Meu Monstro Cruel - Capítulo Dois

Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 5470 palavras
Data: 20/11/2025 10:41:30

CAPÍTULO DOIS

NICK

Acordo de manhã com uma dor de cabeça terrível e Mojo roncando na minha cara.

— Meu Deus, cachorro — resmungo, cutucando seu peito

peludo. — Dá pra roncar mais baixo? O papai tá de ressaca.

A resposta dele é rosnar um grunhido, se enfiar mais no travesseiro e soltar um peido tão forte que muda a temperatura do quarto.

Eu me deito de costas e suspiro, me perguntando se fiz algo de ruim em outra vida para merecer isso. Às vezes acho que essa é a única explicação lógica para a grande merda que é minha existência.

Quando o telefone toca, vou me debatendo na direção da mesa de cabeceira até alcançar o celular. Aperto o botão para atender, mas antes que consiga falar algo, Shane já está alugando meu ouvido.

— Descobri. Ele é viúvo.

— O quê? Quem?

— Para de ser lerdo. Você sabe quem. O bonitão rejeitou os caras mais bonitos da costa oeste porque… — ele faz uma pausa dramática — … ele tá de luto!

Para Shane, os únicos motivos reais para um cara não se interessar por ele são ele ser hétero, casado, ter uma lesão cerebral ou ter perdido alguém recentemente. Muito recentemente. Tipo, há uma semana. E acho que no fundo ele acredita que, se um homem em alguma dessas condições for exposto ao charme dele por tempo su ciente, também vai ceder.

Queria ter esse nível de autoconfiança.

Passo a língua pelos dentes e torço para uma fada-madrinha aparecer com um copo d’água e uma aspirina. E uma cerveja.

— Por que você tá me ligando tão cedo, sua bruxa sem coração?

Ele ri.

— Não é cedo. São dez da manhã. Já dei duas aulas de ioga, tomei café da manhã e reorganizei o guarda-roupa. E você prometeu que ia me ligar às dez, lembra?

Não lembro, mas deve ter sido por causa do vinho branco e do jantar… e de todo o vinho tinto que bebi ao chegar em casa. Ainda bem que não toquei no uísque.

Ainda. Tenho o dia inteiro pela frente.

— Por que prometi que ia ligar?

O silêncio que segue é tenso.

— Vamos levar seu terno para o Segundas Chances.

Meu Deus.

Gemendo, jogo o braço sobre o rosto e fecho os olhos, como se isso fosse me esconder da realidade.

— Nem tenta inventar uma desculpa — diz ele, sério. — Vamos colocar seu terno de noivo à venda, Nick. Hoje. Você precisa se livrar daquela coisa. Já assombrou você demais.

Eu até poderia acusá-lo de ser dramático, mas assombrou é uma boa palavra. Vejo essa porcaria até nos meus sonhos, em meio a correntes e gemidos. Não consigo passar pelo closet onde ele está guardado sem sentir um calafrio. Virou algo alienígena, e não de um jeito legal.

— Ok. Mas… Mas e se…

— Por favor, nem pense nisso. — Ficamos em silêncio por um segundo e então ela dá o braço a torcer. — Se o David voltar, você compra outro.

Mordo o lábio com força. Ter um amigo que conhece você tão bem é, ao mesmo tempo, um privilégio e uma maldição.

Quando passo tempo demais em silêncio, ele fica nervoso.

— Olha, essa roupa que você guarda tá carregado. Tem muita energia negativa nele. Muitas lembranças ruins. Se precisar de um em algum momento, vai comprar um novo. Não vai usar um que faz você chorar toda vez que olha pra ele, né? — Quando hesito para responder, ele repete. — Né?

Solto um grande suspiro que faz meus lábios tremerem.

— Sim. É. Tem razão.

— Claro que tenho. Agora vai tomar um banho, se arrumar e comer alguma coisa. Chego daqui a uma hora.

— Sim, papai — resmungo.

— Sem malcriação, rapazinho, senão vai ficar de castigo.

— Ha-ha.

— E eu vou esconder todos os seus brinquedos. Especificamente os de borracha.

— Você é um péssimo amigo— respondo, em um tom monótono.

— Vai me agradecer depois. Nem deve mais conseguir gozar com um pau de verdade porque fica se detonando com esses aparelhos potentes.

