Ele nunca avisava aonde ia, mas sempre aparecia. Sempre.

As horas foram passando. Vinte e duas. Vinte e três. Meia-noite … Monalisa se sentia inquieta, andando pela sala, arrumando coisas já arrumadas, checando o celular, escutando qualquer ruído no corredor. Nada.

Quando finalmente decidiu ir para o quarto, exausta demais para continuar acordada, ouviu três batidas firmes na porta. O tipo de batida que fazia o coração acelerar antes mesmo de se aproximar.

— Quem é? — Ela perguntou, a voz presa na garganta.

— Sou eu, Monalisa. Abre.

Aquele timbre. Aquele tom. Era Joca, seu sogro e credor.

Ela abriu a porta com cuidado, apenas o suficiente para vê-lo. O homem estava ali, de braços cruzados, postura firme, expressão fechada, mas seus olhos carregavam algo diferente: pressa. Preocupação. Ares de quem não estava ali por cortesia.

— Boa noite, senhor Joca. — Ela murmurou, surpresa pela visita tardia.

Ele não respondeu de imediato. Não pediu para entrar. Nem fez menção de cruzar a porta. Falava dali mesmo, como quem entrega um comunicado oficial.

— Seu namorado vai ficar um tempo fora. — Disse, direto como sempre. — Resolver uns problemas. Coisa de homem. Você não precisa se preocupar com nada.

Monalisa levou um segundo para processar.

— O … Vinícius? Aconteceu alguma coisa?

Joca continuou impassível.

— Se tudo correr bem, em pouco tempo ele manda buscar você. Manda te chamar pra ficar com ele. Mas, por enquanto, fica tranquila. Não faz perguntas demais.

Ela sentiu o estômago revirar. Não era normal. Nada daquilo era normal.

O homem ajeitou o chapéu, encerrando o assunto.

— Boa noite, Monalisa. Cuida da casa. E de você.

Sem esperar resposta, virou e desceu a viela com passos pesados, desaparecendo noite adentro. Monalisa ficou parada, segurando a porta entreaberta, como se o mundo tivesse conspirado para lhe dar uma noite de paz.

Vinícius sumido. Joca dando aviso na calada da noite. E as palavras de Vágner ecoando: “O Vinícius está com os dias contados, Lisa”. Um arrepio subiu por sua espinha.

Ela fechou a porta devagar, encostando a testa na madeira, tentando respirar. Não era paranoia. Não era exagero. A coisa era grande. Muito maior do que ela imaginava. Já estava acontecendo. E Joca acabara de confirmar, sem perceber, o que Vágner já tinha contado: A vida de Vinícius, e a dela, estava prestes a virar de cabeça para baixo.

{…}

Algum tempo antes:

Fernando se virou novamente para o técnico:

— Existe alguma forma de desbloquear o arquivo? Mesmo que não seja ética ou não ortodoxa?

O técnico sorriu, adorava uma boa intriga, uma fofoca fresca:

— Ter, até tem, mas para o meu bem, para evitar problemas futuros, já que a corda sempre rompe do lado mais fraco, eu vou apenas te guiar pelo processo, combinado? Faça você mesmo.

Fernando entendeu a situação do rapaz. Estava praticamente o ordenando a cometer um crime, a quebrar as regras de proteção de dados da empresa.

— Ok! A responsabilidade é toda minha. Vamos em frente.

O rapaz deslogou do computador de Fernando, limpou sua presença no sistema, e abriu caminho para que o patrão fizesse login.

Não foi difícil, com a orientação adequada, contornar as barreiras do sistema. Em menos de cinco minutos, a Cinderela finalmente tinha nome, RG e endereço.

O computador finalmente liberou o acesso à área restrita, e Fernando sentiu um frio na espinha quando o nome “Nazaré Krüger” apareceu vinculado à ordem de bloqueio do perfil de Monalisa.

As explicações do técnico foram precisas para burlar o firewall da empresa, nada sofisticado, mas suficiente para abrir brechas em protocolos internos.

Fernando estava confuso, sua cabeça fervia de perguntas. Por que diabos Nazaré bloquearia a ficha de uma simples funcionária? E por que justo a Monalisa?

Ele não conseguia esperar. Levantou-se decidido, pegou o celular e caminhou pelos corredores como se estivesse pisando em brasas. Queria respostas. Precisava delas.

Mas, antes que chegasse à sala da madrasta, uma das secretárias se levantou da mesa.

— Senhor Fernando, seu pai pediu para o senhor ir até ele. Agora.

Fernando gelou.

— Agora? — Repetiu, estranhando. — Eu só preciso falar com a senhora Nazaré por um instante.

— Seu pai foi claro, senhor. Ele pediu que o senhor fosse imediatamente.

Era impossível ignorar aquele tom. Mesmo irritado, Fernando respirou fundo e mudou a rota e ao abrir a porta do escritório de Thomas, viu algo que fez um alerta silencioso acender dentro de si: Nazaré estava ali. E Getúlio também. Um de cada lado do pai. Como duas sombras perfeitamente posicionadas.

Thomas estava recostado na poltrona grande, pálido, cansado, a idade e o estresse finalmente visíveis no rosto endurecido.

— Sente-se, Fernando. — Pediu, apontando para a cadeira à frente.

Fernando obedeceu, embora não conseguisse afastar a sensação de que havia entrado numa armadilha cuidadosamente montada.

O pai respirou fundo, como se precisasse de coragem para continuar.

— Meu filho … — Ele começou, voz grave, arrastada. — Eu estou … no limite.

Era raro ouvir Thomas admitir fraqueza. Fernando se ajeitou, apreensivo.

— Foram décadas segurando esta empresa, tomando decisões difíceis, enfrentando crises, escândalos, concorrência desleal … — Thomas massageou o peito, como se algo apertasse por dentro. — Mas o corpo cobra, Fernando. A cabeça cobra. Eu não tenho mais a resistência necessária para lidar com o ritmo destrutivo deste trabalho.

Uma pontada de preocupação tomou forma no rosto de Fernando. Ele sabia que o pai vinha reclamando de cansaço, estava doente já há algum tempo, mas não esperava que aquele momento chegaria tão de repente.

