Parte 5: “No Amor e Na Guerra, Vale Tudo”.
A manhã parecia como outra qualquer na Krüger Holdings. Café forte, telas acesas, reuniões previstas. Mas quando a porta do elevador privativo se abriu, trazendo aquele homem de sorriso cínico e olhar sem alma, Thomas entendeu: nada naquela manhã seria como outra qualquer.
O político importante entrou sem pressa, como se fosse o dono do espaço.
— Thomas … sempre bom rever você. — Disse o homem, ajeitando o paletó antes de se sentar, sem esperar convite.
Thomas não respondeu com simpatia, apenas um aceno breve, calculado.
— Então … — Começou o visitante — ... acho que está na hora de conversarmos seriamente sobre aquela comunidade aqui perto da sua sede.
Thomas ergueu os olhos da papelada. O tom dele era neutro, mas o olhar, frio.
— Conversar … sobre o quê, exatamente? — Perguntou com calma desconfortável.
O político cruzou as pernas, relaxado.
— Sobre desapego. Sobre deixar o passado descansar onde ele pertence.
Thomas respirou fundo. O veneno era sutil, mas familiar.
— Você veio aqui para sugerir que eu abandone aquela gente? — Perguntou, a voz começando a perder a paciência.
O político sorriu. Aquele sorriso falso, treinado para câmeras e chantagens.
— Estou dizendo que seria inteligente. As coisas estão mudando. Velhas alianças não servem mais. Estamos entrando em uma nova fase da cidade.
Thomas pousou a caneta devagar.
— Aquela comunidade … — Respondeu — … é especial demais para que eu apenas vire as costas.
O homem insistiu:
— Especial por quê, Thomas? O que tem ali? É um aglomerado antigo, ultrapassado, ineficiente. Não tem nada ali que justifique tanta teimosia.
Thomas fechou os olhos por um instante, buscando força e paciência. Depois falou, firme:
— Minha primeira esposa era de lá.
O político arqueou uma sobrancelha.
— E quando ela morreu … — Continuou Thomas. — … eu prometi que cuidaria daquele lugar. Daquelas pessoas. Da história dela.
A frase caiu no ar como um peso. O político então abandonou a diplomacia:
— Pois chegou a hora de escolher. Aquela área está com os dias contados. As facções estão rondando, as milícias estão disputando terreno, e o tal Joca … — Ele riu. — ... está velho. Acabou. Não sustenta nem o próprio sobrenome.
Thomas sentiu o pulso acelerar, a dor familiar no peito, abafada, mas crescente. Ainda assim, manteve o olhar fixo, orgulhoso.
— E o que você sugere? — Perguntou, com sarcasmo controlado.
— Uma nova administração. Uma nova liderança. Alguém moderno. Alguém mais alinhado com o progresso. Antes que o caos decida por nós.
O coração de Thomas disparou. Ele sabia exatamente o que aquela frase significava. Sabia também que qualquer resposta impulsiva seria usada contra ele. Então encerrou.
— É só isso? — Perguntou, irritado.
O político hesitou. Jamais esperou submissão, mas acreditava que Thomas entenderia a nova dinâmica de poder.
— Por agora, sim. — Disse o homem, disposto a abrir mão daquela batalha.
A guerra ainda estava longe de acabar. “O velho sempre dará lugar ao novo”. Pensou, mas não disse.
Thomas fez um leve aceno para a porta.
— Agradeço a visita. Mande lembranças à sua esposa.
A máscara do político rachou e, por um segundo, ele olhou Thomas como um obstáculo que, cedo ou tarde, precisaria ser removido. Mas, resignado, ele saiu.
Assim que a porta fechou e o silêncio voltou, Thomas levou a mão ao peito, sentiu o coração vacilar, irregular. Respirou fundo, lentamente, até o desconforto ceder. Então apertou o interfone da mesa.
— Chame o Getúlio. Agora. — A voz saiu firme, mas a sombra no olhar revelava algo que nem ele queria admitir: O jogo tinha mudado. E ele estava ficando sem tempo.
A luz atravessava as janelas amplas, dourando a madeira escura da mesa. Thomas apoiava as mãos nela, respirando fundo antes de se sentar. Um leve tremor escapou dos dedos, não tão discreto quanto ele gostaria. Getúlio, ao seu lado, observava com aquele ar estudado de quem se importa, mas que nunca entrega mais do que o necessário.
Thomas riu de si mesmo, baixo.
— Engraçado … — Murmurou. — ... a cabeça ainda voa … ainda resolve, ainda planeja, ainda enxerga além. Mas o corpo … — Ele esfregou o ombro com expressão cansada. — O corpo não acompanha mais, Getúlio. Eu penso rápido, mas me levanto devagar. E negociar, mesmo sentado, já virou maratona para mim.
Getúlio cruzou as mãos atrás das costas, postura impecável.
— O senhor ainda é o homem mais lúcido desta empresa.
— Lúcido, sim. Operacional? — Thomas fez uma careta bem-humorada. — Nem tanto. — Depois suspirou fundo. — Por isso quero te perguntar uma última coisa. Não como patrão, mas como … amigo.
Getúlio inclinou a cabeça, atencioso. Thomas continuou:
— Depois de tudo que você ensinou ao Fernando … depois desses anos todos … ele está pronto?
Houve um silêncio curto, solene, mas quebrado pela porta se abrindo. Nazaré entrou com passos suaves, falsamente surpresa ao ver Getúlio.
— Oh … eu não sabia que estavam em reunião. — Mentira óbvia, treinada. — Posso voltar depois.
Thomas fez um gesto gentil.
— Não. Fique. Quero que ouça também.
Ela sorriu para Getúlio e correu para se sentar no apoio de braço da cadeira do marido. Thomas voltou o olhar para o amigo.
— Então, Getúlio … meu filho está pronto?
Getúlio inspirou profundamente, ponderando, mas já sabia a resposta antes mesmo da pergunta ser feita. Fora combinada com Nazaré, há meses. Desde que a saúde de Thomas se tornou mais frágil.
— Fernando é brilhante. — Getúlio começou. — Sem dúvida alguma. Tem caráter, visão, impulso. Mas ainda falta lapidar. Falta a frieza necessária, a resistência ao desgaste, a casca para absorver os golpes. Mais um ano … talvez dois … e ele estará completamente afiado. No ponto.
