Meu Monstro Cruel - Capítulo Um

Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 5746 palavras
Data: 19/11/2025 01:43:15
Última revisão: 19/11/2025 01:46:22
Assuntos: bar, Gay, grosso, Homossexual

CAPÍTULO UM

** NICK **

– Sinto muito. Não posso mais fazer isso. Tá na cara que eu sou o único que tá se esforçando aqui.

A voz do outro lado da linha está séria. Sei que Chris está falando a verdade. Ele realmente sente muito que as coisas entre nós não estejam dando certo. Mas isso não é uma surpresa. Eu sabia que isso aconteceria. Se eu ao menos me importasse. Porém, se eu me importasse, não estaríamos nesta situação.

— Ok. Eu entendo. A gente se vê, então.

Na pequena pausa que se segue, ele passa de triste para irritado.

— É isso? É só isso que você tem a dizer? Estamos namorando há dois meses e só o que você tem a dizer é “a gente se vê, então”?

Ele quer que eu fique chateado, mas na verdade estou aliviado. Óbvio que não posso dizer isso em voz alta.

Em pé, em frente à pia da cozinha, olho pela janela aberta para o pequeno quintal cercado. O dia lá fora está ensolarado e há um aroma de outono no ar, um dia típico de setembro no lago Tahoe.

Época perfeita para se casar.

Expulso esse pensamento terrível da mente e volto o foco para a conversa.

— Não sei o que mais você quer de mim. É você que está terminando comigo, lembra?

— Lembro, e eu achei que você teria uma reação diferente. — O tom de voz dele é seco. — Acho que você estava me iludindo.

Chris não é um cara ruim. Não é irritadiço como o último cara com quem eu saí, nem grudento e chorão como o anterior. Na verdade, ele é muito legal.

Acho que vou apresentá-lo para minha amiga, Marybeth. Os dois formariam um casal fofo.

— É que tem muita coisa rolando no trabalho. Não tenho muito tempo pra investir em um relacionamento. Você sabe como é.

Mais uma pausa, desta vez, mais longa.

— Você ensina pintura com dedos pra crianças.

O tom dele me irrita.

— Eu ensino arte.

— É. Pra crianças de doze anos. Não quero insultar você, mas seu trabalho não é estressante.

Não tenho energia para discutir, então fico em silêncio. Ele entende isso como uma deixa para continuar a me confrontar.

— Meus amigos me avisaram sobre você, sabia? Disseram que eu não deveria namorar alguém com seu histórico.

Meu “histórico”. Que gentil da parte dele.

Como o cara cujo noivo desapareceu um dia antes do casamento, cinco anos atrás, minha “bagagem” está mais para um contêiner inteiro. Para ficar comigo, a pessoa precisa ter um certo nível de autoestima.

— Espero que possamos continuar amigos, Chris. Sei que não sou perfeito, mas…

— Você precisa seguir com sua vida, Nick. Desculpa, mas alguém precisava te dizer isso. Você tá vivendo no passado. Todo mundo sabe.

- Eu sei. Vejo como olham para mim.

King’s Beach — uma cidadezinha praiana na região norte do lago — tem uma população de quatro mil habitantes. Mesmo anos depois do ocorrido, parece que todos ainda rezam por mim à noite.

Quando não respondo, Chris suspira.

— Não foi o que eu quis dizer…

— Foi, sim. Tudo bem. Escuta, se não se importar, vamos nos despedir agora. Eu estava falando sério quando disse que queria continuar sendo seu amigo. Você é um cara legal. Sem ressentimentos, tá?

Depois de um minuto, ele diz, sem emoção:

— Claro. Sem ressentimentos. E sem sentimentos também, sei que essa é sua especialidade. Se cuida, Nick.

Chris desliga, me deixando com o silêncio.

Suspiro, fechando os olhos.

Ele está errado sobre eu não ter sentimentos. Tenho muitos. Ansiedade. Cansaço. Uma leve depressão. Uma melancolia inabalável com um toque de desespero.

Viu? Não tenho esse coração gelado que ele me acusa de ter.

Coloco o telefone de volta no gancho da parede. Ele toca de novo.

Hesito, sem saber se quero atender ou começar a beber como faço todo ano neste exato dia e nesta exata hora, mas decido que tenho uns dez minutos de sobra antes de começar meu ritual anual.

— Alô?

— Você sabia que o número de casos de esquizofrenia aumentou drasticamente por volta da virada do século XX, quando se tornou comum ter gatos de estimação?

É meu melhor amigo, Shane. Ele não gosta de começar uma conversa de um jeito normal, o que é um dos motivos para eu amá-lo.