Seu precioso é uma área de construção.

— Vou desligar.

— Não esquece de comer!

Desligo a ligação sem responder. Nós dois sabemos que meu café da manhã vai ser composto por bebidas.

Cinco anos. Não sei como sobrevivi até agora.

Eu me arrasto para fora da cama, tomo uma ducha e me arrumo. Quando chego na cozinha, Mojo está deitado no chão como um grande tapete peludo, na frente da geladeira, sorrindo para mim.

— Precisa ir fazer xixi antes do café da manhã, amigão?

Ofegante, ele balança o rabo, mas não sai do lugar, dando sua resposta.

Esse cachorro tem uma bexiga do tamanho de uma piscina. Se não fosse tão pesado, eu pensaria que tem uma perna falsa, ou até duas, onde guarda o xixi.

— Café da manhã primeiro.

Depois de alimentar Mojo e levá-lo para o quintal para ele se aliviar e cheirar os arbustos à procura de esquilos, volto para casa. Ele se deita no lugar de sempre no tapete da sala e logo pega no sono enquanto eu me sirvo de uma mimosa com mais álcool do que suco.

Não consigo fazer o que estou prestes a fazer sem álcool.

Tive a ideia quando estava no quintal observando Mojo mijar em um arbusto. É idiota, mas, se hoje é o último dia em que vou ter meu smoking de noivo, preciso vesti-lo uma última vez. Uma espécie de despedida. Um passo simbólico em direção ao futuro.

Em parte, estou torcendo para não caber mais. Mexer com fantasmas pode ser perigoso.

Estou parado na frente da porta do armário do quarto de hóspedes e minhas mãos começam a tremer.

— Ok, Nick. Aguenta firme. Coragem. Sei lá. — Respiro fundo. — Você consegue. Precisa parecer calma quando o Shane chegar, senão ele vai surtar.

Ignorando a estranheza de falar comigo mesmo em voz alta, tomo um grande gole da mimosa, coloco a taça na cômoda e abro a porta devagar.

E lá está ele. A capa protetora preta que guarda a lembrança de todos os meus sonhos perdidos. É um sarcófago, uma tumba de nylon, e dentro dela, o meu sudário.

Nossa, que sinistro. Relaxa um pouco, Gomez.

Viro o restante da mimosa. Passo alguns minutos andando de um lado para o outro e sacudindo as mãos, criando coragem para abrir a capa. Quando finalmente o faço, o smoking se espalha.

Eu o olho foxamente. Meus olhos se enchem de lágrimas.

É tão lindo, este smoking amaldiçoado idiota. Uma fabulosa mistura de seda, feita sob medida; a roupa mais cara que já tive na vida.

A que mais amei e a que mais odiei.

Tiro a roupa até ficar apenas de cueca, pego o a roupa do cabide e piso dentro da calça. Puxo-o até os quadris, tentando ignorar meu coração, que bate acelerado. Visto por completo.

Então vou até o espelho do outro lado do quarto para me ver.

O smoking já é traumático o suficiente.

Assim como o fato de ele não servir mais.

Faço uma careta e aperto o tecido frouxo na cintura.

Perdi peso desde a última prova duas semanas antes do casamento. Nunca tive um corpo curvilíneo, mas até o momento não tinha percebido que estou magro demais.

David não iria gostar deste corpo. Ele sempre me encorajava a comer e malhar mais, a me parecer mais com o Shane.

Eu havia esquecido o quanto isso me magoava.

Me viro devagar para um lado e para o outro, perdido em memórias e encantado com os cristais reluzentes sob a luz, brilhando, até o barulho da campainha tocando me tirar do transe.

Shane chegou. Mais cedo do que eu esperava.

Meu primeiro instinto é arrancar o vestido e enfiá-lo no armário. Depois, percebo que deixá-lo me ver assim — com o smoking e calma — é o melhor jeito de assegurá-lo de que estou bem. Que ele não precisa me vigiar.

Quer dizer, se eu consigo fazer isso, provavelmente consigo fazer qualquer coisa, certo?

— Pode entrar! — grito na direção da entrada, e então me posiciono na frente do espelho, tranquilo, aguardando.

A porta da frente abre e fecha. Passos ecoam na sala e param.

— Estou aqui!