Thomas fechou os olhos um instante, aceitando a falsa verdade criada de má fé. Confiava no amigo, confiava na esposa.
— Eu não tenho esse tempo. — Confessou sem drama, apenas a constatação da verdade. — Não tenho mais fôlego para rotinas intermináveis … expedientes corporativos desgastantes, nem para jogos de poder. Não quero comprometer a empresa por insistir onde meu corpo já desistiu.
Após um breve silêncio, Nazaré tentou confortá-lo:
— Não fala assim, querido. Você ainda é o nosso exemplo, nosso Norte …
Getúlio então assumiu um tom respeitoso, quase cerimonial, mas ensaiado, interrompendo Nazaré.
— Então … permita-me fazer uma sugestão provisória. Apenas até Fernando concluir esse último ciclo de preparo. — Thomas o observou, atento. — Nomeie Nazaré como presidente substituta da Krüger Holdings.
Nazaré piscou, surpresa também ensaiada, milimetricamente cronometrada. Getúlio continuou:
— Confesso que não é a solução ideal. Mas, na prática, ela já assumiu mais de setenta por cento das suas obrigações e responsabilidades nos últimos meses. — Ele lançou um olhar breve para Nazaré, um sinal quase imperceptível. — A transição seria suave. Natural.
Nazaré tocou o peito, quase ofendida.
— Não, Getúlio … Fernando é o herdeiro legítimo. A empresa é do meu marido e do meu filho. Eu … eu apenas ajudo quando necessário. Não creio que eu esteja à altura desse cargo.
A voz dela tremia na medida exata. Thomas sorriu, emocionado, acreditando na humildade. Getúlio completou, com a firmeza de quem fecha a armadilha:
— Não seria como presidente absoluta. Seria mais como uma guardiã. Uma tutora. Alguém para proteger o legado, a família e o tempo necessário para que Fernando esteja pronto.
Nazaré baixou os olhos, respirando fundo, ainda interpretando.
— Mas então … por que não você, Getúlio? Você conhece mais esse império do que qualquer um nesta sala. Se alguém deveria ocupar essa cadeira até Fernando amadurecer … deveria ser você.
Thomas ergueu a mão antes que Getúlio respondesse.
— Não. — Sorriu cansado. — Getúlio já faz o trabalho mais importante aqui dentro. Ele é quem impede que tudo desmorone. Quem conhece cada bastidor, cada fissura, cada risco. O que ele faz … — Thomas bateu o dedo na mesa. — … vale mais que qualquer presidência.
Getúlio apenas inclinou a cabeça, humilde, discreto, impecável. Thomas respirou fundo, decidido.
— Está resolvido. Nazaré assume a presidência até Fernando estar pronto. E quando ele estiver pronto … entregamos tudo nas mãos dele. Anunciaremos ao conselho em breve a minha decisão.
A máscara de Nazaré brilhou com gratidão calculada. Getúlio sorriu por dentro — mas apenas por dentro.
Thomas então passou a mão no peito, o cansaço já evidente.
— Nazaré … — Murmurou, com esforço — acho que já deu por hoje. Me leve pra casa.
Ela se levantou, entregou a bengala ao marido, oferecendo o braço. Uma esposa amorosa, parceira … vencedora.
Getúlio os acompanhou até a porta, observando. Quando a porta se fechou, ele sorriu. Aquele sorriso pequeno, perigoso. Sorriso de quem planeja, manipula e vê suas ações resultaram em absoluto sucesso.
{…}
A sala de Fernando era ampla, mas do lado oposto à sala do pai, silenciosa e organizada demais para o caos que ocupava a cabeça dele. Há meia hora ele encarava o monitor sem ver nada. Nem números, nem contratos, nem prazos. Só um rosto. Só um par de olhos. Tentando adivinhar o nome que ele ainda não tinha.
Eduardo estava sentado no sofá, mexendo no celular enquanto observava o chefe e amigo com um meio-sorriso.
— Pensando naquela mulher de novo? — Provocou.
Fernando não respondeu de imediato. Apenas virou o telefone na direção dele, reproduzindo pela milésima vez o vídeo conseguido a muito custo, através de um pequeno suborno, do ensaio na quadra da escola: Monalisa assustada, coagida, e sua ação automática, impensada, que resultou na confusão com Vinícius.
— Não é brincadeira, Eduardo. Eu preciso encontrá-la. — A voz saiu baixa, decidida. — Se esse vídeo não fosse suficiente, eu já teria desistido. Mas agora temos um rosto. E eu quero um nome.
Antes que Eduardo respondesse, alguém bateu e depois abriu a porta.
— Com licença, senhor Fernando. — Disse uma voz tímida na porta. — Fui enviado pelo TI para atualizar o sistema de segurança e o pacote administrativo.
Era um dos técnicos: jovem, desengonçado, daqueles que falavam demais quando ficavam nervosos. Fernando assentiu, ainda distraído.
— Faça o que tem que fazer.
O rapaz puxou um banquinho dobrável, jamais sentaria na cadeira do patrão, e começou a digitar. Enquanto as barras de progresso carregavam, ele inevitavelmente captou parte da conversa.
— Você conseguiu mesmo o vídeo, né! — Eduardo exclamou, curioso.
— Consegui. — Respondeu Fernando. — Precisei molhar algumas mãos, não foi difícil.
Eduardo encarava o amigo.
— Agora só falta descobrir quem ela é. Quero nome, telefone, endereço … tudo. — Concluiu Fernando.
O técnico, que já era naturalmente intrometido, olhou para o celular de Fernando esperando não ser percebido, mas foi inevitável a exclamação:
— Ué … mas essa é a Monalisa, pô!
Fernando virou devagar, como se não tivesse entendido.
— Quem?
— Monalisa. — O rapaz apontou para o vídeo, quase sorrindo. — Você não lembra dela, patrão?
Eduardo arregalou os olhos. Fernando piscou algumas vezes, incrédulo.
— Você sabe quem ela é? — Perguntou, a voz grave. — Eu deveria saber?
O técnico riu, achando aquilo divertido.
— Ela trabalha aqui! Ou melhor … trabalhava, né? Tava sempre passando nos corredores. É a mulata da limpeza.