— Qual o seu problema com gatos, a final? Isso é patológico.

— Eles são assassinos em série peludos cujas fezes podem transmitir amebas comedoras de cérebro, mas essa não é a questão.

— Qual é a questão?

— Estou pensando em adotar um cachorro.

Tento imaginar Shane, tão independente, com um cachorro, e olho para Mojo, que dorme no chão da sala sob um feixe de luz. Ele é uma mistura de pastor alemão — quarenta e cinco quilos de pelos pretos e castanhos bagunçados, com um rabo que lembra uma pluma, sempre balançando.

David e eu o resgatamos quando ele tinha apenas alguns meses de vida. Agora, tem sete anos, mas age como se tivesse setenta. Nunca vi um cachorro dormir tanto. Acho que deve ser uma mistura de cachorro com bicho-preguiça.

— Você sabe que vai ter que recolher o cocô dele todo dia, né? E passear. E dar banho. É tipo ter um filho.

— Exato. Vai ser um bom treino pra quando eu tiver filhos.

— Desde quando você pensa em ter filhos? Mal consegue manter uma planta viva.

— Desde que vi um homão daqueles no Sprouts hoje de manhã. Meu relógio biológico começou a ressoar como o Big Ben. Alto, misterioso, bonito… E você sabe que eu adoro uma barba malfeita. — Ele suspirou. — A dele era épica.

Sorrio com a imagem mental dele babando por um cara no mercado. Geralmente é o contrário. Ele é professor de ioga e suas aulas estão sempre cheias de homens solteiros esperançosos.

— Barba épica. Essa eu quero ver.

— É tipo uma semibarba que tomou esteroides. Ele tinha um ar meio piratesco. Isso é uma palavra? En m, ele tinha uma vibe misteriosa.

Gostosão. Ai, ai.

— Gostosão, é? Não parece ser ninguém da cidade. Deve ser turista.

Shane solta um grunhido.

— Eu devia ter perguntado se ele precisava de um guia turístico pra mostrar as paisagens.

Eu rio.

— As paisagens? Esse é o novo apelido da sua bunda?

— Para de inveja. É por isso que dizem que eles são meus atributos. Saiba que eles já me zeram ganhar vários drinques. — Ela para de falar por um segundo. — Por falar nisso, vamos pro Downrigger’s hoje.

— Não posso, foi mal. Tenho outros planos.

— Aff. Eu sei quais são seus planos. Tá na hora de mudar as coisas. Começar outra tradição.

— Sair e ficar bêbado em vez de ficar em casa?

— Exato.

— Não, obrigado. Vomitar em público não é minha vibe.

Ele bufa.

— Eu tenho certeza de que você nunca vomitou na vida. Você nunca se engasga com nada.

— É muito estranho que você saiba isso sobre mim.

— Não temos segredos, garoto. Somos melhores amigos desde antes de termos pentelhos.

— Que lindo. Já consigo imaginar isso num cartão — respondo, seco.

Ele me ignora.

— Além do mais, eu pago. Isso deve apelar pro seu espírito mão de vaca.

— Tá me chamando de mesquinho?

— Prova A: no Natal passado você me deu um vale-presente do Outback, com o saldo de vinte dólares, que você ganhou.

— Foi uma piada!

— Aham — diz ele, cético.

— Eu disse, era pra você dar de presente pra outra pessoa. É uma piada. É engraçado.

— Sim, é engraçado se seu lobo frontal tiver sofrido uma lesão por causa de um acidente de carro. Para o resto de nós, seres normais, não é, não.

Meu suspiro é longo e dramático.

— Tá. Esse ano eu vou comprar um suéter de cashmere pra você. Satisfeito?

— Passo pra te buscar em quinze minutos.

— Não. Eu não vou sair hoje.

— Não vou deixar você ficar mofando em casa por causa do aniversário do seu jantar de ensaio que nunca aconteceu, enchendo a cara com o champanhe que deveria ter bebido na sua festa de casamento — diz ele, firme.

Ele não fala mais nada, mas as palavras pairam no ar.

Hoje é o aniversário de cinco anos do desaparecimento de David.

Quando uma pessoa está desaparecida há cinco anos ou mais, o estado da Califórnia a considera legalmente morta. Mesmo se estiver perdida por aí, na prática, ela é considerada falecida.

É uma data que me assombra há muito tempo.

Dou as costas para a janela e para o dia ensolarado lá fora.

Por um instante, penso em Chris. Lembro da amargura na voz dele quando disse que eu estava vivendo no passado… e como todo mundo sabia disso.

Todo mundo, inclusive eu.

