27 de agosto do A.D. XLV
Faz sete noites que Valek não aparece. Nenhuma sombra que me siga, nenhum toque na pele, nenhum suspiro de brisa onde não deveria haver vento. Sinto-me inquieto, como um animal acostumado a ouvir passos atrás de si. Pergunto-me se o desagradei, se o perdi, se ele simplesmente se cansou de mim.
Caius Marcellus, um dos meus melhores soldados, tem treinado com constância surpreendente. Hoje ele se mostrou bastante empenhado durante o treinamento, destacando-se sobremaneira dentre os demais soldados. Questionei a Petrus sobre ele, e descobri que falam muito bem dele no acampamento. Penso que poderia colocá-lo no comando de algumas tarefas... ou quem sabe ele se torne um centurião.
3 de setembro, A.D. XLV
Quatorze noites.
Começo a temer o silêncio de Valek mais do que a própria presença dele. E se foi embora? E se tudo o que alcancei — comando, força, prestígio, glória — desmoronar sem o auxílio de seus sussurros?
Tenho dormido mal por causa disso. Meu corpo sente falta de seu toque gélido que me acende o fogo do desejo. Odeio sentir falta dele na mesma proporção que o desejo.
Ontem pela manhã observei mais atentamente a Caius Marcellus. Fiquei admirado com sua destreza com a espada e com a lança. Seus movimentos são precisos e rápidos, mas às vezes são sutis e graciosos. Seu corpo parece deslizar, como em uma dança. Confesso que detive meus olhos nele por mais tempo que deveria para o que deveria ser uma simples avaliação de um soldado; porém, não mais do que os dele em mim. Ao falar com ele após o treinamento, percebi o quanto sua fala é refinada e respeitosa, muito bem educado. Elogiou minhas conquistas, sobretudo a batalha em que os inimigos foram todos dizimados. Fiquei lisonjeado com suas palavras, mesmo sentindo até hoje que não houve glória alguma para mim naquele dia...
Antes de terminarmos a conversa, perguntei sobre seus objetivos como soldado, e sua resposta me impressionou, tamanha a sua devoção à Roma e ao imperador. Com isso, eu o convidei a um treinamento mais específico afim de subir sua patente. Ele aceitou de prontidão, com a promessa de não me decepcionar. Entretanto, foi um pouco imprudente quando, ao me agradecer pela oportunidade, parece ter feito menção de me dar um abraço, mas vendo que eu me afastei, apenas tocou em meu ombro.
À noite, dormi mais tranquilamente, praticamente a noite toda. Não tive nenhum pesadelo com Valek. Porém, sonhei duas vezes com Caius: no primeiro sonho, estávamos lutando como em treinamento; no segundo, ele estava em uma praia e não usava vestes na parte de cima do corpo e vinha correndo em minha direção sorrindo e de braços abertos. Eu corri ao seu encontro e então paramos de frente um para o outro. Foi tão vívido que senti seu calor e sua respiração. Caius me abraçou tão íntimo que acordei com o corpo estremecendo, tomado de desejo. Demorei a dormir novamente, pois entre minhas pernas, algo permaneceu despertado até que eu me aliviasse sozinho.
20 de setembro, A.D. XLV
Trinta noites.
A ausência de Valek se tornou parte da rotina.
Tenho sentido meu corpo mais leve, como se a febre que ele sempre deixava em meus ossos estivesse se dissipando. Ainda sinto sua falta — mas a culpa por desejá-lo diminui a cada amanhecer.
Caius se aproxima mais de mim a cada dia, iniciando diálogos muito agradáveis. Ele é deveras inteligente, culto e perspicaz em suas ideias. No entanto, suas palavras são de humildade invejável. Detive-me em sua presença por horas após o treino de ontem.
Mais tarde, ao entregar-me um relatório, sua mão roçou a minha, e me pergunto se foi proposital. Houve algo em seu olhar que me fez desviar o rosto. O medo de me aproximar demais de alguém ainda me atormenta. Temo pela sua vida.
À noite, sonhei com ele novamente — dessa vez, um sonho em que estávamos deitados sobre a relva verde, à beira de um rio de águas claras. Ele me tocou no rosto, e eu acordei com o coração acelerado e um calor latejante nas minhas partes.
25 de novembro, A.D. XLV
Mais de noventa dias sem Valek
A angústia inicial cedeu espaço a um estranho alívio.
Recupero o foco, o vigor, a disciplina.
Mas ainda há noites, raras, em que acordo e sinto falta do peso de um corpo sobre o meu, da respiração na minha nuca… e então me odeio por isso.
Ouvi dois soldados dizendo coisas boas a meu respeito, algo sobre eu estar sorrindo novamente. Isso me deixou pensativo, e de certa forma feliz.
Caius tem se tornado a minha sombra.