Fernando ficou imóvel. O coração bateu forte. Ele engoliu seco.
— E agora? Onde ela está?
— Ah, foi transferida faz pouco tempo. Mandaram pra sucursal da Zona Leste.
O silêncio que se instalou era elétrico. Até que o técnico, completamente alheio ao peso do que dizia, continuou:
— Mas com aquele uniforme e touca de faxina … nem dava pra reconhecer mesmo. No vídeo parece uma rainha de bateria. Até diferente … mais viva, sei lá.
Sem pensar, Fernando se levantou e agarrou o rapaz pelo colarinho da camisa, puxando-o para perto. Eduardo se levantou rápido, mas não interferiu.
— Você tem certeza? — Perguntou Fernando, com os olhos fixos nos dele. — Tem certeza absoluta de que é ela?
O técnico levantou as mãos, nervoso.
— T-tenho, senhor … lógico que tenho. Eu conheço muita gente daqui. Todo mundo sabe quem é a Monalisa.
Fernando o soltou.
— Então me mostra tudo. Agora. Registro de funcionário, endereço, histórico, contrato … tudo o que existir sobre ela.
O rapaz girou no banquinho, abrindo o sistema interno. Fernando se inclinou por cima dele, impaciente.
— E as câmeras do baile … — Murmurou. — Ela entrou mascarada, mas deve ter passado pela portaria. Quero ver as gravações daquela noite também.
De repente o técnico parou. O rosto dele mudou.
— Eita.
— O que houve? — Eduardo perguntou.
Os olhos do rapaz seguiram fixos na tela.
— O … o arquivo dela está bloqueado.
Fernando franziu a testa.
— Como assim bloqueado?
— Bloqueado mesmo. — Ele apontou para o monitor. — Arquivo restrito. Acesso negado.
Fernando sentiu o estômago afundar.
— Por ordem de quem?
O técnico hesitou. Digitou mais uma sequência no teclado. Tentou acessar por outro caminho. Tentou um terceiro. Nada.
— Senhor … alguém trancou o perfil dela com permissão “master”. Isso só pode ser feito por alguém de cima … diretoria ou chefia de RH.
Fernando começava a ficar furioso com a situação.
— Nome. — Disse num fio de voz. — Eu quero o nome de quem bloqueou esse arquivo. Use minha senha, o que for preciso.
O técnico tentou novamente, empurrou o teclado para que ele digitasse a senha, mas nada adiantou. O arquivo permanecia bloqueado.
Eduardo, brincando, tentando aliviar a tensão, disse:
— Alguém está tentando te manter longe da Cinderela.
Fernando se virou novamente para o técnico:
— Existe alguma forma de desbloquear o arquivo? Mesmo que não seja ética ou não ortodoxa?
O técnico sorriu, adorava uma boa intriga, uma fofoca fresca:
— Ter, até tem … mas para o meu bem, para evitar problemas futuros, já que a corda sempre rompe do lado mais fraco, eu vou apenas te guiar pelo processo, combinado? Faça você mesmo.
Fernando entendeu a situação do rapaz. Estava praticamente o ordenando a cometer um crime, a quebrar as regras de proteção de dados da empresa.
— Ok! A responsabilidade é toda minha. Vamos em frente.
O rapaz deslogou do computador de Fernando, limpou sua presença no sistema, e abriu caminho para que o patrão fizesse login.
Não foi difícil, com a orientação adequada, contornar as barreiras do sistema. Em menos de cinco minutos, a Cinderela finalmente tinha nome, RG e endereço.
{…}
A noite começou como tantas outras na casa dos Krüger. Thomas jantava devagar, sem pressa, cortando o filé mignon em pedaços pequenos, enquanto Nazaré observava com atenção discreta. Água com limão ao invés de vinho, salada leve, nada que pudesse irritar o estômago ou o coração dele.
— Está gostoso? — Ela perguntou com um sorriso suave, tocando a mão dele por um instante.
— Sempre fica quando você insiste nessas dietas. Obrigado pelo cuidado e atenção. — Ele agradeceu, tentando brincar, mas havia cansaço na voz.
Ela riu baixinho, aquela risada delicada e treinada que nunca levantava suspeita.
— Eu só quero ver você bem. — Disse, enquanto colocava mais um pouco de legumes no prato dele. — Você se esforçou demais hoje.
Thomas suspirou, cansado demais para negar ou resistir.
Nazaré já tinha dispensado os empregados naquela noite e precisava apenas de uma última confirmação. Ela enviou uma mensagem para o enteado:
“Querido, eu e seu pai já estamos jantando. Quer que eu deixe comida para você?”.
Fernando não demorou a responder:
“Obrigado, mas não. Ficarei aqui no Eduardo hoje. Estamos trabalhando em algumas coisas. Papai está bem?”.
Nazaré, madrasta zelosa, ao menos na aparência, o tranquilizou:
“Seu pai está bem, apenas cansado. Lembre-se de comer e dormir adequadamente. Boa noite, querido”.
Depois do jantar, foram para a cama assistir uma série, daquelas que nenhum dos dois prestava realmente atenção. Nazaré ajeitou a cabeça dele em seu colo, passou os dedos nos fios grisalhos com gentileza e, quando ele começou a ficar sonolento, ofereceu o comprimido.
— Toma, vai te ajudar a descansar melhor.
Ele nem hesitou. Engoliu com um gole d’água e, minutos depois, já respirava mais fundo, pesadamente, entregue ao descanso que acreditava ser um cuidado, não um cálculo.
Quando o primeiro ronco suave escapou, Nazaré já sabia: ele dormiria até de manhã. A dosagem era perfeitamente calculada para não fazer mal, apenas para mantê-lo em estado de sono profundo.
Ela se levantou devagar, ajeitou o cobertor sobre ele e beijou sua testa com perfeição coreografada. Às câmeras, à casa, ao mundo, sempre uma esposa dedicada.
Enviou, então, uma nova mensagem:
“Pode vir. Thomas já dormiu e Fernando não voltará para casa hoje. Já dispensei os empregados e os dois seguranças que ficaram são gente nossa”.
E sorriu ao ser respondida:
“Chego em dez minutos”.
Trocou a camisola confortável por uma lingerie ousada. Olhou-se no espelho, admirando a própria aparência. Era realmente uma bela mulher, impecável.