— Tá bom. Passa aqui em quinze minutos — respondo.

Sha e solta um gritinho de empolgação.

Desligo antes que possa mudar de ideia e vou vestir uma roupa.

Se vou ficar bêbado em público, pelo menos vou ser um bêbado bonitão.

******************

O bar Downrigger’s é um lugar tranquilo na região do lago, com um deque panorâmico e vistas incríveis, a Serra Nevada de um lado e o lago Tahoe do outro.

O pôr do sol vai ser lindo hoje. O sol já está em um tom laranja resplandecente, descendo até a linha do horizonte. Shane e eu nos sentamos na parte interna, perto de uma janela, à uma mesa que nos dá uma vista da água e do bar lotado. Reconheço a maioria das pessoas.

A final, moro aqui a vida inteira.

Assim que nos sentamos, Shane se inclina sobre a mesa e sussurra:

— Olha! É ele!

— Ele quem?

Olho ao redor, confuso.

— O pirata! Sentado no fundo do bar!

— O cara da barba épica? — Eu me viro para olhar ao redor. — Qual deles…

Não preciso terminar a frase, porque logo o encontro, ocupando uma boa parte do bar, ofuscando o banco onde está sentado. As primeiras impressões são rápidas.

Ombros largos. Cabelo escuro e bagunçado. Uma mandíbula marcada que não vê uma lâmina há semanas. Jaqueta preta de couro, calça jeans preta e coturnos; tudo parece ser ao mesmo tempo caro e desgastado, escolhido aleatoriamente. Grandes anéis de prata decoram seu polegar e seu dedo do meio da mão direita.

Um é uma espécie de anel de sinete. O outro é uma caveira.

Óculos escuros escondem os olhos.

É estranho que ele esteja usando óculos escuros dentro do bar. É como se estivesse escondendo alguma coisa.

— Não estou sentindo a vibe pirata, estou sentindo uma vibe roqueiro. Ou chefe de uma gangue de motoqueiros. Ele parece um personagem da série Sons of Anarchy. Aposto que é traficante.

— E daí? — sussurra Shane, encarando-o. — Ele poderia ser Jack, o Estripador e mesmo assim eu deixaria ele gozar no meu peito.

— Tarado — respondo, com uma voz carinhosa.

Ele não se deixa afetar pelo comentário.

— Tudo bem, eu gosto de homens com essa vibe de macho alfa, pica das galáxias. E daí? Não me julga.

— Vai pra cima, então. Vou pegar uma bebida e assistir daqui pra ter certeza de que ele não vai sacar uma faca ou algo assim.

Chamo o garçom. Ele assente e sorri, indicando que vem à mesa assim que possível.

— Não, isso é coisa de gente desesperada. Eu não corro atrás de homem, não importa o quão bonito seja. Não é digno.

— A menos que você seja um cachorro, o jeito como você tá arfando e babando também não é digno. Vai laçar o garanhão, vaqueiro. Vou ao banheiro.

Eu me levanto, deixando o Shane mordendo o lábio, cheio de dúvidas. Ou talvez seja tesão.

Não me apresso no banheiro, lavando as mãos.

Ah, David. O que aconteceu com você?

Uma onda de desespero toma conta de mim.

Me apoio na pia para me equilibrar, fecho os olhos e solto uma respiração trêmula.

Não sinto uma onda de luto tão intensa há tempos. Geralmente é um sentimento mais leve, que aprendi a ignorar. Uma pontada de dor no peito. Um lamento de angústia soando na minha cabeça que posso diminuir até se tornar quase inaudível.

Quase, mas não completamente.

Dizem que o tempo cura todas as feridas, mas tem que ser muito idiota para acreditar nisso.

Feridas como as minhas não se curam. Só aprendi a controlar o sangramento.

Passando as mãos pelo cabelo, respiro fundo até me sentir no controle de novo. Tenho uma rápida conversa comigo mesmo, coloco um sorriso no rosto e abro a porta para sair.

Bato em alguma coisa gigante e imóvel.

Caio para trás, tropeçando e perdendo o equilíbrio. Antes que eu atinja o chão, uma mão grande pega no meu braço e me segura.

— Cuidado.

A voz é firme, rouca e agradável. Olho para cima e vejo meu próprio reflexo em um par de óculos escuros.

É o pirata. O traficante. O pica das galáxias com a barba épica.

Um arrepio que parece eletricidade desce pelas minhas costas.

Os ombros dele são gigantes. Ele é gigante. Quando estava sentado, parecia grande, mas de pé, é absurdamente alto. Um viking.