Ouço os passos de novo. Shane deve estar usando botas; parece um alce passeando pela casa.

Passo as mãos pelo terno, esperando a cabeça de Shane aparecer pela porta. Mas a cabeça que aparece não é dele.

Em choque, me viro e encaro Kage, horrorizado.

Ele faz o batente da porta parecer minúsculo. Está vestido de preto dos pés à cabeça — jeans preto, couro e coturnos. Segura uma caixa marrom lacrada com fita adesiva nas mãos largas.

A expressão no rosto dele é de surpresa.

Ele me encara com os lábios entreabertos. Desce o olhar intenso pelo meu corpo e solta um suspiro alto.

Sinto como se tivesse sido pego no flagra de pernas abertas me masturbando na cozinha. E grito:

— O que você tá fazendo aqui, porra?

— Você me disse para entrar.

Meu Deus, essa voz. Um barítono rouco e aveludado. Se eu não estivesse tão em choque, talvez achasse isso atraente.

— Pensei que fosse outra pessoa!

Ele me olha sem piscar, dos pés à cabeça, com a intensidade de um laser. Em seguida, umedece os lábios.

— Você vai se casar? — A voz dele se transforma num rosnado.

Pode ser vergonha, surpresa, ou o fato desse homem ter sido tão rude comigo ontem, mas de repente estou furioso. Sinto o rosto pegando fogo, mas dou um passo na direção dele.

— Não é da sua conta. O que você tá fazendo aqui?

Por algum motivo, ele parece estar entretido com minha raiva. Vejo um indício de sorriso se formar nos seus lábios e sumir logo em seguida.

Ele estende a caixa na minha direção.

— O carteiro deixou isso na minha varanda. É para você.

— Ah.

Fico ainda mais envergonhado. Kage está sendo um bom vizinho. A julgar pelo comportamento dele ontem, eu diria que era mais provável ele tacar fogo na caixa e jogá-la por cima da cerca do que vir entregar pessoalmente.

Minha raiva se dissipa.

— Ok. Obrigado. Pode deixar aí em cima da cômoda.

Ao perceber que ele não se mexe e continua ali, parado, me encarando, cruzo os braços sobre o peito e o encaro de volta.

Depois de um instante de puro constrangimento, Kage faz um gesto de desdém com a mão para o smoking.

— Não combina com você.

Sinto meus olhos arregalarem e não tento disfarçar.

— O que você disse?

— Muito cheio de rulas.

— Só pra você saber: no futuro, quando você vir uma pessoa em uma roupa de noivo, a única resposta aceitável é dizer que ele está lindo.

— Você é lindo — responde ele, seco. — Mas não por causa dessa droga de smoking espalhafatoso.

Ele vai até a cômoda, deixa a caixa e sai pisando duro, me deixando sozinho, boquiabertk e com o coração palpitando.

Quando ouço a porta da frente se fechar, ainda estou parado tentando entender o que acabou de acontecer.

Pouco depois, ouço um barulho estranho. É um som repetitivo, tum tum tum, como se alguém estivesse batendo um tapete para tirar a poeira. Vou até a janela e olho para fora, tentando identificar a origem do barulho.

Então eu o vejo.

A rua onde moro é uma ladeira que sobe alguns metros entre uma casa e outra. A elevação garante uma boa visão do quintal dos vizinhos, então consigo ver por cima da cerca da casa ao lado, assim como pela janela da sala.

As cortinas costumam ficar fechadas, mas estão abertas.

No meio da sala há um saco de pancadas pendurado em uma estrutura de metal, do tipo que boxeadores usam. Parece ser o único móvel da casa.

E ali está Kage, batendo com força no saco de pancadas.

Ele está sem camisa. Fico congelado, observando-o bater repetidamente no saco, analisando os movimentos entre as sequências de socos, assistindo a seus músculos superiores vibrarem.

Vendo suas tatuagens se exionando a cada golpe.

Todo o peito, as costas e os braços de Kage são cobertos de tatuagens. Apenas o abdômen está livre, e fico grato por isso, pois assim tenho uma vista perfeita da barriga sarada e definida.

É óbvio que ele malha religiosamente. O corpo dele é incrível. Também está claro que está puto com alguma coisa e está descontando no coitado do equipamento.