Silenciosa, desceu as escadas, apenas o som suave de seus passos ecoando nos mármores caros. A mansão estava quase às escuras, iluminada por lâmpadas de tom quente nos corredores e pela luz vinda discretamente do salão principal.
Getúlio já estava lá. Encostado ao piano, sem gravata, camisa parcialmente aberta, olhar atento. O olhar de alguém que não pedia, tomava. Ela sorriu ao vê-lo. Ele não sorriu, apenas a devorou com os olhos.
— Demorou. — Ele disse, voz baixa, firme, carregada do desejo que ela conhecia bem.
Nazaré caminhou até ele com passos lentos e seguros, como se a casa fosse a sua passarela.
— Não podemos ser descuidados. — Respondeu, já o abraçando. — Mas vale a pena quando é para isso.
Getúlio se endireitou, aproximando-se até ela sentir a respiração dele contra sua pele.
— Hoje você deu o primeiro passo para ser a mulher mais poderosa dessa família. — Murmurou.
Nazaré ergueu o queixo, altiva.
— Eu sempre fui, Getúlio. Hoje, você só ajudou a tornar isso oficial.
Ele segurou sua cintura com firmeza, colando os corpos, sem pedir.
— E agora falta apenas uma coisa.
Ela arqueou uma sobrancelha, provocando:
— E o que seria?
Os lábios dele roçaram os dela, só o suficiente para prometer, não para satisfazer.
— Você me mostrar … — Disse, voz rouca. — … o quanto está satisfeita com o rumo das coisas.
Nazaré sorriu devagar, deixando uma faísca de perigo iluminar os olhos.
— Então, vem comigo, Getúlio.
— Por quê?
Ela encostou seus lábios no ouvido dele antes de responder.
— Porque eu não pretendo fazer silêncio esta noite.
A porta de um dos quartos de hóspedes fechou-se com um baque surdo, cortando o mundo exterior. Getúlio ainda estava com a mão na maçaneta, seu corpo voltado para a madeira maciça da porta, tentando recuperar o fôlego que Nazaré lhe roubara com um único sussurro.
Mas ela não lhe deu tempo. Suas mãos agarram a camisa, puxando-a com uma força que não admitia hesitação. A boca dela encontrou a dele não num beijo, mas numa afirmação de posse. Era um beijo que não pedia, exigia submissão.
Getúlio respondeu na mesma intensidade, suas mãos largas descendo pelas costas dela, moldando-se à curva de sua cintura antes de se enterrarem em seu quadril, puxando-a contra o seu corpo. O tecido fino do hobby era uma barreira irritante. Ele podia sentir o calor dela através do material, a onda de fogo que parecia irradiar de sua pele.
Ela se afastou, ofegante, finalizando o beijo, um fio de saliva ainda os conectando. Seus olhos carregados de desejo, fixaram-se nos dele.
— Devagar demais, Getúlio. A paciência não é virtude hoje.
As palavras eram uma ordem sussurrada, um desafio. Suas mãos subiram, os dedos trabalhando os botões da camisa com uma destreza impaciente, empurrando o tecido pelos seus ombros até cair no chão. Ele tentou ajudá-la, mas ela afastou suas mãos com um safanão suave, mas firme.
— Eu cuido disso. Você só precisa ficar parado.
Ele obedeceu, o sangue latejando em suas veias, cada batida do seu coração um tambor ecoando na sua audição. Nazaré desfez os botões um a um, a respiração quente contra o tórax exposto. Ela se Inclinou e beijou o abdômen definido. Traçou um caminho de descida com a língua. Uma linha úmida e quente que fazia os seus músculos abdominais contraírem-se involuntariamente.
— Você já está tremendo? — Ela murmurou. — Gosto disso. De como todo o seu corpo me deseja.
Suas mãos exploravam o corpo do amante, explorando cada contorno, cada cicatriz, cada músculo tensionado. Desceram até o cinto, e o som do couro sendo aberto pareceu um disparo no quarto silencioso. O fecho metálico do jeans rangeu sua rendição. Nazaré ajoelhou-se, e o mundo de Getúlio estava prestes a explodir em prazer.
Ela olhou para cima, mantendo contato visual enquanto, com uma lentidão agonizante, puxava o zíper para baixo. Ela massageava o pau ainda por cima do tecido.
— Nazaré… — Um gemido baixo escapou.
— Calado! — Ela ordenou, seu hálito quente soprando sobre o algodão fino da cueca, umedecendo o tecido.
Nazaré também já não aguentava mais, precisava sentir, precisava extravasar. Ela abocanhou a pica de uma vez, enfiando o máximo que conseguia na boca, o envolvendo completamente, numa sucção úmida e quente que fez os olhos de Getúlio revirarem.
— Caralho … Ahhhhh … hoje você tá com tudo …
Sua cabeça caiu para trás contra a porta com um baque surdo. Nazaré não poupou. Sua boca era um instrumento de volúpia, para o prazer total do amante, subindo e descendo com um ritmo constante, a língua lambendo em círculos a cabeça sensível a cada subida.
— Cacete, mulher … assim não vou durar muito … Ahhhh …
Nazaré estava concentrada, apenas sons guturais, uma série de grunhidos que eram tanto de satisfação quanto de êxtase. A visão daquela mulher poderosa e irresistível, de joelhos para ele, foi a coisa mais erótica que ele já vira. Suas mãos apertaram seus cabelos, e ela gemeu de aprovação, o som vibrando em torno da cabeça do pau, intensificando a sensação.
De repente, ela parou, levantando-se com uma graça felina que o deixou tonto. Ela o puxou para longe da porta, em direção ao grande sofá que decorava o canto do quarto.
— Agora … — Ela ordenou, virando-se e se apoiando nos joelhos, arrebitando bem a bunda para a visão lasciva que recebia.
Getúlio praticamente rasgou a delicada calcinha de renda, seu olhar vidrado na curva perfeita das nádegas, o convite úmido e obsceno foi sua ruína.
— Agora, Getúlio. Me mostra o quanto você me deseja. Me mostra que meu homem, meu cúmplice, meu parceiro.