Ninguém me chamaria de pequeno e delicado, mas esse cara me faz parecer minúsculo.

O cheiro dele é como as notas de um vinho Cabernet caro: um aroma de couro, defumado e com notas de carvalho.

Sei que meu coração está acelerado porque quase caí de bunda no chão.

— Desculpa. Não vi pra onde estava indo.

Por que estou pedindo desculpas? Ele que estava parado na frente do banheiro.

Ele não responde. Nem solta o meu braço, ou sorri. Ficamos parados em silêncio, sem nos mexermos, até car óbvio que ele não tem intenção alguma de sair da minha frente.

Arqueio as sobrancelhas e lanço um olhar interrogativo.

— Com licença, por favor.

Ele inclina a cabeça. Mesmo sem conseguir ver seus olhos, sei que ele está me analisando dos pés à cabeça.

Quando a cena está prestes a car desconfortável, ele solta meu braço. Sem dizer uma palavra, abre a porta do banheiro masculino e desaparece.

Nervoso, faço uma careta para a porta fechada por um segundo e volto para a companhia de Shane. Eu o encontro com uma taça de vinho branco na mão e outra na mesa para mim.

— Seu pirata foi ao banheiro — digo, ao me sentar. — Se correr, consegue pegá-lo na saída e transar rapidinho no corredor antes de ele levar você para o Pérola Negra para mais uma rodada de piração.

Ele toma um grande gole do vinho.

— Você quer dizer pegação. E ele não tá interessado.

— Como você sabe?

Ele aperta os lábios.

— Ele disse.

— Não!

Estou chocado. Isso nunca aconteceu antes.

— Sim. Eu me aproximei dele, coloquei a bunda pra jogo, e perguntei se ele queria me pagar uma bebida. A resposta dele foi “Não estou interessado”, e ele nem olhou pra mim!

Balanço a cabeça e bebo um gole do vinho.

— Bom, então é isso. Ele é hétero.

— Meu gaydar me diz que ele é totalmente gay, amigo, mas obrigado pelo apoio. — Casado, então.

— Pff. Sem chance. Ele não é domesticado.

Penso no cheiro dele quando nos esbarramos na porta do banheiro, o aroma de feromônios sexuais exalando daquele corpo, e concordo.

Um leão andando por Serengeti não tem ninguém. Ele está ocupado demais caçando algo em que possa cravar suas presas.

O garçom se aproxima para anotar o pedido. Quando vai embora, Shane e eu passamos alguns minutos de papo furado até ele perguntar como estão as coisas com Chris.

— Ah. Ele. Então…

Ele me lança um olhar decepcionado.

— Não acredito.

— Antes que você comece a me julgar, foi ele que terminou comigo.

— Não sei se você sabe disso, mas um uma pessoa espera, em algum momento, transar com a pessoa com quem tá namorando.

— Não seja sarcástico. O que eu posso fazer se meu ânus se aposentou?

— Se não colocar um pau nessa caverna logo, o buraco vai fechar de vez. Você nunca mais vai conseguir transar.

Por mim, tudo bem. Minha libido desapareceu junto com meu noivo. Mas preciso distrair Shane antes que nossa conversa vire uma sessão de terapia.

— Não teria dado certo mesmo. Ele acha que gatos são tão inteligentes quanto humanos.

Ele faz uma expressão de choque.

— Já vai tarde.

— Estou pensando em apresentar ele para a Marybeth.

Sorrio, sabendo que isso vai fazê-lo mudar de assunto.

— Sua colega de trabalho? A que se veste como se fosse Amish?

— Ela não é Amish. É uma professora de educação infantil.

— Ela ensina a fazer manteiga e consertar carroças?

— Não. Ciência. Mas gosta de fazer bordado. E tem cinco gatos.

Dando de ombros, Shane levanta a taça como se fizesse um brinde.

— É um par perfeito.

Brindo com ele.

— Que os dois tenham um futuro longo e cheio de bolas de pelos.

Bebemos. Viro a taça inteira de vinho, ciente de que Shabe está me observando.

Quando coloco a taça de volta na mesa e peço mais uma para o garçom, ele suspira. Em seguida, estende a mão sobre a mesa e aperta a minha.

— Eu te amo, sabia?

Sabendo aonde a conversa vai dar, olho pela janela, para o lago lá fora.

— Acho que toda essa couve que você come tá começando a afetar seu cérebro.

— Eu me preocupo.

— Não precisa. Eu tô bem.

— Você não tá bem. Tá sobrevivendo. É diferente.

E é exatamente por isso que eu deveria ter ficado em casa.