A menos que algo tenha acontecido logo após ter saído da minha casa, o motivo da raiva tem a ver comigo.

Ele dá um soco final no saco, dá um passo para trás e solta um rugido de frustração. Fica parado ali, arfando, abrindo e fechando as mãos, até se virar para a janela.

Nossos olhares se encontram.

Nunca vi um olhar como aquele. É tão sombrio que chega a ser aterrorizante.

Respiro rápido e, sem pensar, recuo um passo. Levo a mão à garganta. Ficamos parados assim — o olhar fixo um no outro, sem desviar — até ele quebrar a conexão ao caminhar até a janela e puxar a cortina com força.

Quando Shane chega, vinte minutos depois, ainda estou parado no mesmo lugar, tando a janela da sala de Kage e ouvindo o tum tum tum dos socos.

*************

— Eu disse que ele era viúvo. É a única explicação.

Shane e eu estamos almoçando. Já deixamos o smoking no

brechó e agora estamos debruçados sobre nossas saladas, analisando cada segundo do meu encontro com Kage.

— Então você acha que ele me viu de terno e…

— Surtou — conclui ele, assentindo. — Você fez ele se lembrar do falecido esposo. Porra, deve ter sido muito recente. — Ele reflete por um instante com a boca cheia de alface. — Deve ser por isso que mudou pra cá. Ele devia ter lembranças demais dele onde morava. Nossa, como será que ele morreu?

— Provavelmente foi um acidente. Ele é jovem; deve ter o quê, uns trinta e poucos anos?

— No máximo, trinta e cinco. Talvez não tenham passado muito tempo juntos. — Ele solta um suspiro de empatia. — Coitado. Não deve estar lidando bem com isso.

Eu me sinto um pouco mal pela forma como o tratei de manhã. Fiquei com tanta vergonha de ter sido pego usando e tão chocado de vê-lo ali que acho que fui meio escroto.

— O que tinha na caixa que ele trouxe?

— Materiais de pintura. Tinta e pincéis. O estranho é que não me lembro de ter comprado nada disso.

Shane olha para mim com uma expressão de empatia e esperança.

— Isso quer dizer que você tá trabalhando em algo novo?

Remexo a salada para evitar o olhar curioso dela.

— Não quero falar sobre isso pra não azarar.

Na verdade, está mais para “não quero mentir, mas se eu falar que ainda não voltei a pintar e pelo visto comprei materiais que não lembro de ter comprado, você vai me levar daqui direto para um terapeuta”.

Talvez Diane Myers tenha razão: eu vivo em uma bolha. Uma linda bolha de negação que me desconecta do mundo. Pouco a pouco estou perdendo contato com a vida real.

— Ah, amigo, que bom! É um baita progresso!

Quando ergo o olhar, Shane está sorrindo para mim. Agora me sinto um babaca. Vou ter que jogar umas tintas em uma tela quando chegar em casa para não ser consumido pela culpa.

— E você lidou muito bem com a ida ao brechó. Não chorou nem nada. Estou muito orgulhoso.

— Quer dizer que posso pedir mais uma taça de vinho?

— Você é um adulto. Pode fazer o que quiser.

— Que bom, porque ainda é O Dia Que Não Pode Ser Nomeado, e quero apagar antes das quatro da tarde.

A hora em que eu deveria ter me casado cinco anos atrás.

Ainda bem que hoje é sábado, senão teria que explicar muita coisa quando caísse bêbado no meio de uma aula.

Shane está prestes a fazer um comentário de reprovação quando o celular dele apita com a notificação de uma nova mensagem.

Ele o pega no bolso, olha para a tela e sorri.

— Hum, aí sim, garoto. — Ele olha para mim e sua expressão muda completamente. Então, balança a cabeça e começa a digitar. — Vou dizer que preciso remarcar.

— Para quem? Remarcar o quê?

— É o Stavros. Esqueci que a gente ia sair hoje.

— Stavros? Você tá saindo com um grego magnata de exportação?

Ele para de digitar e revira os olhos.

— Não, garoto, é o cara de quem eu te falei.

Quando a encaro, inexpressivo, ele insiste:

— O que apareceu na minha aula de ioga usando uma calça de moletom cinza colada, sem cueca, e todo mundo conseguiu ver o formato do pau dele?