— Pai … o senhor quer se afastar? Eu posso assumir mais responsabilidades. Eu já tenho feito …

Thomas levantou a mão, cortando o filho.

— Eu sei do seu esforço. E sei que está comprometido. Mas você ainda não está pronto.

— Pai … — Fernando tentou argumentar, mas o olhar duro de Thomas o silenciou.

— Você é brilhante, Fernando. Mas é impulsivo. Emocional demais. Ainda toma atitudes sem medir consequências.

Uma breve pausa.

— Para liderar uma holding como a nossa, é preciso frieza. Estabilidade. Domínio. E você ainda está no processo de se tornar esse homem.

Fernando sentiu o estômago afundar. Nazaré mantinha as mãos sobre o ombro do marido, postura impecável, expressão sutilmente vitoriosa. Getúlio observava tudo com o típico olhar opaco de quem não sente nada além da própria conveniência.

Thomas continuou:

— Por isso, até que você esteja completamente pronto para assumir tudo … haverá uma presidente interina.

Fernando se inclinou para a frente, o coração acelerando.

— Quem?

Thomas inspirou fundo, firme, definitivo:

— Nazaré.

A palavra caiu como uma marreta. Fernando piscou algumas vezes, como se tivesse ouvido errado.

— A Nazaré? — Repetiu, incrédulo. — A … minha madrasta? A sua esposa?

— Sim. — Thomas respondeu sem hesitar. — Ela é a pessoa mais preparada, mais estável, mais centrada para ocupar esse cargo até que você esteja pronto.

Nazaré inclinou a cabeça com modéstia ensaiada.

— É apenas temporário, querido. — Disse ela, com um sorriso suave. — Só até você estar preparado para herdar o império que nasceu para comandar.

Mas o olhar dela, firme, frio, seguro, mesmo disfarçado, dizia outra coisa: Você nunca vai tomar meu lugar.

Thomas finalizou:

— A decisão é final. A partir do próximo trimestre fiscal, Nazaré assume oficialmente todas as responsabilidades da presidência. E você trabalhará diretamente com ela e Getúlio, finalizando o que precisa aprender.

Nazaré sorriu. Getúlio cruzou os braços, satisfeito. E Fernando … apenas se resignou, acatando o comando firme do pai.

Ele não sabia ainda, mas naquele exato momento, a guerra entre ele e Nazaré tinha começado.

Fernando inspirou fundo, absorvendo o peso das palavras do pai. Havia ali um momento simbólico, uma passagem de bastão que ele sempre soube que chegaria, mas não daquela forma. Mesmo assim, seu semblante permaneceu sereno. Ele olhou primeiro para Thomas, depois para Nazaré e Getúlio, figuras presentes em praticamente toda sua vida adulta e grande parte da infância.

— Pai … — Começou, a voz calma, firme, madura. — Se essa é a sua decisão, eu a respeito. E mais do que isso: eu entendo. Você dedicou a vida inteira a essa empresa. Construiu algo enorme, muito maior do que qualquer um de nós, e … se está dizendo que precisa desacelerar, então é porque realmente chegou a hora.

Thomas baixou os olhos, tocado. Getúlio, ao lado, assentiu com um sorriso orgulhoso. Fernando continuou:

— A Nazaré sempre esteve com o senhor. Sempre. Desde antes de vocês se casarem, quando ela ainda era sua secretária. Eu cresci vendo o quanto ela cuidava de tudo, da empresa, da casa, da nossa família. Nunca tive motivos para desconfiar dela. Pelo contrário … sempre me senti acolhido.

Ele virou o rosto para a madrasta, e o sorriso dele era verdadeiro, sem hesitação.

— Se o senhor acha que ela é a pessoa certa para conduzir a empresa nesse momento, então eu vou confiar nessa decisão. Eu confio na capacidade e no caráter dela. E confio no senhor, pai. Sempre confiei.

Thomas respirou pesado, emocionado. Nazaré manteve seu sorriso cálido, mas por dentro se alimentava daquela confiança como recurso estratégico.

— Meu filho, você não sabe como me deixa mais tranquilo ouvindo isso. — Thomas disse, com a voz embargada.

Fernando apenas assentiu, se levantando e apoiando a mão no ombro do pai.

— Eu estou aqui para aprender. E para assumir quando o momento chegar. Até lá, vocês têm meu respeito e minha colaboração total.

Getúlio bateu de leve no braço dele, orgulhoso como um pai postiço:

— Esse é o Fernando que eu ajudei a criar.

Nazaré completou, impecável:

— E eu farei o meu melhor para honrar essa confiança, querido.

A reunião se encerrou com um clima quase familiar, exatamente como Nazaré planejara. Mas Fernando saiu dali com um ponto na cabeça que só cresceria depois: O bloqueio de Monalisa.

Fernando respirou fundo antes de bater na porta da sala de Nazaré, poucos minutos após a reunião com o pai. Ele não vinha com confronto no coração, não era do seu feitio. Mas tinha perguntas, e era isso que pretendia trazer. Ele bateu na porta e se anunciou. Quando entrou, encontrou a madrasta organizando alguns documentos, a postura impecável, o sorriso suave … aquele mesmo sorriso que, desde que ele era criança, sempre lhe passava segurança.

— Podemos conversar um minutinho? — Ele perguntou, fechando a porta atrás de si.

Nazaré ergueu os olhos, ajeitando os óculos na ponta do nariz com precisão cirúrgica.

— Imagino que seja por causa da decisão do seu pai, não é? — Ela disse, caminhando até o sofá de couro. — Eu entendo perfeitamente se você estiver inseguro com a ideia. Foi repentino até para mim …

Fernando levantou a mão, interrompendo com gentileza.

— Não, Nazaré. Sobre isso, está tudo bem. Mesmo. — Ele sorriu, sincero, espontâneo. — Meu pai confia em você. E Getúlio sempre esteve ao nosso lado. Eu cresci vendo o quanto você se dedicou a essa empresa e à nossa família. Então … se foi essa a decisão dele, eu aceito. E confio. De verdade.