Ele foi até ela num estado de possessão pura. Suas mãos a agarraram pelos quadris, seus dedos se afundando na carne macia. Ele se posicionou, pincelou a cabeça do pau na entrada da xoxota, bateu delicadamente com a rola no grelo, pequenas pancadinhas que faziam Nazaré se arrepiarem inteira.
— Me fode … fode essa buceta …
A cabeça do pau pressionou contra a entrada já encharcada. Forçando sem ser bruto, se ajustando, preenchendo o espaço … o ar escapou dos pulmões dele num suspiro rouco. A tensão era deliciosa, um limiar de expectativa e prazer.
— Vai, não para … Ahhhhh … como eu preciso de você dentro de mim hoje … Ahhhhh … é o meu presente …
Nazaré olhou para trás por sobre o ombro, seus lábios inchados e vermelhos num sorriso selvagem.
— Mete … entra de uma vez … está esperando um convite por escrito?
O desafio foi a centelha final. Getúlio enterrou-se nela num único e profundo empurrão, recebendo como resposta um grito. Não de dor, mas de triunfo.
— Isso … Ahhhh … bem assim …
Ela era apertada, quente, perfeita … e Getúlio passou a estocar com a velocidade e a determinação que ele sabia que ela adorava. Estocadas profundas, impiedosas, tirando o pau quase todo, e voltando a ficar até o fundo, indo e voltando forçando e tirando…
Nazaré gemia alucinada, entregue, apenas curtindo o redemoinho de sensações que inebriavam os sentidos.
— Ahhhhh … mais forte … mais fundo … não para …
Os quadris iam e viam, um embate feroz, cada investida uma tentativa de mergulhar mais fundo, de se perder completamente naquele calor que o consumia. O sofá rangeu em protesto, um som abafado pelo gemido alto e contínuo que Nazaré soltava a cada estocada recebida.
— Mais forte … mete, seu puto … Ahhhhh … fode essa buceta …
Ele era puro poder, uma força da natureza canalizada nela, e por um momento, ela se permitiu ser varrida por aquela correnteza. Suas unhas cravaram-se no tecido macio do sofá, buscando tração. Mas ser submissa não um fetiche que a agradava. Controle, aquele era o seu território. Sempre seria.
Com um esforço súbito, ela se empurrou para trás, contra ele, forçando uma pausa. A surpresa fez com que ele a soltasse por uma fração de segundo.
— Para. Para.
Não era um pedido. Era uma lâmina, afiada e fria, cortando através da névoa de tesão que envolvia a sua mente.
Getúlio ficou imóvel, ofegante, o suor escorrendo pelas têmporas. O corpo tremia contra o dela, cada músculo tensionado até o limite. Ele estava perto do clímax, e ela sabia. Ela tinha colocado ele lá.
— O que foi? — A pergunta saiu arrastada, um sussurro áspero.
Nazaré se virou com aquela graça deliberada que o deixava maluco, deslizando para fora do alcance dele, e um sorriso lento e perigoso curvou seus lábios.
— O sofá é muito … impessoal. — Ela deu um passo para trás, em direção a cama. — E eu quero ver seu rosto, quero olhar nos olhos.
Ele a seguiu com o olhar, a respiração ainda pesada, uma fera acuada seguindo o caçador, cruzando o pequeno espaço entre eles. Cada passo era pesado, carregado de intensidade, incendiando o ar.
Quando ele parou diante dela, ela o empurrou, fazendo cair de costas na cama. Nazaré montou sobre ele, os joelhos de cada lado dos seus quadris, afundando o colchão macio. Ela se instalou em seu colo, esfregando a buceta no pau, sarrando gostoso, espalhando seu mel, como se marcasse o território que a pertencia. Suas mãos apoiaram-se em seu peito, sentindo o coração disparado martelando contra as palmas. Ele estava perfeito daquele jeito, à mercê das vontades dela.
— Toda essa força … — Ela sussurrou, inclinando-se para frente, os seios roçando o peito suado de Getúlio. — Toda essa autoridade que você exala lá fora … e aqui está, tremendo debaixo de mim.
Ele tentou erguer as mãos para segurá-la, mas ela as pegou pelos pulsos, forçando-as para trás, contra o colchão.
— Não. Suas mãos ficam aí. Você toca quando eu deixar.
A submissão estava completa. Ele afundou com o peso dela, os pulsos cedendo sob o toque firme, rendido. Seus olhos, escuros e famintos, nunca deixaram os dela.
Satisfeita, Nazaré levantou-se ligeiramente sobre os joelhos. Uma de suas mãos desceu entre eles, seus dedos encontrando o membro. Ela o guiou até a entrada da xoxota, já encharcada e latejante. A cabeça pressionou contra seu clitóris, ela friccionou por alguns segundos, gemendo baixinho.
— Ahhhh … que delícia … que tesão …
E então, ela desceu. Lenta. Tão lentamente. Centímetro a centímetro, o envolvendo naquele aperto úmido e perfeito. De olhos fechados, sentindo, a cabeça inclinando para trás ... Ela podia sentir cada veia, cada pulso dele dentro de si, um preenchimento que a fazia viajar a dimensões de prazer absoluto.
Getúlio tentou se mover, iniciando movimentos lentos com o quadril, mas foi repreendido.
— Não se mexe … — Ela ordenou, a voz tensa pelo esforço para mantê-lo preso.
Ela parou, totalmente sentada sobre ele, tomando-o por completo. Uma posse total e irrestrita.
Ela abriu os olhos e olhou para ele. Seu rosto era uma máscara de agonia estática.
— Eu gosto assim … obediente … paciente …
— Nazaré … por favor … — Ele suplicou.
— Por favor, o quê? — Ela provocou, começando a se mover. Apenas um balanceio suave dos quadris, um círculo lento que o fazia gemer, seus olhos revirando de prazer.
— Por favor, não para.
Ela riu, um som baixo, vitorioso.
— Isso. Bom garoto …
Então ela começou a se mover de verdade. Subindo, descendo, esfregando para a frente e para trás, rebolando … Suas mãos, livres, agarraram seus ombros, suas unhas cravando-se na carne. Ela usava os músculos fortes das coxas e do abdômen para subir e descer sobre ele, controlando cada centímetro, cada milímetro daquele mergulho. Para cima, quase o libertando completamente, a cabeça quase escapando, fazendo os dois suspirarem de frustração. E então, para baixo, afundando-se de uma vez, até que seus corpos se colassem, e ele pudesse sentir o calor úmido dela contra a base do seu corpo.
— Ahhhh … putinha gostosa … safada …
O ritmo era dela. A profundidade era dela. O ar no quarto estava pesado, cheio do som de pele se encontrando, dos gemidos roucos dele, das palavras sussurradas que ela deixava cair como gotas de veneno doce.
— Você se perdeu, não foi? — Ela arfou, acelerando o ritmo, suas costas arqueando. — Lá fora, manda em tudo. Aqui, dentro de mim, é onde você se encontra. Onde você precisa estar.
Ele não negou. Sua cabeça estava jogada para trás, os músculos do pescoço cordados, a boca aberta em um gemido contínuo. Suas mãos se contorciam contra o lençol, os dedos procurando desesperadamente algo para agarrar.
— Querendo fugir do controle o tempo todo … Ahhhhhhhhhh … e tudo que você precisava era de alguém forte o bastante para obrigar você a entregá-lo.
Seu movimento tornou-se mais rápido, mais urgente. O prazer construía uma espiral dentro dela, um turbilhão que começava na base da sua espinha e ameaçava consumi-la. Ela podia sentir que ele estava lá também, à beira, seu corpo todo rígido, a respiração um rangido.
— Não! — Ela ordenou, o comando saindo entre dentes cerrados. — Você não vem até eu deixar. Segura.
Ele gemeu, um som de puro desespero. Sua expressão era de tortura, seus olhos implorando.
Ela diminuiu o ritmo novamente, rodeando os quadris, esfregando-se contra ele, prolongando a agonia dos dois. O suor escorria pelo vale entre seus seios, reluzindo pela luz fraca do abajur. Ela estava perto … ele estava perto … tão perto …
— Agora — Ela se rendeu, a voz falhando finalmente. — Agora, Getúlio. Me mostra. Me entrega tudo.
A permissão foi o estouro final. Seu corpo inteiro contraiu-se num espasmo violento. Um urro de prazer, um som primitivo que ecoou nas paredes.
— Caralho … Ahhhhh …
Ele jorrou dentro dela, uma torrente quente e interminável, e a sensação foi o que levou Nazaré junto, caindo sobre ele, seu próprio grito abafado contra o pescoço suado do amante. As contrações internas em cascata, uma onda avassaladora, apertando, espremendo cada última gota de prazer dele, enquanto a sua própria maré a arrastava.
O mundo desapareceu num clarão branco e quente, ao som da respiração ofegante deles, ao cheiro intenso de sexo e suor.
Por um longo momento, não houve nada além daquilo. A implosão silenciosa. O ápice do prazer carnal.
Aos poucos, a realidade foi voltando. O peso do corpo dela sobre o dele. A pulsação lenta que ainda os percorria. Nazaré levantou a cabeça, o cabelo colado ao seu rosto. Ele estava olhando para ela, seus olhos escuros ainda vidrados, uma expressão de espanto e rendição completa.
Ela sorriu satisfeita, e então deslizou para o lado, deitando-se ao seu lado, suas pernas ainda entrelaçadas com as dele. Sua mão encontrou o peito de Getúlio, sentindo o coração ainda acelerado.
— Então … — Ela disse, a voz rouca e grosseira. — Satisfeito por foder a nova presidente da Krüger Holdings?
{…}
A casa de Joca não era luxuosa como a de políticos, artistas ou empresários, mas exalava poder antigo. Uma ilha de conforto em meio a barracos e casinhas simples de cômodos minúsculos. Fotografias da escola de samba na parede, celebridades, camisas de jogadores de futebol autografadas, troféus de Carnaval, imagens de santos entre obras de arte valiosas ... Uma construção sólida, impregnada de histórias.
Joca estava sentado em sua cadeira preferida, as mãos firmes apoiadas no braço da poltrona, quando o major entrou sem pressa, sem medo, sem cerimônia.
— Boa tarde, Joca. — Disse o policial com tom neutro.
— Major. — Respondeu o bicheiro, sem levantar-se.
O clima era de respeito frio, dois predadores analisando os movimentos um do outro. O major chegou perto, tirou o boné, colocou sobre a mesa e se sentou como se estivesse em sua própria casa.
— Então … — Começou ele — … pensou na minha proposta?
Joca não respondeu de imediato. Se serviu de um gole de café, estendeu a cortesia à visita, pensando se deveria adoçar o líquido com pólvora ou açúcar.
— Proposta? — Repetiu por fim, com sarcasmo. — Você chama aquilo de proposta? Parecia mais uma ameaça elegante, embrulhada em falsa cordialidade.
O major sorriu. Aquele sorriso de quem está acostumado a ouvir insultos sem permitir que penetrem sua barreira mental.
— Você mantém sua escola de samba. — Continuou ele, ignorando a provocação. — Mantém o jogo. Mantém o respeito histórico. Mas abre mão … de todo o resto.
Joca soltou uma risada seca.
— Você sabe muito bem quem são as pessoas que me apoiam. Quem está comigo há décadas. — Seu olhar endureceu. — Tem certeza de que quer entrar em guerra comigo?
O major não respondeu imediatamente. Em vez disso, abriu a caixa de madeira personalizada na mesa do bicheiro e retirou um charuto grosso e caro — cubano, claramente — e começou a cortá-lo com precisão. A pausa silenciosa era calculada, quase teatral. Acendeu. Tragou devagar, saboreando o suspense. A fumaça subiu densa entre os dois. Só então ele falou:
— Joca … vocês tiveram o tempo de vocês e eu respeito isso. — Outra tragada. — Mas os tempos mudaram. A cidade mudou. Nós já tomamos mais da metade do estado. Agora somos … digamos … um braço extra do governo.
Joca sorriu. Meio debochado, meio tenso.
— Um poder paralelo, quer dizer? — Provocou.
— Quase. — Respondeu o major, com um riso curto. — Um poder complementar.
Após um silêncio tenso, Joca pousou a xícara de café na mesa, devagar.
— E o que a minha pequena comunidade tem de tão especial? — Perguntou, irônico. — Nós não somos centro de nada. Não somos estratégicos.
O major inclinou-se para frente.
— Vocês têm o que mais importa: pessoas dispostas a consumir, a ter um pouquinho mais de qualidade de vida.
O Major o encarou, mais duro.
— Nós já dominamos toda a região, Joca. Não podemos deixar uma única área escapar. Se abrimos exceção … vira precedência. E isso, meu amigo … — Ele bateu de leve o charuto no cinzeiro, se livrando da cinza. — … eu não posso permitir.
Joca cerrou a mandíbula e o major percebeu. Era hora de apertar, mas sem esquecer da falsa gentileza.
— E estamos sendo muito generosos com você. Por sua história. Pelo samba. Pelo respeito que o povo tem ao seu nome. — Olhou nos olhos dele. — Mas generosidade tem prazo.
O ar ficou mais pesado. Joca respirou fundo. Depois foi direto:
— E o meu filho?
O major recostou-se, já esperava a pergunta.
— Ah, sim. O garoto.
A forma como ele disse “garoto” fez Joca sentir o sangue subir.
— Ele cometeu alguns deslizes. — Continuou o major. — Usou nosso nome, nossa influência. Extorquiu gente de bem, o próprio povo. Fez confusão onde não devia.
Os olhos do velho bicheiro ficaram sombrios.
— Eu sei. — Admitiu. — E estou resolvendo isso.
— A gente sabe que vocês estão com problema de disciplina. — Respondeu o major, ainda sereno. — Mas não estamos aqui pra eliminar ninguém. Não somos amadores.
Outra longa tragada.
— Se você colaborar, Joca … eu posso garantir ... — Ele olhou fixo para o bicheiro, como quem diz: “eu cumpro minhas ameaças mais que minhas promessas”. — … que não vamos tocar no garoto.
Joca entrelaçou os dedos. Pensou em Vinícius criança. Pensou no que ele se tornou. Na esposa falecida …
— O que vocês querem? — Perguntou, por fim.
O major abriu um sorriso satisfeito.
— Simples: mande ele embora. Pra longe. Interior, outro estado, outro país … tanto faz. Desde que desapareça do mapa.
— E eu?
— Você fica, óbvio. Você é o rosto na propaganda, a falsa manutenção da história. Com seu samba. Com seu jogo. Com seu título de lenda viva. — O policial apagou o charuto no cinzeiro. — A coroa ainda brilhará orgulhosa na sua cabeça, apenas o território estará sob nova direção.
Joca fechou os olhos por um instante. Era a primeira vez em décadas que alguém dizia abertamente: Seu reinado acabou.
Quando abriu os olhos, o tom era grave, não derrotado, mas calculado.
— Se eu concordar … quanto tempo tenho?
O major se inclinou lentamente, sorrindo de forma conciliadora.
— Menos do que imagina.
E levantou-se.
— E mais do que merece.
Depois saiu. Sem se despedir. Sem olhar para trás. Deixando Joca com a sensação de que aquela tarde marcava o fim de uma era. E o começo de uma guerra.
{…}
Numa sala abafada e de iluminação fraca dentro de um prédio antigo de uma comunidade próxima, o barulho das motos e conversas lá fora pareciam distantes. Lá dentro, tudo era silêncio, concentração e hierarquia. Cerca de quinze homens — todos policiais — ocupavam cadeiras improvisadas: caixas, bancos velhos, até mesmo caixotes de feira. Alguns mascavam chicletes, outros fumavam, todos esperando a voz de comando.
O major chegou por último, sempre com aquela postura rígida e olhar frio de quem já viu guerra e aprendeu a gostar do cheiro de sangue.
Vágner, encostado na parede, mantinha o olhar firme, mas carregado de algo pessoal. E o major sabia. Foi assim que conseguiu dobrá-lo, trazer o jovem, outrora honesto policial, para o lado negro da força.
Depois de ajeitar a boina sobre a mesa, o major começou:
— Conversei com o Joca.
Alguns homens riram baixo, já sabiam o resultado.
— Ele acredita … — Continuou o major. — … que ainda tem controle, que ainda tem alianças, e que o nome dele continua impondo respeito. — Ele respirou fundo, sem pressa. — Então já sabem: ele não vai recuar. Orgulho demais. Arrogância demais.
Do fundo da sala, um policial magro, óculos torto, camisa suja de café, levantou a voz:
— Major … tudo já está pronto. É só o senhor dar a ordem.
Outro, sentado ao lado do major, completou com desdém:
— Vai ser a tomada mais fácil que já fizemos. Eles são fracos, pequenos … uma caricatura de organização. Não vai ter resistência.
O major ergueu a mão, pedindo silêncio, e todos o atenderam imediatamente.
— Fácil não é desculpa para descuido. — Sua voz tinha firmeza militar e veneno calculado. — Falta uma semana pro carnaval, e isso é uma vantagem estratégica rara. Durante o desfile, a comunidade vai estar vazia, o foco será a avenida, a TV, a festa. Todo mundo vai estar olhando para outro lugar.
Os homens assentiram. Alguns já sorriam. Outros apenas aguardavam.
— Vamos agir quando os tamborins começarem. — Continuou ele. — Sem pânico, sem correria, sem alerta. Vamos tomar os pontos estratégicos sem disparar um único tiro.
A frase ecoou, um plano limpo, cirúrgico, pelo menos na teoria.
Os olhares estavam todos voltados para ele. Foi aí que o major desacelerou a fala, encarando um por um, até parar diretamente em Vágner.
— Quem tiver assunto pessoal naquela área … tem cinco dias. Em silêncio total. Se vazar qualquer coisa, qualquer descuido. — Ele ergueu o queixo. — Eu mesmo cobrarei o culpado.
Vágner engoliu seco. Ele entendeu. A sala inteira entendeu.
Depois de alguns segundos de silêncio pesado, o major finalizou o núcleo do plano:
— Quero o filho do Joca. O Vinícius. Ele vai ser a nossa chave. A moeda de troca. Com o garoto na mão, o rei vira peão.
Um murmurinho baixo surgiu. Não havia surpresa, apenas confirmação de um método que já tinha dado certo antes. E então, o major terminou a reunião como um clérigo conduz um sermão, ou um autoengano confortável:
— Lembrem-se … nós não somos bandidos. — Ele passou o olhar lentamente por cada rosto. — Nós fazemos isso porque o Estado falhou. Porque alguém tem que colocar ordem onde reina o caos. Nós somos a faxina que ninguém assume. Somos a justiça paralela.