Na patrulha hoje, ele caminhou ao meu lado; no treino, observava meu corpo com atenção sem tentar esconder. Isso observei algumas vezes. Quando lutamos corpo a corpo, sem armas, senti o cheiro de seu corpo mais uma vez, e senti um arrepio quando apliquei nele um golpe, estando eu por trás dele. Precisei interromper a luta com ele, pois meu corpo reagia de forma imprópria mesmo com os outros soldados ao nosso redor.
Meus sonhos na noite passada com ele foram bastante intensos — sonhos em que suas mãos me seguram pelos ombros, e seu corpo está tão próximo ao meu que acordei suado e com o corpo em chamas, sobretudo da cintura para baixo, o que me levou a buscar alívio com as mãos pela madrugada, e novamente pela manhã. Ao encontrar-me com ele para o treinamento, senti-me constrangido inicialmente, mas seu olhar e suas palavras dissiparam qualquer constrangimento.
20 de janeiro, A.D. XLVI
Cento e vinte e seis noites. Mais de quatro meses de silêncio absoluto.
Se Valek partiu de vez, não sei. Talvez tenha perdido o interesse em mim. Talvez esteja morto, se é que um ser como ele possa ser tocado pela morte. Ou talvez apenas se divirta em me deixar enlouquecer pela espera. Ainda sinto medo de perder minhas conquistas sem a presença dele — mas algo mais forte do que esse medo tem crescido dentro de mim:
Caius.
Ele me observa de um modo que nenhum outro soldado jamais ousou.
Não como subordinado, mas como alguém que me enxerga para além do bronze, da disciplina, do comando. Temos tido uma relação bastante próxima, como amigos verdadeiros, algo que há muito tempo eu não tinha.
Mas na noite passada … tudo mudou.
Estávamos de guarda, à margem do acampamento, onde a lua mal conseguia tocar o chão através das árvores. O frio fazia a respiração aparecer no ar como fumaça. Permanecíamos em silêncio, ombro a ombro, até que ele falou:
— Marco… — não “centurião”. Pronunciou meu nome em tom baixo, quente, quase implorando.
Virei-me, mais surpreso pela ousadia do que pelo tom. Ele também se virou, segurando meu olhar como jamais fizera.
— Não consigo mais esconder. — A voz dele tremia, mas não de medo. — Importo-me contigo. Mais do que deveria.
Fiquei imóvel. Não consegui falar. Meu coração batia tão alto que parecia ecoar pelas árvores. Ele deu um passo na minha direção. Meu corpo reagiu antes da mente — meu pulmão encheu-se de ar como quem se prepara para um ataque.
— Perdoa-me se ultrapasso meu lugar… mas não suporto mais calar.
E então, com uma coragem que eu não teria naquele momento, ele tocou meu rosto. Foi um toque leve, quase reverente. Minhas pernas fraquejaram.
— Se disseres uma palavra, eu recuo. — sussurrou ele. — Mas se ficares em silêncio… saberei.
Não disse nada. Caius ergueu o queixo e seus lábios encontraram os meus. O beijo foi ardente, urgente, como se estivéssemos presos há anos e só agora tivéssemos encontrado ar. Eu deveria tê-lo afastado. Deveria ter lembrado meu posto, minhas culpas, meus fantasmas. Mas agarrei sua cintura, puxando-o para mim com força desesperada. Senti seu corpo colado ao meu — quente, vibrante, desejoso — e meu próprio corpo respondeu com intensidade tão clara que me faltou o fôlego.
Se não estivéssemos no acampamento… se não houvesse lanças e deveres ao redor… se não houvesse olhos que pudessem nos ver… teríamos ido longe demais.
Caius deslizou a mão pela minha nuca e correspondeu ao beijo com fome crescente, como se quisesse desarmar cada defesa minha com a língua, com o calor, com o corpo colado ao meu. E eu cedi. Oh, deuses, como cedi!
Mas então — passos. Um soldado se aproximando. Caius me soltou com a rapidez de um soldado experiente, ainda ofegante, ainda com os lábios vermelhos e úmidos. O soldado nada percebeu. Dirigiu-nos apenas um cumprimento breve antes de seguir para o outro lado do acampamento. Só então percebi meu próprio estado — o corpo aceso, a respiração descompassada, o desejo pulsando forte demais para ser negado, a protuberância abaixo da minha cintura... Caius afastou-se meio passo, mas seus olhos não recuaram.
— Não me arrependo, — murmurou. — E sei que tu também não.
Não respondi. Não conseguia. Mas quando ele se virou para retomar a ronda, minha mão — por vontade própria — segurou seu punho por um instante. Apenas um instante.
Caius sorriu. E naquele sorriso senti algo perigoso, algo vivo, algo que poderia substituir a sombra de Valek… algo que o vampiro jamais permitiria.
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