As palavras atingiram Nazaré como um soco silencioso. Era realmente sincero. A manipuladora experiente não esperava aquilo. Ela esperava resistência, talvez indignação. Mas não confiança absoluta.

Seu sorriso, por um segundo, saiu do automático e se tornou verdadeiro apenas pela estranheza da sensação.

— Fico muito feliz em ouvir isso, Fernando. De verdade. Significa muito.

Fernando assentiu, respirou fundo e então endireitou a postura.

— Mas não é sobre isso que eu queria falar.

Nazaré inclinou a cabeça, mantendo o semblante neutro.

— Então … do que se trata?

Fernando retirou o celular do bolso e abriu o arquivo que havia encontrado. Seus olhos mantinham a calma, mas havia firmeza.

— Você bloqueou o perfil de uma funcionária. A Monalisa. A mudança de setor dela explica alguma coisa, mas por que bloquear completamente o acesso aos dados? E por que isso não estava na agenda de transição?

Nazaré sentiu o impacto. O peito apertou numa irritação instantânea. Ele estava indo longe demais, e rápido demais. Mas sua expressão permaneceu imóvel. Suave. Treinada.

— Bloqueei? — Ela perguntou com uma leve confusão, estudada. — Deixe-me ver.

Fernando entregou o celular. Nazaré analisou a tela com calma, devolveu o aparelho e soltou um suspiro.

— Ah … é a funcionária que foi transferida para a filial. — Explicou, com a segurança de quem já tinha uma resposta pronta muito antes da pergunta existir. — Isso é completamente normal.

Ela caminhou até a própria mesa, abriu um terminal no computador e puxou outro arquivo.

— Olha só. — Ela girou o monitor levemente para ele. — Mesmo procedimento com o Marciano, e ele foi transferido semana passada. A equipe de RH só bloqueou o perfil para iniciar o espelhamento dos dados para a sucursal. Nada demais. E como eu sou a diretora, acaba sendo minha a assinatura virtual.

O nada demais saiu tão firme que quase soou como uma ordem. Fernando observou, cuidadoso. Ele conhecia Nazaré. Conhecia seu zelo. Sua organização. Suas justificativas sempre impecáveis. E nada ali parecia, à primeira vista, suspeito.

— Entendi … — Ele disse, respirando mais leve. — Agradeço por explicar. Eu só … fiquei com receio de ter algum problema com a funcionária. Ela é sempre tão dedicada.

— Não se preocupe com isso, querido. — Nazaré colocou a mão no braço dele, com aquele toque maternal perfeitamente dosado. — Eu cuido de tudo. Pode deixar.

Fernando sorriu, aliviado. Ele acreditava nela. Sempre acreditou.

— Obrigado, Nazaré.

— Por nada, querido. — Ela se despediu, já votando sua atenção para os documentos na mesa.

Fernando saiu. E só quando a porta se fechou, Nazaré permitiu-se respirar fundo, não de cansaço, mas de risco calculado. Ele estava prestando atenção demais. Descobriu muito rápido.

Ela apertou os dedos contra a mesa, olhando para a tela apagada.

— Monalisa … você deveria ter ficado invisível como eu planejei.

Um brilho frio cruzou seu olhar. O jogo estava ficando delicado. Mas Nazaré sempre gostou de desafios, e pediu que a secretaria chamasse Getúlio.

Um pouco frustrada, ela caminhava de um lado para o outro da sala como um felino enjaulado, inquieta, a mão crispada no queixo. A máscara de doçura havia caído, agora só restava a de calculista.

— Droga … — Resmungou baixo, mas carregada de veneno. — Ele já descobriu as informações de contato daquela faxineira … Ele vai atrás dela, Getúlio. Eu conheço o Fernando … ele não vai deixar isso barato.

Getúlio entrou e trancou a porta por dentro. Sem dizer nada, envolveu Nazaré pela cintura e a puxou para perto, domando a inquietação dela.

— Nós sabíamos que isso podia acontecer, meu amor. — Murmurou, a voz grave, tranquila. — O Fernando é obstinado. Sempre foi. Ele herdou isso do Thomas.

Nazaré levantou a cabeça devagar, os olhos faiscando com pânico e esperança misturados:

— Mas as coisas estão saindo do controle mais rápido do que eu imagine

Getúlio abriu um sorriso enviesado — perigoso, quase divertido — e soltou um suspiro satisfeito.

— A milícia já está pronta.

— Pronta?

— Para tomar aquela comunidade.

Ele se afastou alguns passos, indo até a janela e observando a cidade lá embaixo como se fosse território dele.

— A operação foi toda montada pelo seu primo, Nazaré. O major não está apenas cumprindo seu papel … Ele está se tornando uma força real. Respeitável. Daquelas que até políticos se curvam.

O sorriso que ele devolveu à amante era quase debochado.

— E você foi brilhante ao irrigar os “sonhos ambiciosos” dele.

Nazaré ergueu o queixo, orgulhosa, mas ainda com a respiração acelerada.

— Então … o que você está sugerindo?

Getúlio voltou para perto, segurou o rosto dela com uma mão e falou quase sussurrando:

— Estou dizendo que existe uma chance enorme, enorme, de a tal Monalisa desaparecer da vida do Fernando para sempre.

Ela piscou, surpresa.

— Desaparecer? Como?

Ele deu de ombros, como quem comenta o tempo.

— Uma operação de tomada de território. No carnaval. Gente, indo e vindo. Alvos sendo trocados. Pessoas “sumindo”… acontece.

Ele aproximou a boca do ouvido dela:

— E antes que você pergunte: não, nem o nome Krüger intimida mais o major. Ele está grande demais. Forte demais. Os dias do Joca e da contravenção dele estão contados, e tudo vai ruir de vez na sexta.

Nazaré deixou escapar um sorriso lento, venenoso, satisfeita como uma rainha vendo o tabuleiro se movimentar a seu favor.

— Então … é isso, meu amor. — Completou Getúlio. — Se o Fernando quiser encontrar a Monalisa … vai ter que correr. E talvez nem isso resolva.