Com a voz baixa, respondo:

— Demorei dois anos pra conseguir dirigir sem pensar: E se eu não fizer essa curva? E se eu bater nesse muro? Mais um ano pra parar de pesquisar “Jeitos indolores de cometer suicídio”. Mais um ano pra parar de chorar aleatoriamente. E mais um pra conseguir entrar em lugares sem procurar pelo rosto dele. Vivo com o fantasma de um homem com quem achei que iria envelhecer, o peso insuportável de perguntas que nunca terão respostas e a culpa avassaladora de saber que a última coisa que eu disse pra ele foi: “Se você se atrasar, eu te mato.” — Desvio o olhar da janela e a encaro. — Então, considerando tudo isso, estar sobrevivendo já é alguma coisa.

— Ai, amigo — sussurra Shane, com os olhos marejados.

Engulo o nó na garganta. Ele aperta minha mão.

— Sabe do que a gente precisa? — pergunta Shane.

— Terapia com eletrochoques?

Ele solta minha mão, se encosta na cadeira e balança a cabeça.

— Você e suas piadas de mau gosto. Eu ia dizer “guacamole”.

— Você vai pagar? Porque o guacamole aqui é uns dez paus por duas colheradas e ouvi dizer que eu sou mão de vaca.

Ele sorri de um jeito carinhoso.

— É um dos seus muitos defeitos, mas pessoas perfeitas são um porre.

— Ok, mas já vou avisando que não como nada desde o café da manhã.

— Amado, eu sei que preciso manter distância quando você come. Lembra aquela vez que a gente dividiu um balde de pipoca quando assistimos Diário de uma paixão? Quase perdi um dedo.

— Mal posso esperar pra ficarmos velhos e você ter demência. Essa sua memória fotográfica é um saco.

— Por que eu que vou ter demência? Você que se recusa a comer vegetais.

— Estou prestes a comer abacate amassado. Não conta?

— Abacate é uma fruta, gênio.

— É verde, certo?

— Certo.

— Então é um vegetal.

Shane balança a cabeça para mim.

— Você não tem jeito.

— Concordo.

Sorrimos um para o outro. Na hora, meu olhar desvia sem querer para o outro lado do restaurante.

Sentado sozinho com as costas para a janela e uma caneca de cerveja na mão, o estranho com quem esbarrei na porta do banheiro me encara.

Agora que ele tirou os óculos escuros, consigo ver seus olhos.

São de um tom de castanho-escuro intenso, como uma cerveja Guinness preta, sob sobrancelhas grossas e cílios pretos espessos. Focados em mim com uma intensidade assustadora, eles não se movem nem piscam.

Eles queimam.

****************************

— T erra para Nicholas. Responda, Nicholas.

Desvio os olhos da armadilha poderosa que é o olhar

daquele estranho e me viro para Shane. Ele me encara com as sobrancelhas levantadas.

— O quê? Desculpa, não ouvi.

— É, eu sei, você estava ocupado sendo comido com o olhar daquela criatura que destruiu o ego do seu melhor amigo.

Envergonhado, solto um suspiro dramático.

— Não existe homem no mundo que possa destruir seu ego. Seu ego é feito do mesmo material que a NASA usa nos foguetes pra eles não entrarem em combustão ao voltarem pra atmosfera.

Ele enrola uma mecha do cabelo escuro no dedo e sorri.

— É verdade. Por falar nisso, ele ainda tá olhando pra você.

Eu me remexo na cadeira. Não sei por que minhas orelhas estão quentes. Não sou do tipo que fica desconcertado por causa de um rosto bonito.

— Talvez eu o lembre de alguém que ele não gosta.

— Ou talvez você seja idiota.

Mas não sou. O olhar dele não é de desejo. Parece mais que eu estou devendo dinheiro para ele.

O garçom volta com outra rodada de bebidas e Shane pede uma porção de guacamole e tortillas. Assim que ele se afasta, ele suspira.

— Ah, não. Lá vem a Diane Myers.

Diane é a fofoqueira da cidade. Ela deve ser recordista mundial de fofoca.

Conversar com ela é como passar pela tortura chinesa da água: um pingo constante, sem parar, até você enlouquecer.

Sem nos cumprimentar, Diane puxa uma cadeira vazia da mesa atrás da nossa, senta ao meu lado e se aproxima, enchendo o ar com um cheiro de lavanda e naftalina. Em um tom baixo, ela diz:

— O nome dele é Kage. Não é estranho? Tipo o ator, Nicholas Cage, mas com K. Sei lá, é um nome muito estranho. A menos que você seja um cantor, claro, ou algum tipo de lutador clandestino. Enfim, na minha época, os homens tinham nomes de respeito, como Robert, William ou

Eugene, ou algo…

— De quem estamos falando? — interrompe Shane.