Arqueio uma sobrancelha, pois com certeza me lembraria dessa história se ela tivesse contado.

— Ah, fala sério. Eu falei dele. O cara que mora na beira do lago. Quase cem metros de praia privada. Trabalha com tecnologia. Lembrou agora?

Não lembro de nada, mas resolvo assentir.

— Claro, Stavros. Calça de moletom cinza. Lembrei agora.

— Tá na cara que não lembra.

Ele suspira. A gente se encara por um segundo até eu perguntar:

— Com quantos anos alguém pode ter Alzheimer precoce?

— Não tão cedo. Você nem fez trinta ainda.

— Talvez seja um tumor cerebral.

— Não é um tumor cerebral. Você meio que… — Ele estremece e percebo não quer me magoar. — Esquece do mundo.

Então a fofoqueira da Diane tem razão. Resmungo, coloco meus cotovelos sobre a mesa e apoio minha cabeça nas mãos.

— Desculpa.

— Não precisa pedir desculpa. Você passou por um trauma pesado. Ainda tá superando. Não existe um prazo para o luto.

Se pelo menos um corpo fosse encontrado, eu poderia seguir com a vida.

Sinto tanta vergonha desse pensamento que meu rosto começa a queimar. Mas a realidade é que não dá para seguir com a vida.

A pior coisa sobre nunca encontrar uma pessoa que desapareceu é que as pessoas que a amam não conseguem superar o luto. Ficam presas em um eterno crepúsculo de ignorância. Sem um desfecho real, incapazes de passar pelos estágios do luto, seguem existindo nesse limbo estático. Como plantas perenes no inverno, adormecidas sob o chão congelado.

São as perguntas sem resposta que mexem com você. A terrível incerteza que prende sua alma com unhas e dentes.

Ele morreu? Se sim, como? Será que sofreu? Por quanto tempo?

Entrou para uma seita? Foi abduzido? Começou uma vida nova em outro lugar?

Está morando sozinho na floresta?

Bateu a cabeça e esqueceu quem é?

Será que um dia vai voltar?

A lista é infinita. Uma série infinita de perguntas na sua cabeça, e as respostas nunca vêm.

Para pessoas como eu, as respostas não existem. Há apenas a vida suspensa. Apenas a lenta e constante calci cação do meu coração.

Mas de jeito nenhum vou deixar o coração do meu melhor amigo calcificar também.

Ergo a cabeça e digo com a voz firme:

— Você vai sair com o cara da calça de moletom cinza.

— Nick…

— Não tem motivo pros dois passarem o dia tristes. Ponto final.

Ele olha para mim com os olhos semicerrados por um segundo, em seguida suspira e balança a cabeça.

— Não tô gostando disso.

— Tô nem aí. Responde o cara falando que você vai encontrar com ele hoje e termina de almoçar.

Faço questão de terminar a salada como se não comesse há dias, já que Shane é igualzinho a uma avó: sempre se sente melhor quando me vê comer.

— Eu sei o que você tá fazendo — diz ele, em um tom seco, ao me encarar.

— Não sei do que você tá falando — respondo, com a boca cheia de salada.

Ele olha para o céu e solta um grande suspiro. Em seguida, deleta o que estava escrevendo no celular e começa de novo. Envia a mensagem e joga o celular de volta na bolsa.

— Feliz?

— Feliz. E quero um relatório completo amanhã.

— O que você vai fazer hoje à noite sem mim? — pergunta ele, no tom interrogatório de um policial.

Penso rapidamente.

— Vou me levar pra jantar no Michael’s.

O Michael’s é um cassino pequeno e elegante na parte do lago que é no estado de Nevada, onde turistas ricos vão jogar e perder dinheiro. Acima dele, há uma churrascaria de onde você pode assistir as pessoas jogando 21 enquanto se acaba de comer um lé-mignon superfaturado. Lá é caro demais para mim, mas assim que respondo, fico animada com a ideia.

Ver outras pessoas tomando decisões ruins é, para mim, o que me ver comendo é para Shane.

— Sozinho? Só psicopatas comem sozinhos.

— Valeu. Mais alguma pérola motivacional pra compartilhar?

Ele faz uma cara de desaprovação, mas continua em silêncio, então sei que estou livre.

Agora só preciso achar algo para vestir.