Ele selou a frase com um beijo demorado, enquanto Nazaré fechava os olhos, finalmente aliviada. O futuro, para ela, nunca pareceu tão promissor.

{…}

Fernando não dormiu na quinta-feira. Nem por um segundo. Estava vigilante, de tocaia. Precisava encontrá-la. Eduardo estacionou o carro em um dos becos laterais da comunidade, e dois guarda-costas ficaram posicionados em veículos diferentes, cada um observando uma entrada da comunidade. Uma tocaia discreta, mas bem-preparada. Fernando não desgrudava os olhos da passagem principal.

A quinta passou devagar.

Monalisa foi ao trabalho. Voltou. Mas sempre cercada de gente. Sempre passando rápido demais. Fernando precisava tomar cuidado com Vinícius, com pessoas ligadas a ele.

A ansiedade de Vágner crescia. Suas mensagens para Monalisa continuavam sem respostas.

Na sexta-feira de carnaval, a comunidade parecia um vespeiro acordado. Era véspera de desfile. E aquilo significava caos organizado.

Carros alegóricos gigantescos, coloridos e manobrados de forma malabaristica entre postes, barracos e fios pendurados. O cheiro de tinta fresca misturado com o perfume doce de espuma de carnaval. Crianças correndo pintadas de purpurina. Passistas ajustando sandálias. Ritmistas batucando em qualquer superfície enquanto testavam resistência de pele, aro e baqueta. Os gritos animados ecoavam entre os becos:

— Cuidado com o carro do abre-alas!

— Puxa mais pra direita! A comissão de frente vai passar!

— Cadê o adereço das baianas?

— Ô João, desce esse troço com calma, rapaz!

Moradores emprestavam mangueiras para limpar as rodas dos carros. Outros ajudavam a empurrar. Era o coração da comunidade pulsando, aquecido, vibrante, transformado em samba, suor, promessa e sonho.

E foi nesse cenário que Monalisa desceu do ônibus. Cansada. Tensa. O pensamento dividido entre o silêncio de Vinícius e o pedido de Vágner. Mas seus passos diminuíram quando avistou aquele carro preto parado em frente à sua casa.

E então ela o viu. Fernando. Ele saiu do carro no exato instante em que os olhos dela o reconheceram. Era como se ele estivesse aguardando apenas aquele movimento, aquele passo, aquele olhar.

O mundo dela encolheu em um estalo. Não havia mais carros alegóricos, mais batuque, mais gritaria. Só ele ali, vindo em direção a ela.

Monalisa paralisou. O coração apertou. O susto veio antes de tudo.

— Senhor Fernando? — Ela murmurou, sem ar. — O que você está fazendo aqui?

Ela olhou em volta, inquieta. Qualquer pessoa poderia vê-lo. E aquilo era perigoso demais. Ele parou a poucos passos, os olhos ardendo em um misto de alívio, exaustão e urgência. A voz saiu baixa, intensa, carregada de uma verdade direta:

— Você não sabe o quanto eu procurei por você.

O rosto dela tremeu. Por um instante, Monalisa esqueceu até de respirar. Mas era perigoso: um olheiro, um vizinho fofoqueiro, um capanga de Vinícius … qualquer um poderia ver Fernando parado ali.

Num impulso mais forte que a razão, ela abriu a porta de casa com velocidade e praticamente o arrastou para dentro.

— Entra! Entra logo! — Sussurrou em desespero, trancando a porta atrás deles.

A respiração dela estava acelerada, quase em pânico. Fernando observou cada gesto, o tremor das mãos, o olhar varrendo as janelas, o pânico escondido.

— Monalisa … — Ele deu um passo na direção dela, como se quisesse tocá-la, mas se conteve.

— Você está louco, Senhor Fernando? — Ela rebateu, o coração disparado. — Você não pode aparecer aqui desse jeito! Você sabe quem é o Vinícius? Sabe o que ele pode fazer com você? Comigo? Se alguém te viu entrar …

— Eu não me importo. — A frase veio firme. Inabalável.

Aquilo a silenciou. Por alguns segundos, só se ouvia o barulho distante do samba vindo da rua. Monalisa desviou o olhar, envergonhada, pressionando as mãos uma contra a outra.

Fernando respirou fundo, reunindo tudo o que segurou por duas semanas.

— Eu vim porque não consigo parar de pensar em você.

Ela congelou.

— Desde aquela noite do baile da empresa … desde que você sumiu daquele jeito.

Monalisa sentiu o rosto esquentar de imediato, como se alguém tivesse acendido uma luz dentro dela.

— Não fala assim … — Ela falou baixo, quase engolindo as palavras, encolhendo os ombros. — Aquilo foi só … só uma noite. Uma fantasia. Um erro.

Fernando sorriu, dando um passo mais próximo.

— Foi tudo, menos um erro.

A voz dele era baixa, contida, sedutora.

— Eu procurei por você no salão inteiro. E no dia seguinte. E no outro. E no outro.

Monalisa se retraiu.

— E então … — Ele continuou — Achei seu cordão com a aliança. Você deixou cair quando saiu correndo. Eu carreguei aquilo comigo o tempo todo, achando que um dia você voltaria para buscar.

O coração dela bateu forte demais.

— Mas aí … — Ele riu, mas sem humor. — A vida tratou de devolver para você na marra. Naquele ensaio. Quando aquele desgraçado colocou a mão em você … Ah, eu te juro, Monalisa, foi a primeira vez na vida que eu tive vontade real de machucar alguém.

Ela abraçou os próprios braços, arrasada por dentro. Tudo aquilo era forte demais. Bom demais. Perigoso demais.

— Senhor Fernando … você não sabe o que diz. Eu … eu não sou esse tipo de pessoa que você imagina. Eu não tenho nada de especial. Eu não pertenço ao seu mundo.

A voz dela falhou.

— Você está só … encantado. Isso passa. Eu não sou mais que um capricho.

Ele não aceitou aquilo. Nem por um segundo.

— Um capricho? — Ele aproximou-se mais, agora a menos de um passo dela. — Você acha que eu entregaria minha cabeça numa bandeja, vindo aqui, no território do seu namorado, por causa de um capricho? Acha que eu teria passado duas semanas sem dormir direito, tentando te encontrar, por causa de um capricho?