Sua voz ficou grave, quase solene:
— Nenhum morador deve ser machucado, oprimido ou ameaçado. Nós não dominamos pela violência, nós governamos pelo respeito.
Ele deu um passo à frente:
— Nós somos os heróis aqui. Pelo menos … os mais próximos disso.
Silêncio, concordância total. Até que alguém murmurou:
— Amém. — E todos se levantaram.
A guerra já tinha hora marcada. Vágner também. O relógio estava correndo.
{…}
Aquela semana parecia não terminar. Desde a confusão no ensaio, Monalisa sentia como se estivesse pisando em cacos de vidro. Cada movimento, cada palavra, cada respiração tinha o peso de uma bomba prestes a explodir.
Vinícius estava ferido, não fisicamente, mas no ego. E para um homem como ele, orgulho valia mais que o próprio sangue. O olhar havia mudado: agora era cortante, calculado, cheio de uma raiva contida que não tinha coragem de extravasar diante do pai … então despejava em Monalisa.
Ele não gritava. Não levantava a mão. Não ameaçava. Ele sabia ferir de forma mais silenciosa, mais cruel.
— Você só serve pra enfeitar. Um troféu. — Dizia, arrumando a gola da camisa, sem nem olhar para ela. — Até isso você quase estragou. Você anda esquecendo seu lugar. Uma mulher como você deveria ser mais grata.
Cada frase era um prego silencioso na armadura rachada sob a alma dela. Na autoestima, no amor-próprio.
Em casa, o silêncio era sufocante. Ele passava por ela como se fosse invisível, mas cada gesto carregava desprezo. E quando falava, era pra colocá-la no chão, para lembrar que, aos olhos dele, ela não era namorada, era posse. Era uma joia feita para ficar no cofre, não em exibição.
No trabalho, o alívio esperado não veio. Transferida para outra filial, Monalisa acreditou que seria um recomeço, mas encontrou um ambiente quase hostil. Colegas cochichavam quando ela passava. A chefe a tratava como se qualquer esforço fosse insuficiente. Até o segurança — um homem grande, de postura arrogante e olhar invasivo — parecia ter prazer em observá-la como se fosse suspeita.
Não importava onde estivesse: Monalisa se sentia cercada. Vigiada. Sozinha.
Mas havia um ponto de luz naquela rotina opressiva: Vágner. Nas conversas rápidas ao fim do expediente, no banco da praça ao lado do ponto de ônibus, nos sorrisos que só os dois entendiam quando lembravam da infância, dos bolinhos de chuva da tia Socorro, da primeira vez que ela caiu aprendendo a andar de bicicleta e ele correu para ajudá-la.
Com ele, ela respirava. Com ele, era vista. E por isso, mesmo com medo, começou a contar os minutos até o fim do expediente. Porque sabia que ele estaria lá. Desde o inesperado reencontro ele sempre voltava, dia após dia, sempre a convidando para um café, um sorvete, ou até mesmo uma pipoca rodeada de crianças com olhos brilhantes para a habilidade e precisão do pipoqueiro e sua panela mágica.
Mas naquela quarta-feira, algo estava diferente. Vágner não ria. Não provocava. Não enchia o silêncio com lembranças. Monalisa, confusa e preocupada, observava seu maxilar rígido, o olhar perdido.
— Você tá … estranho. Aconteceu alguma coisa? — Perguntou, com a voz baixa, cheia de cautela.
Vágner suspirou, precisava dizer, colocar logo para fora. Ele virou o rosto para ela e Monalisa viu em seus olhos não só preocupação, mas urgência.
— Lisa … — Ele começou, a voz grave, quase falhando. — Na sexta-feira eu vou tirar a tia Socorro da comunidade.
Ela piscou, confusa.
— Tirar? Como assim tirar?
Ele avançou um passo, a voz ainda baixa, mas firme:
— Eu não sei como ela vai reagir … mas eu não posso deixá-la lá quando tudo acontecer. E eu quero que você venha junto.
Monalisa sentiu o estômago afundar.
— Vágner, o quê … o que isso significa? Por quê? O que vai acontecer?
Ele hesitou apenas um segundo, depois jogou a verdade crua:
— O Vinícius está com os dias contados, Lisa. O Joca também. Aquele lugar, antes intocável, está prestes a ser invadido.
Ela arregalou os olhos, a respiração descompassada.
— Você tá dizendo que … que vai ter invasão?
— Eu tô dizendo … — Vágner respondeu firme — … que você precisa sair, ficar protegida. Bom, não para sempre, lógico, mas só até a poeira baixar e as coisas se assentarem.
— Mas … você sabe como é o Vinícius. — Ela sussurrou, quase apavorada. — Ele nunca permitiria. Eu devo. Tenho obrigações. Eu …
Vágner interrompeu:
— A única dívida real que você tem é com você mesma.
Ela tentou desviar o olhar, mas ele não permitiu.
— A tia Socorro me contou o que ele faz com você.
Monalisa congelou. O silêncio virou faca.
— Me diz a verdade, Lisa … — Ele insistiu, com ternura e dor misturadas. — Você só continua com ele por causa daquela dívida, não é? Se ele encostou a mão em você, se ele se atreveu … eu vou acabar com aquele desgraçado.
As mãos dela tremiam. Ele se aproximou mais um passo, sem tocar, mas perto o suficiente para aquecer, para acalmar, para que ela se sentisse segura.
— Me deixa te tirar disso, Lisa. Me deixa te dar outra vida. Uma vida limpa. Só sua. Sem dono. Sem medo.
Monalisa sentiu os olhos arderem.
— Por quê? — Sussurrou. — Por que você faria isso por mim?
Vágner respirou fundo, a encarando com ainda mais determinação, a centímetros de seu rosto.
— Porque você sempre foi importante pra mim. Desde criança. Porque ninguém … ninguém deveria só sobreviver. — Ele se afastou, com lágrimas nos olhos. — E porque eu perdi você uma vez. Eu não vou perder de novo.
A palavra final pairou entre eles como promessa e sentença:
— Vem comigo. Deixa eu te mostrar que a vida pode ser bem mais incrível e divertida do que aquela prisão que você chama de casa.
Continua …
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