Tentando ser discreta, Diane aponta com a cabeça para o estranho.

Seus cachos cinza, cheios de laquê, se mexem.

— Do Aquaman — sussurra ela.

— Quem?

— O homem perto da janela que parece aquele ator que faz o Aquaman. Sei lá o nome. O grandão que se casou com a menina do Cosby Show.

Eu me pergunto o que ela faria se eu jogasse minha taça de vinho inteira naquele penteado horroroso. Provavelmente gritaria como um Lulu da Pomerânia.

Imaginar a cena me dá uma certa satisfação.

Enquanto isso, ela continua falando.

— … muito, muito estranho ele ter pagado em dinheiro. Pessoas que andam com tanto dinheiro em espécie assim não são confiáveis. Não querem que o governo saiba o que fazem e tal. Como chamam isso? Viver por baixo dos panos? Isso, acho que é isso que dizem. Em fuga, por baixo dos panos, escondendo algo. Seja o que for, precisamos car de olho nesse tal de Kage. Fiquem de olhos bem abertos, vocês dois. Ainda mais você, Nicholas, meu bem, porque ele é seu vizinho agora. Não esqueça de trancar a porta e deixar as cortinas fechadas. Cuidado nunca é demais.

Ajusto a coluna ao ouvir isso.

— Espera, o que você disse? Meu vizinho?

Ela me encara como se eu fosse ingênuo.

— Não me ouviu? Ele comprou a casa do lado da sua.

— Não sabia que aquela casa estava à venda.

— Não estava. De acordo com os Sullivan, esse tal de Kage bateu à porta e fez uma oferta irrecusável. Uma maleta cheia de dinheiro, acredita?

Me viro para encarar Shane, boquiaberto.

— Quem paga por uma casa com uma maleta de dinheiro?

Diane continua tagarelando.

— Viu só? É tudo absurdamente estranho.

— Quando eles se mudaram? Nem sabia que tinham ido embora.

Diane olha para mim de cara feia.

— Não me leve a mal, meu bem, mas você vive um pouco isolado na sua bolha. Ninguém culpa você por ser distraído assim, claro, considerando tudo pelo que passou.

Pena. Não há nada pior do que pena.

Eu a fuzilo com o olhar, mas antes que eu consiga dar uma resposta inteligente sobre o que vou fazer com o penteado dela, Shane me interrompe.

— Então o estranho gostosão e rico vai ser seu vizinho. Sortudo da porra.

Diane balança a cabeça.

— Ah, não. Não acho que seja sorte. Nem pensar. Ele parece um criminoso, com certeza, e se alguém sabe julgar caráter, esse alguém sou eu. Tenho certeza de que você concorda. Deve se lembrar de que, na verdade, fui eu quem…

— Com licença, senhores. — O garçom a interrompe, graças a Deus. Coloca uma tigela de guacamole e uma cesta de chips de tortilla na mesa e sorri. — Apenas drinques e aperitivos para vocês hoje, ou querem dar uma olhada no cardápio completo?

— Vou jantar álcool, obrigado.

Shane me lança um olhar severo e se vira para o garçom:

— Queremos ver os cardápios, por favor.

— E mais uma rodada — adiciono.

— Claro. Já volto.

Assim que ele vai embora, Diane volta a falar, se virando para mim.

— Você quer que eu ligue para o chefe da polícia e peça pra um carro passar na sua rua à noite? Odeio imaginar você sozinho e vulnerável naquela casa. Foi tão terrível o que aconteceu com você, tadinho.

Ela dá uns tapinhas na minha mão.

Sinto vontade de dar um soco na garganta dela.

— E agora, com esse elemento perigoso no bairro, você precisa tomar cuidado — continua ela. — É o mínimo que posso fazer. Seus pais eram grandes amigos meus antes de se aposentarem e mudarem para o Arizona por causa da saúde do seu pai. A altitude no nosso pequeno paraíso pode ficar difícil com a idade. Quase dois mil metros acima do nível do mar não é para qualquer um, e você sabe como o clima ca seco…

— Não, Diane, não quero que você ligue pra polícia ficar de babá pra mim.

Ela parece ofendida pelo meu tom.

— Não precisa ficar irritado, querido, estou apenas tentando… — Se meter na minha vida. Eu sei. Obrigado, mas vou passar.

Ela se vira para Shane, buscando palavras de apoio que não vêm.

— O Nick tem um cachorro grande e uma arma ainda maior. Vai ficar bem.