Ela abaixou o olhar. Fernando, então, ergueu o rosto dela com um toque leve no queixo. Gentil, cuidadoso, como se ela fosse feita de cristal.

— Eu senti alguma coisa naquela noite. E eu sei que você sentiu também.

Monalisa respirou fundo, quase um soluço.

— Não tenta me convencer do contrário. Eu vi no teu olhar. Eu senti quando você encostou em mim.

Ela mordeu o lábio, tentando conter as lágrimas.

— Não posso … não posso sentir nada por você.

— Por quê? — Ele perguntou, a voz suave, mas determinada.

Ela se afastou um passo, abraçando o próprio corpo como um escudo.

— Porque aqui … nesse lugar … nesse mundo … mulher que sonha demais acaba se dando mal.

A frase cortou o ar. Fernando sentiu a tristeza dela, a dor.

— Eu tiro você daqui. Hoje. Agora. — Ele disse de repente. — Se você quiser, eu tiro você daqui e te protejo do que for.

Monalisa apertou os olhos, como se aquilo doesse.

— Não posso …

— Pode.

— Eu não sou esse conto de fadas que você inventou.

— Eu sei quem você é. Eu sinto que te conheço desde sempre. E não tem nada de inventado.

O silêncio que veio depois carregava tudo: o medo dela, o sentimento deles, o mundo inteiro que os separava. E lá fora, o carnaval continuava, e junto dele, a guerra.

{…}

Do lado de fora, a comunidade já estava estranhamente silenciosa para uma sexta-feira de carnaval. As vielas, normalmente tomadas por ensaios improvisados, batuques, crianças correndo, pessoas carregando fantasias e alegorias menores, estavam quase vazias. A maior parte da comunidade já havia descido para a Sapucaí com os carros alegóricos, e quem ficou para trás ajudava nos barracões, longe daquela área. Era o tipo de calmaria que não anunciava paz.

A poucas quadras dali, Vinícius avançava rápido, com a fúria estampada no rosto e um fuzil pendurado no peito. Atrás dele vinham duas dúzias de homens, alguns veteranos do tráfico, outros recém-recrutados, todos armados. Nenhum deles queria estar ali, mas Vinícius não aceitava o castigo do pai, a submissão para a milícia. Precisava recuperar o que era seu por direito, precisava voltar para casa. Não suportava a ideia de fugir com o rabo entre as pernas, dizia que era hora de uma nova liderança, do pai passar a coroa, mesmo que a força. Mascando raiva, acelerando o passo, ignorando que estavam entrando num território que fervilhava de rumores.

Quando faltava menos de duzentos metros para a rua onde ficava sua casa, algo estranho chamou a atenção de Vinícius: duas motos paradas, alinhadas, como se esperassem alguém. Ele ergueu a mão, mandando o bando parar.

Antes mesmo que pudesse dizer alguma coisa, ouviu passos vindos da transversal. E então viu: um grupo de quinze homens, todos com coletes pretos, armamento de guerra, e aquela postura rígida, organizada, que ninguém confunde: milicianos.

O major não costumava brincar em serviço. Com dinheiro, poder e gente suficiente, era hora de tomar a comunidade de uma vez.

Os dois lados congelaram. Um segundo apenas. Talvez dois. O suficiente para o choque passar, mas não o bastante para alguém pensar direito. As duas facções tiveram a mesma ideia, e o palco estava armado.

O primeiro tiro saiu da direita, seco, estridente, rasgando o silêncio. Depois veio o inferno. Rajadas ecoaram entre os becos, ricocheteando nas paredes estreitas, fazendo janelas tremerem e portas vibrarem. Vidros estouraram. Um dos homens de Vinícius caiu na primeira sequência, outro tentou correr, mas foi atingido no ombro e despencou gritando.

Milicianos avançaram como um bloco, gritando ordens, atirando em formação. Vinícius respondeu no instinto, ergueu o fuzil e devolveu fogo, recuando, mas sem abandonar o ódio que latejava dentro dele. Seus olhos se arregalaram ao perceber que não era uma abordagem, não era um aviso, não era intimidação. Era metódico, organizado, profissional. A sorte não estava ao seu lado.

— Desgraçados! — Rosnou entre os dentes, disparando de volta.

Os becos se encheram de fumaça, gritos, o estampido dos fuzis estourando no ar como fogos de artifício macabros. Gatos de energia começaram a faiscar, fios caíram sobre o chão, faíscas saltando entre as poças.

Moradores, assustados, se trancaram onde estavam, sem coragem de correr. E a guerra estourou, brutal, sem aviso, bem ali, a poucos metros da casa onde Monalisa permitia que Fernando entrasse um pouco no seu mundo, no seu silêncio, no seu medo … e no que ela sentia.

Nenhum dos dois fazia ideia do caos que avançava. Nem de que a noite que estava começando mudaria tudo para eles, para a comunidade, e para qualquer pessoa que ousasse cruzar aquele território naquele momento.

{…}

Dentro da casa estreita e silenciosa, a guerra parecia pertencer a outro universo. Ali, naquele espaço pequeno, abafado, Monalisa e Fernando eram apenas duas pessoas lutando contra algo mais forte que o medo: o que sentiam um pelo outro.

Monalisa respirava rápido, encostada na parede, ainda segurando o cordão com a aliança. Fernando se aproximava devagar, como se temesse quebrar o encanto. Ela desviava o olhar, tímida, mas sem conseguir se afastar. Era como se cada passo dele puxasse o dela, como se um fio invisível os mantivesse presos.

— Eu tentei esquecer. — Fernando murmurou, a voz baixa, rouca — Mas não consegui. Desde o baile ... você não sai da minha cabeça.

Monalisa corou, apertando os dedos contra o cordão.

— Aquilo foi só um sonho ... — Disse, quase em um sussurro. — Eu não pertenço a esse mundo, Fernando.

— A gente se atrai, Monalisa. — Ele rebateu, sem hesitar. — E você sabe que sentiu o mesmo.