*****************

Quando entro no Michael’s às seis da tarde, já estou meio altinho.

Peguei um táxi para não ter que dirigir, porque meu plano para hoje é pedir a garrafa de champanhe mais cara do cardápio — foda-se, vou passar no cartão — e ficar acabado.

Ter tirado o smoking de casa me deixou mais leve. Como se eu tivesse tirado um peso das costas que carregava há tempo demais. Procurei no fundo do guarda-roupa e encontrei outra roupa que não usava há tempos, mas com menos bagagem emocional. É

Vai que conheço alguém no bar.

Solto uma risada só de pensar, porque é ridículo.

A recepcionista do restaurante me leva até uma boa mesa no canto do salão. Atrás de mim, há um aquário gigante, e o cassino está à direita. Tenho uma boa visão do restaurante, que é ocupado por casais idosos e jovens que parecem estar no primeiro encontro.

Peço uma taça de champanhe e me acomodo na cadeira, satisfeito por ter tido a ideia de vir aqui. Não posso ser tão rabugento em público quanto seria em casa, sozinho, comendo macarrão com queijo com Mojo e chorando ao ver fotos do meu noivado.

Minha satisfação dura dois minutos, porque então o vejo, sentado do outro lado do restaurante, fumando um charuto e bebericando uísque. — Tá de brincadeira comigo — resmungo.

Como se tivesse me ouvido, Kage levanta o olhar e encontra o meu.

AAAAAH! (Isso foi meu estômago berrando.)

Eu lanço um sorriso discreto para ele e desvio o olhar, nervoso. Queria saber por que fazer contato visual com esse homem é tão visceral. Toda vez que o vejo, parece que ele está espremendo meu estômago com aquela mão gigante.

Não contei para Shane sobre o comentário dele. Passei o dia inteiro tentando não pensar na frase “Você é lindo”, dita com aquele tom rouco e aquele olhar com o qual estou começando a me acostumar. Aquela mistura de intensidade e hostilidade, com um toque de algo que pareceria ser curiosidade se eu não fosse esperta o bastante.

Fico observando o cassino até o garçom se aproximar e sorrir para mim.

— Senhor, o cavalheiro naquela mesa pediu que você se junte a ele para jantar.

O rapaz gesticula para onde Kage está sentado me observando como um caçador encara um cervo pela mira do rifle.

Sinto o coração acelerar e hesito, incerto do que fazer. Seria rude recusar, mas eu mal conheço esse homem. O pouco que sei sobre ele é, no mínimo, confuso.

E hoje. Por que eu tinha que encontrar com ele de novo hoje?

O sorriso do garçom se alarga.

— Sim, ele disse que você ficaria relutante, mas ele prometeu se comportar.

Se comportar? O que isso quer dizer?

Antes que eu possa começar a imaginar, o garçom me ajuda a sair da cadeira e me guia pelo cotovelo pelo restaurante. Aparentemente não tenho opção.

Chegamos à mesa de Kage. Fico surpreso de vê-lo em pé. Ele não parece ser do tipo que se importa com formalidades.

O garçom puxa a cadeira do outro lado da mesa, se curva e dá um passo para trás, me deixando ali, em pé, envergonhado, com o olhar intenso de Kage em mim.

— Sente-se, por favor.

É o “por favor” que me convence. Eu me sento na cadeira e engulo em seco.

Ele também se senta. Depois de um segundo, ele fala:

— A roupa.

Olho para Kage, me preparando para mais um insulto sobre minha roupa de noivo cheio de rulas, mas o olhar dele está focado no que estou usando agora. Provavelmente odiou essa aqui também.

Tímido, mexo na roupa.

— É velho. Simples.

Os olhos sombrios e intensos encontram os meus.

— Simples fica melhor em você. A perfeição não precisa de enfeite.

Que bom que não estou segurando um copo, porque provavelmente iria derrubá-lo.

Eu o encaro, impressionado. Ele retribui o olhar e parece que quer dar um soco na própria cara.

Está claro que não gosta de me elogiar. E que não é algo intencional, mas impulsivo.

Mas o que não está claro é o motivo de ele ficar com tanta raiva de si mesmo quando isso acontece.

Com minhas bochechas fervendo, respondo:

— Obrigado. Esse… deve ser o elogio mais gentil que já ouvi.