Em choque, Diane se vira de novo para mim.

— Você tem uma arma em casa? Meu Deus, e se você levar um tiro por acidente?

Olho para ela com uma expressão séria.

— Quem me dera.

— Na verdade, já que você está aqui, Diane, pode nos ajudar com um dilema que estávamos discutindo antes de você chegar. Adoraríamos sua opinião sobre o assunto — diz Shane.

Diane arruma o cabelo.

— Ah, mas é claro! Como sabem, tenho uma vasta gama de conhecimentos em vários assuntos. Perguntem à vontade.

Essa vai ser boa. Tomo um gole do vinho e tento conter o sorriso.

Com uma expressão neutra, Shane diz:

— Sexo anal. Bom ou não?

Depois de um breve silêncio, Diane diz com uma voz esganiçada:

— Ah, olha só, lá está Margie Howland. Não a vejo há anos. Preciso dar um “oi”.

Ela se levanta e solta um “tchauzinho” apressado.

Eu a observo ir embora e digo em um tom seco:

— Você sabe que em menos de vinte e quatro horas a cidade inteira vai achar que estávamos aqui conversando sobre os prós e contras do sexo anal, né?

— Ninguém dá ouvidos àquela velha doida.

— Ela é melhor amiga do administrador da escola.

— E daí? Você acha que vai ser demitido por comportamentos lascivos? Você é praticamente um padre.

— Que exagero, né?

— Não. Você saiu com três caras nos últimos cinco anos, e não transou com nenhum deles.

— Acho que não é assim que funciona. Além do mais, eu transo bastante. Comigo mesmo. E meus acessórios. Relacionamentos são complexos demais.

— Acho que você não pode chamar esses seus envolvimentos curtos, puritanos e sem emoções de relacionamentos. Precisa transar com alguém pra poder usar esse rótulo. E, talvez, sentir algo pela pessoa.

Dou de ombros.

— Se eu achasse alguém de quem eu gostasse, eu faria isso.

Ele me encara, ciente de que meus problemas com homens têm mais a ver com eu não conseguir me conectar a ninguém do que com encontrar a pessoa certa. Mas ele deixa essa passar e muda de assunto.

— Por falar em sexo, seu novo vizinho está ali te encarando como se você fosse o jantar.

— Literalmente. Não é de um jeito bom. Ele faz tubarões-brancos parecem amigáveis.

— Para de ser tão negativo. Nossa, ele é muito gostoso. Você não acha?

Controlo o desejo de me virar e olhar para onde Shane está olhando e bebo mais um gole do vinho.

— Não faz meu tipo.

— Amigo, aquele homem é o tipo de qualquer pessoa. Não vai me dizer que não está ouvindo sua próstata gemendo.

— Me dá um tempo. Acabei de levar um pé na bunda meia hora atrás.

Ele zomba de mim.

— Ah, sim, você parece estar tão triste. Qual é a próxima desculpa?

— Por que você é meu melhor amigo mesmo?

— Porque eu sou maravilhoso, óbvio.

— Hum. Discordo.

— Escuta, por que você não dá uma de bom vizinho e vai lá se apresentar? Depois convida ele pra conhecer sua casa. Especificamente seu quarto, onde nós três podemos explorar nossas fantasias sexuais, com bastante lubrificante, enquanto Lenny Kravitz canta “Let Love Rule”.

— Ah, vai dar uma de ativo pra cima de mim agora?

— Pra cima de você não, idiota. Pra cima dele.

— Vou precisar de muito vinho pra começar a considerar um ménage.

— Bom, pensa sobre o assunto. E se tudo der certo, podemos começar um relacionamento sério e virar um trisal.

— O que caralhos é um trisal?

— A mesma coisa que um casal, mas com três pessoas.

Eu o encaro.

— Por favor, me diz que você tá brincando.

Shane sorri enquanto se serve de mais guacamole.

— Tô brincando, mas essa expressão na sua cara é quase tão boa quanto a da Diane.

O garçom volta com os cardápios e mais Chardonnay. Uma hora depois, detonamos dois pratos de enchiladas de camarão e duas garrafas de vinho.

Shane cobre a boca para disfarçar um arroto.

— Acho melhor a gente pedir um táxi, amigo— diz ele. — Tô bêbado demais pra dirigir.

— Concordo.

— Por falar nisso, vou dormir na sua casa.

— Te convidei, por acaso?

— Não vou deixar você acordar amanhã sozinho.

— Não vou estar sozinho. Eu tenho o Mojo.

Elebsinaliza para o garçom trazer a conta.