Ela ergueu os olhos devagar, e naquele instante tudo neles se alinhou: o desejo, o medo, a lembrança da química no baile, e o impulso irresistível que agora os empurrava de novo um para o outro.

Fernando tocou o rosto dela com cuidado, como se pedisse permissão. Monalisa não recuou. O beijo aconteceu, inevitável. Quente, urgente, cheio de tudo que eles tentaram calar por duas semanas. As mãos dela subiram pela camisa dele. As dele a puxaram pela cintura. O mundo lá fora desapareceu por um instante, até o primeiro estrondo.

Um tiro. Depois outro. E uma sequência rápida de rajadas furiosas. Os dois se separaram num sobressalto.

— O que foi isso? — Monalisa respirou, olhos arregalados.

Antes que pudessem entender, gritos ecoaram, seguidos de rajadas longas de fuzil e explosões pequenas, como bombas caseiras ou granadas improvisadas.

Fernando ficou alerta imediatamente.

— Fica atrás de mim.

Ela obedeceu, mas o coração batia tão rápido que parecia que ia rasgar o peito. E então — BAM! — a porta foi escancarada.

— MONALISA!!! — A voz desesperada cortou o ar.

Vágner entrou correndo, suado, assustado, e parou ao ver os dois. Bastou um segundo para ele entender tudo. O beijo ainda estava estampado nos rostos deles. A proximidade, o calor, o ar suspenso.

Mas ele não tinha tempo para aquilo.

— Lisa … é agora ou nunca! — Ele disparou, chegando perto e segurando o braço dela. — Seu namorado trouxe traficantes pra tomar a favela! Se você não vier comigo agora, pode ser tarde demais!

Fernando imediatamente se colocou entre eles.

— Eu posso protegê-la.

Vágner encarou Fernando com sinceridade, sem ironia, sem ressentimento, apenas a realidade dura.

— Não nessa situação, playboy. Lá fora tem criminoso até no telhado. Eu conheço esses becos. Sei como tirar ela viva daqui. Você não. Mesmo a pé, eu sei o que estou fazendo.

A frase atingiu Fernando com força. Não pela provocação, mas pela verdade. Monalisa os olhava, assustada, dividida, trêmula.

Fernando respirou fundo. E sem hesitar, puxou a chave do carro do bolso e atirou para Vágner.

— Quando ela estiver em segurança … me avisa. — Fernando puxou um cartão de visitas do bolso e entregou para Monalisa.

— Pode deixar. — Vágner pegou a chave no ar, surpreendido pela atitude.

Ele puxou Monalisa pela mão, mas ela virou rapidamente, o coração apertado demais para partir sem perguntar:

— E você? Como vai sair daqui?

Fernando sorriu. O tipo de sorriso que quer acalmá-la, mesmo no meio de uma guerra.

— Você acha mesmo que eu vim sozinho?

Quase no mesmo segundo, passos pesados ecoaram lá de fora. Eduardo apareceu na porta, seguido por três guarda-costas armados.

— Deu ruim, Fernando. — Ele avisou, ofegante. — A milícia tá descendo o cacete no tráfico. Vamos meter o pé daqui. A Cinderela vem com a gente?

Mesmo tensa, Monalisa piscou duas vezes, surpresa e riu. Riu de nervoso, de medo, de tudo ao mesmo tempo.

— Cinderela?

Fernando corou discretamente, mas não desmentiu. Vágner apertou a mão dela.

— Lisa, vamos. A janela tá fechando. Se ficarmos mais um minuto, acabou.

Ela respirou fundo e tomou a decisão mais difícil da vida.

— Tá bom … vamos.

Vágner a guiou rapidamente para fora. Monalisa olhou para trás uma última vez, buscando Fernando com os olhos. Ele estava parado na porta, firme, resoluto, com Eduardo ao lado e os seguranças preparando as armas. Ela viu o brilho no olhar dele. Ele viu o medo no dela.

Segundos depois, o carro arrancou. A comunidade inteira já estava em guerra.

{…}

Fernando andava atrás de Eduardo e dos guarda-costas enquanto o céu da comunidade estourava em clarões. Rajadas curtas, gritos, bombas caseiras. O samba que vibrava nos becos há pouco tempo agora se misturava ao pânico.

Os seguranças formaram automaticamente uma linha de defesa. Braga, o primeiro deles, abriu a vereda com movimentos precisos, quase elegantes. Era ex BOPE, e parecia ter nascido para aquilo. Nascimento veio logo atrás, segurando Fernando pelo antebraço sempre que ele tentava olhar para trás.

— Sem cena, chefe. Olha só pra mim. Segue. Bora!

Mais acima, um grupo de traficantes correu desordenado, fugindo da troca de tiros. Um deles, ao virar a esquina, encarou os seguranças com o dedo quase no gatilho. Braga deu um passo à frente e gritou:

— CALMA! CIVIL PASSANDO! BAIXA A ARMA!

O traficante hesitou. Outro do grupo, mais experiente, agarrou o rapaz pelo braço:

— Deixa, deixa! Eles tão saindo!

Eduardo olhou para Fernando, atônito:

— Mano … nunca pensei que tráfico e milícia iam ter sincronia para, sem querer, deixar a gente passar vivo.

Braga fez sinal de silêncio. As explosões ficaram mais fortes, mais próximas.

Eles dobraram uma esquina estreita, descendo uma escadaria. Lá embaixo, três milicianos avançavam, armas erguidas, varrendo a viela em busca de inimigos. Um deles reconheceu que os seguranças não eram do tráfico e apontou a arma para eles.

Nascimento ergueu as mãos, firme:

— CIVIL FERIDO, AQUI! AFASTANDO! TEM PASSAGEM PRA BAIXO?

O miliciano olhou de relance para Fernando. Jovem, bem-vestido, claramente fora de lugar. Ele hesitou. Outro miliciano puxou o colega:

— Deixa, deixa! O major mandou não encostar em morador ou civil! Vão! Rápido!

Braga aproveitou a brecha e empurrou o grupo para a frente.

— Anda, anda! Agora!

Fernando correu, o coração disparado, uma mistura de assombro, ingenuidade desfeita e culpa. Atravessaram um beco tão estreito que os ombros raspavam na parede. Ao fim, chegaram a uma área mais aberta, onde duas Kombis de transporte de escola de samba estavam atravessadas como barricadas.

Os seguranças se dispersaram:

— Cobre a esquerda!

— Vou por cima da Kombi!

Braga escalou a lateral do veículo e, com dois gestos secos, sinalizou que a passagem oposta estava limpa.

— Corre! Corre agora!

Fernando e Eduardo dispararam por baixo dos fios pendurados, tropeçando em latas, mochilas e restos de fantasias de carnaval. A favela parecia tremer como se estivesse em convulsão.

O carro deles finalmente apareceu no fim da rua, protegido num bolsão entre dois prédios. O motorista mantinha o motor ligado, tenso, os olhos varrendo qualquer movimento suspeito.

Os guarda-costas formaram um último “arco” protetor enquanto empurravam Fernando e Eduardo para dentro do veículo.

— Entra! Fecha a porta!

O carro arrancou antes mesmo de todos estarem completamente acomodados. As rodas cantaram no asfalto irregular, desviando de destroços, caixas térmicas abandonadas, pedaços de fogos estourados.

Uma explosão sacudiu a rua atrás deles. Eduardo tomou fôlego, assustado:

— Que porra foi isso? Uma granada?

Braga respondeu sem tirar os olhos da janela:

— Caseira. Mas das boas. A guerra tá feia aí dentro.

Fernando, suado, respirou fundo enquanto olhava pela janela, vendo a comunidade se afastar rapidamente.

Eduardo colocou a mão no ombro dele.

— Calma, mano. Aquele cara deve saber o que faz. Quando ela estiver segura, ele vai te mandar mensagem.

Fernando fechou os olhos, tentando acreditar, mas os tiros distantes ainda vibravam dentro dele.

O carro entrou na avenida principal. Outro mundo. Luzes normais. Trânsito normal. Pessoas indo para o carnaval como se nada estivesse acontecendo a poucos quarteirões dali.

E, dentro do carro, Fernando só pensava em uma coisa: Monalisa.

{…}

O carro avançava pelas vielas estreitas como se tivesse olhos próprios. Vágner dirigia com precisão quase instintiva, desviando de motos caídas, caixas de fogos estouradas e das sombras que corriam entre becos. O barulho dos tiros ecoava longe, mas cada explosão ricocheteava no peito de Monalisa.

Dentro do carro, o silêncio era tão tenso quanto o caos do lado de fora. Vágner mantinha os olhos fixos na rota, maxilar travado, as mãos firmes no volante. Monalisa olhava pela janela, engolindo seco a cada clarão no céu da comunidade.

Foram alguns minutos tensos, nenhum dos dois pronto para falar, ambos perdidos em pensamentos diferentes, mas igualmente pesados.

Até que Monalisa respirou fundo e quebrou o silêncio, num fio de voz:

— Vágner … sobre o que você viu lá em casa …

Ele não deixou que ela terminasse.

— Lisa, você não precisa me explicar nada.

A voz dele saiu firme, sem hesitação.

— Eu não sou seu dono. E não quero que você se sinta devendo explicação pra ninguém. Você está viva, protegida, comigo. Isso é o que importa.

Ela virou o rosto na direção dele, surpresa pela leveza do tom.

— Não sou o Vinícius. — Ele continuou, sem tirar os olhos da rua. — E não tô te protegendo com segundas intenções. A tia Socorro já tá em segurança, e você sabe que ela me mataria se eu não cuidasse de você.

O canto da boca de Monalisa finalmente se curvou num sorriso discreto. Vágner notou. E gostou. Ele respirou fundo, quase aliviado, e acrescentou:

— Sabe, Lisa … a gente passou muito tempo longe um do outro.

Um pequeno desvio brusco do carro evitou uma barricada de motocicletas, mas a voz dele não vacilou.

— Acho que o Vágner de agora vai acabar te surpreendendo …

Ela franziu a testa, curiosa.

— É mesmo? Como assim?

Ele deu um sorriso que ela não via desde a adolescência. Aquele sorriso maroto, cheio de segredos.

— Eu não sou mais aquele moleque idiota e sonhador que você conheceu. Cresci. Aprendi umas coisas. Umas … maneiras novas de ver a vida.

Monalisa estreitou os olhos, ainda mais curiosa.

— Maneiras novas?

Ele deu de ombros, o sorriso se ampliando.

— É. Vamos dizer que … — Ele pausou, para criar expectativa nela. — … eu parei de achar que amor é uma caixa onde só cabe um tipo de história.

Monalisa piscou, surpresa. Um leve rubor tomando conta de seu rosto.

— Não entendi. — Ela murmurou.

— Entendeu sim … — Ele respondeu sem olhar, com aquela confiança tranquila que só alguém muito seguro de si poderia ter. — Mas não precisa se assustar. Só tô dizendo que … o Vágner de hoje não quer prender ninguém. Nem te disputar como se você fosse um prêmio.

Ela ficou quieta, tentando decifrar aquilo. Ele completou, baixinho:

— Se você tiver alguém em seu coração … como aquele cara lá … isso não muda o fato de que eu vou te proteger.

Olhou de relance para ela, com suavidade.

— E não muda o carinho que eu sempre tive por você.

O coração de Monalisa acelerou. Ela virou o rosto para a janela, sem saber reagir. Aquele não era o Vágner que ela lembrava. Era um homem diferente. Um homem livre. E por algum motivo, isso a deixou ainda mais confusa.

Lá fora, o som dos tiros começava a ficar mais distante, o que significava que eles estavam quase fora do perímetro da guerra. Vágner diminuiu um pouco a velocidade, finalmente permitindo que sua respiração desacelerasse.

— Estamos chegando. — Disse ele. — Daqui pra frente, você tá segura. Prometo.

Monalisa fechou os olhos por um instante. Segura? Talvez. Mas não do próprio coração.

Vágner deixou Monalisa em segurança, e ela mal teve tempo de sair do carro antes de ser envolvida pelos braços tensos e aflitos de Socorro.