Kage range os dentes por um instante e toma um grande gole do uísque. Ao colocar o copo de volta na mesa, o barulho é tão alto que me assusto.

Ele está se arrependendo do convite. É minha deixa.

— Foi muito gentil da sua parte me convidar, mas estou vendo que você prefere ficar sozinho. Obrigado por… — Fique.

Soa como uma ordem. Quando pisco, surpreso, ele suaviza o tom e murmura:

— Por favor.

— Ok, mas só se você tomar seu remédio.

— Ele é engraçado também. Que inconveniente — murmura ele para si mesmo.

— Inconveniente para quem?

Ele me observa sem responder.

Qual o problema desse cara?

O garçom volta com a garrafa de champanhe que pedi e duas taças.

Que alívio. Eu estava prestes a começar a roer meu próprio braço. Não me lembro da última vez que estive em uma situação tão desconfortável.

Ah, espera aí. Lembro, sim. Foi ontem à noite, quando o tal príncipe encantado elegantemente se recusou a me dar uma carona para casa. Ou será que foi hoje de manhã, quando ele me viu usando meu smoking e pareceu prestes a vomitar?

Com certeza daqui a uns cinco minutos vou ter outro exemplo para somar à lista.

Ficamos em silêncio enquanto o garçom abre a garrafa e serve a bebida. Ele nos informa que em breve alguém vai vir anotar nossos pedidos e desaparece enquanto viro minha taça como se estivesse no meio de uma competição de bebida valendo uma viagem grátis para o Havaí.

— Você sempre bebe desse jeito? — pergunta Kage quando repouso a taça na mesa.

Ah, verdade. Kage me viu enchendo a cara ontem também. Pouco antes de eu ir até a mesa dele. Não é para menos que ele me olhe com tanto… sei lá o quê.

— Na verdade, não — respondo, tentando manter a compostura enquanto enxugo a boca com o guardanapo. — Apenas em dois dias do ano.

Ele arqueia uma sobrancelha e espera pela explicação. Em um cinzeiro ao lado do seu cotovelo esquerdo, o charuto solta fumaça em pequenas espirais.

Será que é permitido fumar aqui?

Não que isso faça diferença para ele.

— É uma longa história.

Desvio do olhar intenso de Kage.

Apesar de não estar olhando diretamente para ele, seu olhar é uma força que consigo sentir no meu corpo inteiro. No meu estômago. Na minha pele. Fecho os olhos e solto um suspiro lento, tentando me acalmar.

E então — a culpa é do álcool — acabo me jogando no abismo à minha frente.

— Hoje devia ser o dia do meu casamento.

Depois de uma pequena pausa constrangedora, ele pergunta:

— Devia ser?

Limpo a garganta, ciente de que meu rosto está vermelho, mas não consigo me controlar.

— Meu noivo desapareceu. Há cinco anos. Não o vejo desde então.

Foda-se, ele iria saber disso mais cedo ou mais tarde. Diane Myers já teve ter enviado um relatório completo para o cara.

Quando percebo que Kage continua em silêncio, levanto o olhar. Ele está imóvel na cadeira, o olhar fixo em mim. A expressão dele não me diz nada, mas o corpo está rígido de um jeito diferente. Vejo a mandíbula já tensa ficar ainda mais estoica.

É nessa hora me lembro que ele acabou de ficar viúvo. Que vacilo.

Coloco a mão sobre o coração e digo, nervoso:

— Sinto muito. Foi muito insensível da minha parte dizer isso.

Ele franze o cenho, confuso. Está óbvio que não sabe do que estou falando.

— Por causa da sua… situação — completo.

Ele se inclina para a frente, cruza os braços sobre a mesa e se aproxima de mim.

— Que situação? — pergunta ele, baixinho, com um brilho no olhar.

Meu Deus, como esse cara é assustador. Grande, gostoso e muito assustador. Mas principalmente gostoso. Não, principalmente assustador. Merda, acho que estou bêbado. — Talvez seja um engano. Achei que…

— Achou o quê?

— Que quando você me viu com… Que você é novo na cidade e parece muito, hum, um pouco… como posso dizer? Não bravo, mas um pouco triste? Que talvez você tivesse perdido alguém recentemente…

Eu me sinto ridículo e fico em silêncio.