— A menos que você vá pra casa com seu novo vizinho gostosão, não vai se livrar de mim, migo.

Foi uma boa resposta, já que ele sabe que não tenho intenção alguma de ir para casa com o misterioso e hostil Kage, mas a possibilidade de Shane passar o dia seguinte inteiro me vigiando para se certificar de que não vou cortar os pulsos no aniversário do meu quase-casamento é deprimente e joga um balde de água fria em qualquer sensação de bebedeira que eu pudesse estar sentindo.

Olho para a mesa do estranho.

Ele está com o celular no ouvido. Não falando, só escutando e às vezes assentindo. Ergue o olhar e me pega observando-o.

Nossos olhares ficam fixos um no outro.

Meu coração vai parar na garganta. Sinto uma mistura estranha de empolgação, tensão e medo descer pela minha coluna.

Shane tem razão. Você deveria ser amigável. Vocês vão ser vizinhos. Seja lá qual for o problema dele, não deve ser você. Pare de levar para o pessoal.

O coitado deve ter tido um dia ruim.

Ainda olhando para mim, ele murmura algo no telefone e desliga.

— Já volto — digo para Shane.

Eu me levanto, atravesso o restaurante e vou até a mesa de Kage.

— Oi. Meu nome é Nicholas. Posso me sentar?

Não espero pela resposta para me acomodar.

Ainda em silêncio, ele me encara com aqueles olhos sombrios e misteriosos.

— Meu amigo e eu bebemos vinho demais e não conseguimos dirigir pra casa. Geralmente isso não é um problema, a gente pegaria um táxi e viria buscar o carro dele de manhã. Mas ele acabou de me falar que, a menos que eu vá embora com você, ele vai dormir na minha casa hoje. O motivo de eu não querer que isso aconteça é uma longa história, mas vou te poupar dos detalhes. Ah, e antes que pergunte: não, não costumo pedir carona para estranhos. Mas eu soube que você comprou a casa do lado da minha em Steelhead, então pensei em matar dois coelhos com uma cajadada só e pedir uma carona, já que não é fora de mão para você.

O olhar dele recai sobre minha boca. Os músculos da mandíbula tensionam. Ele não responde.

Droga. Ele acha que estou dando em cima dele.

Morrendo de vergonha, continuo:

— Juro que isso não é uma cantada. Só quero uma carona. Por falar nisso, hum… Bem-vindo à cidade.

Ele fica em silêncio e parece refletir por um instante enquanto fico ali sentado, com o coração na boca, ciente de que cometi um grande erro.

Quando ele nalmente abre a boca para falar, a voz sai rouca e baixa:

— Desculpa, cinderelo. Se você está procurando um príncipe encantado, fez uma puta escolha errada.

Ele se levanta de repente, esbarrando na mesa, e se afasta. Sinto a humilhação queimar dentro de mim.

Beleza, então. Acho que não vou passar lá e pedir uma xícara de açúcar emprestada.

Com as bochechas pegando fogo, volto para nossa mesa.

Shane está boquiaberto.

— O que aconteceu?

— Perguntei se ele podia me levar pra casa.

Ele pisca devagar. Quando se recupera do choque, pergunta:

— E aí?

— E aí ele deixou bem claro que prefere prender o pau na porta de um carro. Vamos?

Ele se levanta e balança a cabeça.

— Nossa. Ele rejeitou nós dois. Talvez você tenha razão sobre ele ser casado. — Quando nos aproximamos da entrada, ele adiciona: — Ou talvez ele só seja tímido.

Ou talvez ele seja um assassino em série e me faça um favor.

Mas provavelmente não. Não tenho tanta sorte assim.

************************

** KAGE **

O

fato de ele ser maravilhoso não deveria fazer diferença alguma, mas faz. Ele é tão absurdamente lindo que quase começo a rir quando o vejo se aproximar.

Estava pronto para qualquer coisa, menos para aquilo. Fiquei surpreso.

Odeio surpresas. Geralmente, quando sou pego de surpresa, alguém sai sangrando.

Mas agora aprendi. Na próxima vez que o vir, vou estar preparado. Não vou deixar aquele rosto, nem aquele corpo, nem aqueles olhos incríveis me distraírem do meu objetivo.

Nem o cabelo. Nunca vi um cabelo tão escuro e brilhoso. Parece ter saído de um conto de fadas. Queria enfiar as mãos naquelas ondas escuras e puxar a cabeça dele para trás e… Merda.

Sei que não devo misturar negócios com prazer. Preciso me concentrar no que vim fazer aqui.

Seria mais fácil se ele não fosse tão bonito.

Não gosto de quebrar coisas bonitas.

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