— Minha menina … graças a Deus. — Murmurou a madrinha, beijando o rosto dela com uma mistura de choro e alívio.

Vágner deu um beijo rápido na testa da tia.

— Cuida dela pra mim, tia. — A voz dele saiu firme, sem espaço para discussão.

Ele já estava se afastando quando Monalisa avançou um passo.

— Mas … aonde você vai?

Vágner se virou apenas o suficiente para encará-la. Os olhos dele, escuros e determinados, não deixavam dúvidas.

— Voltar. — Disse, simples, direto. — Preciso fazer meu trabalho. Não vou deixar aqueles desgraçados usurparem nossa casa.

Ele não esperou por resposta. Apenas entrou no carro, girou a chave e, num arranque seco, desapareceu pela rua estreita.

O caminho de volta parecia ainda mais estreito, mais torto, mais perigoso, mas Vágner conhecia cada viela daquela comunidade como conhecia as palmas das mãos. As trocas de tiro ecoavam ao longe, misturando-se com o grito abafado de moradores que ainda tentavam se esconder.

Vágner pegou o rádio e ouviu a voz do major.

— Vinte e sete, posição?

— Entrada sul dominada. — Respondeu um dos homens. — Tão tentando recuar pela viela da caixa d’água.

— Então fecha — ordenou o major. — Ninguém passa.

Quando virou a esquina principal, viu a cena se desenrolando: Traficantes claramente despreparados, desorganizados pela emboscada, recuando tiro por tiro. O impacto inicial tinha quebrado a formação deles, era um caos completo.

Os milicianos, em comparação, moviam-se como um bloco perfeitamente treinado. Pareciam sombras rápidas surgindo nas janelas, nos telhados, nos becos. Avançavam com precisão, pressionando Vinícius e os seus por todos os lados.

Vágner parou o carro e desceu com uma calma quase antinatural. Ele recarregou o fuzil com um movimento seco, apoiou o ombro na parede de uma casa e analisou o cenário como alguém que já tinha visto aquilo dezenas de vezes.

Um tiro passou rente ao braço dele. Ele apenas sorriu.

— Eles tão desesperados mesmo … — Murmurou, erguendo a arma e disparando duas vezes. Não para matar, mas para forçar os traficantes a recuarem para onde ele queria.

E funcionou. A milícia, bem coordenada, fechou a esquina pelo outro lado e empurrou o grupo de Vinícius para o corredor mais apertado da comunidade. Ali, eles ficaram sem espaço, sem rota de fuga, sem vantagem. O domínio era inevitável.

— Perdeu! Já deu. — gritou um dos milicianos.

— Perdemos! — Alguns traficantes soltaram as armas no chão, mãos erguidas. Outros tentaram correr, mas foram imediatamente encurralados.

Apenas Vinícius e mais dois, conseguiram escapar. Fugiram por uma saída improvisada atrás de uma casa em obras, desaparecendo na escuridão da madrugada.

Vágner observou o recuo deles, sem pressa, sem frustração. Apenas constatando o óbvio.

— Ele não vai longe — Disse, mais para si do que para os outros.

Um dos milicianos se aproximou.

— A comunidade é nossa, parceiro. Avisem o major.

Vágner assentiu devagar, olhando a rua tomada pela fumaça fina, pelas armas recolhidas, pelos passos firmes dos homens limpando os últimos pontos de ameaça.

— Sempre foi. — Corrigiu.

E quando se virou para caminhar pela viela de volta ao carro, para encontrar o major, seu olhar tinha a serenidade sombria de quem sabia que tinha feito exatamente o necessário. E que faria de novo, quantas vezes fosse preciso.

{…}

A Sapucaí estava um caos organizado, como sempre era nos minutos que antecedem o desfile. Joca caminhava pelo meio da concentração da escola, conferindo carros alegóricos, checando seu pessoal, dando ordens rápidas aos diretores de ala. O suor na testa não era só do calor; era da responsabilidade.

— Cadê a comissão de frente? — Gritou para um dos coordenadores.

— Chegando, chefe! Tiveram que ajustar uma fantasia!

— Ajusta andando, minha gente! O relógio não perdoa!

Joca respirou fundo. A vibração do carnaval pulsava ao redor, mas sua mente estava silenciosa, focada. Concentrada. Era ali que ele brilhava, onde comandava como ninguém.

Foi então que o celular vibrou no bolso. Ele atendeu sem sequer olhar o nome na tela.

— Fala.

Do outro lado, a voz era urgente. Joca parou de andar. A expressão fechou na mesma hora.

— Agora? — Perguntou ele, já sabendo a resposta.

As batidas das baterias, o canto das alas, o barulho das alegorias, tudo pareceu diminuir, como se o mundo inteiro esperasse a reação dele.

O informante falou rápido, em frases cortadas: confronto pesado, Vinícius se vendendo ao tráfico, milícia avançando, domínio perdido …

Joca fechou os olhos, respirando fundo. Ele não parecia surpreso. Não de verdade.

— Eu sabia que esse dia ia chegar … — Murmurou, quase para si. — Mas no meio do carnaval … justo hoje?

Ele abriu os olhos. Com a serenidade de quem já tinha se preparado para a notícia, sabendo que era inevitável.

— Só faz o que eles mandarem. — Joca desligou.

Por um segundo, ficou parado no mesmo lugar, observando a avenida, as luzes, os carros alegóricos se preparando para entrar. Era como se o mundo estivesse dividido ao meio: a festa grandiosa do samba … e a guerra que aconteceu nas sombras da comunidade.

Joca pegou o celular de novo e procurou o nome que importava naquele momento: Vinícius.

Apertou para chamar. Chamou uma vez. Duas. Três. Nada.

— Atende, menino … — Disse ele, baixo, mas com um peso que parecia empurrar o ar.

Chamou de novo. E a ligação caiu direto na caixa postal.

Joca respirou fundo, guardando o celular no bolso da fantasia luxuosa de diretor de carnaval.

— Então tá … — Falou para si mesmo, ajeitando o chapéu, voltando a andar. — Que Deus te acompanhe onde quer que você esteja, Vinícius … porque agora, só Ele mesmo.

Continua …

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