O olhar dele é tão intenso e inquisitivo que me sinto como se estivesse em um interrogatório. Mas logo sua expressão muda e ele se encosta de novo na cadeira.

— Você achou que eu fosse casado.

Há um tom de piada na voz dele.

— É. Na verdade, achei que fosse viúvo.

— Nunca fui casado. Nem divorciado. Não tenho alguém falecido.

— Entendi.

Não entendi, nem um pouco, mas vou falar o quê? Pedir desculpas por eu e meu melhor amigo sermos cheios de teorias da conspiração e termos passado o almoço inteiro falando dele?

Não. De jeito nenhum.

Também na lista de tópicos proibidos estão: se você não tem um esposo falecido, por que surtou quando me viu com o meu meu smoking de noivo? Por que olha para mim como se quisesse me atropelar e logo em seguida me elogia? E depois se odeia por ter me elogiado?

Por fim, mas não menos importante, qual é a do saco de pancadas?

Sem saber mais o que falar, levo o guardanapo aos lábios de novo.

— Bom, peço desculpas por isso. A final, não é da minha conta.

— Não é? — pergunta Kage, baixinho.

O tom dele sugere que é, sim. Agora estou ainda mais nervoso.

— Bom… não?

— Isso foi uma pergunta?

Um sorriso começa a se formar no canto da boca dele. Os olhos estão mais suaves e vejo pequenas linhas de expressão se formarem no canto.

Espera aí… ele está zoando comigo?

— Não estou no clima pra joguinhos — respondo, seco.

Com o mesmo tom baixo e sugestivo, ele responde:

— Eu estou.

O olhar dele desce para a minha boca. Ele morde o lábio inferior.

De repente, uma onda de calor sobe do meu pescoço até as orelhas.

Pego a garrafa de champanhe e tento me servir. Mas minhas mãos tremem tanto que derramo na mesa.

Kage tira a garrafa da minha mão, pega a taça e termina de enchê-la. Faz tudo isso com uma expressão quase de divertimento.

Não é que ele esteja se divertindo, na verdade, porque isso requer um sorriso.

Ele me entrega a taça de champanhe.

— Obrigado — respondo, quase sem ar, e viro a bebida.

Quando repouso a taça de volta na mesa, ele assume uma postura quase profissional.

— Acho que começamos com o pé esquerdo. Vamos recomeçar do zero.

Olha só, ele está sendo sensato. Que personalidade nova é essa?

Ele estende a mão do tamanho de uma luva de beisebol para mim.

— Oi. Meu nome é Kage. Muito prazer em conhecê-lo.

Sinto como se eu estivesse em uma realidade paralela. Estendo a mão para ele enquanto me pergunto se vou tê-la de volta, porque ela se perde naquela palma gigante, quente e grossa.

Como seria ter essas mãos no meu corpo nu?

— Kage? — repito fracamente, ainda pensando na imagem das mãos dele passeando na minha pele. Sinto o corpo inteiro esquentar. — É seu nome ou sobrenome?

— Os dois.

— Claro. Oi, Kage. Meu nome é Nicholas.

— Prazer em conhecê-lo, Nicholas. Posso chamar você de Nick?

Ele está sendo simpático, pelo visto. E ainda não soltou minha mão. Não consigo me livrar da imagem mental dele me acariciando enquanto estremeço e solto gemidos, pedindo por mais.

— Claro.

Por favor, tomara que ele não perceba que meus mamilos estão duros. Por favor, por favor, que ele não repare nisso. Por que eu não coloquei uma camisa mais grossa?

— Então, Nick, o que você faz da vida? — pergunta ele, em um tom simpático.

— Sou professor. De arte. Do ensino fundamental.

Também posso ter fugido de um hospício. Aviso você daqui a pouco quando o meio das minhas pernas parar de latejar e o sangue voltar para minha cabeça.

Qual é o meu problema? Eu nem gosto desse cara!

— E você?

— Sou cobrador.

Isso me deixa surpreso. Ele poderia ter dito “assassino de aluguel” e eu não teria nem piscado.

— Tipo de ônibus?

A pressão da mão dele na minha é firme. O olhar está fixo no meu quando ele responde:

— Não. Tipo de dívidas.

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 0 estrelas.
Incentive MJ Mander a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários