Monstro Cruel - Capítulo Três

Um conto erótico de M.K. Mander
Categoria: Gay
Contém 7978 palavras
Data: 22/11/2025 15:58:52
Assuntos: Gay, Homossexual

CAPÍTULO TRÊS

NICK

É óbvio que tem algum signifcado oculto nessa resposta. Esse não é o tipo de homem que fica sentado em um escritório com um fone de ouvido, ligando para pessoas para cobrar dívidas de cartão de crédito.

Puxo a mão de volta, mas mantenho o contato visual, sentindo-me curioso, desconfortável e extremamente excitado. É uma combinação confusa.

— Cobrador de dívidas. Um trabalho interessante. É por isso que se mudou para o lago Tahoe? Por causa do trabalho? — pergunto, tentando soar casual.

Kage se recosta na cadeira, pega o charuto e traga enquanto me analisa como se estivesse escolhendo bem as palavras.

Finalmente, ele responde:

— Deveria ser por causa do trabalho.

— Não é mais?

— Não sei mais o motivo.

Os olhos dele pairam sobre minha boca mais uma vez. Sua voz está rouca.

Sinto uma corrente elétrica me perpassar inteiro. Todos os nervos do meu corpo estão ativados, gritando. Tudo isso porque esse estranho de olhos escuros me olhou de um determinado jeito.

Um jeito faminto, ambíguo. O jeito como um homem esfomeado olharia para um pedaço de carne que quer desesperadamente comer, mas sabe que está envenenado.

Lembro a primeira impressão que tive de Kage no bar ontem à noite, quando disse para Shane que ele parecia ter saído de um episódio de Sons of Anarchy, e entendo, de uma forma bem intrínseca, que o homem sentado na minha frente vive sem se importar com as leis do mundo ao redor.

Também entendo que ele é perigoso.

E que ele me quer, mas também não me quer.

E que eu também o quero, mas não devia.

Porque quem brinca com fogo acaba se queimando.

O garçom se aproxima da mesa. Sem tirar os olhos de mim, Kage faz um gesto rápido com a mão para mandá-lo embora. Quando ficamos sozinhos, Kage diz:

— Então seu noivo desapareceu. E pelos cinco anos seguintes, no que seria seu aniversário de casamento, você fica bêbado.

— Parece pior quando você fala dessa forma. Eu deveria ter medo de você?

Nos encaramos sobre a mesa. A energia no ar está carregada. Ele não aparenta ter cado surpreso com a pergunta.

— E se eu disser que sim? — diz ele, em um tom baixo.

— Eu vou acreditar e ir direto para a delegacia mais próxima. Está dizendo que sim?

Ele hesita.

— A maioria das pessoas que me conhece tem medo.

Meu coração bate tão forte que me impressiona ele não conseguir ouvi-lo.

— Quero um “sim” ou um “não”.

— Acreditaria em mim se eu dissesse “não”?

— Acreditaria. Você não é o tipo de homem que se esconde atrás de mentiras — respondo de imediato, sem pensar.

Ele me analisa por um instante, em silêncio, girando o charuto entre os dedos polegar e anelar. Finalmente, diz com sua voz rouca:

— Você é bonito para caralho.

Solto o ar que estava prendendo.

— Isso não é uma resposta.

— Vou chegar lá.

— Chega mais rápido.

Ele parece formar um começo de um sorriso. — Eu já disse que não sou um príncipe encantado…

— Isso não tem nada a ver com a minha pergunta.

— Se me interromper de novo, vou colocar você no meu colo bem aqui e dar uns tapas nessa sua bunda perfeita até você gritar — rosna ele.

Se qualquer outra pessoa falasse isso para mim, ainda mais nesse tom dominante e grosseiro, eu ficaria furioso.

E, no entanto, quando ele fala, sinto uma vontade súbita de gemer de prazer.

Mordo a língua e o observo, sem saber se odeio mais a ele ou a mim no momento.

Ele apaga o charuto no cinzeiro, passa uma das mãos pelo cabelo e umedece os lábios. Em seguida, balança a cabeça e solta uma risada triste.

— Tudo bem. Quer uma resposta direta? Aqui vai. — Ele me encara e o sorriso some até que sua expressão ca completamente séria, com o maxilar tenso, os lábios apertados e um olhar sedutor. — Não. Você não precisa ter medo de mim. Mesmo se eu quisesse machucar você, eu não o faria.

Ergo as sobrancelhas.

— Isso não me soa muito reconfortante.

— É pegar ou largar. Só falei a verdade.

O garçom volta com um sorriso torto no rosto. Sem tirar os olhos de mim, Kage rosna para ele:

— Volte aqui mais uma vez sem ser chamado e vou dar um tiro na sua cabeça.

Nunca vi um homem dar meia-volta e sair às pressas tão rápido.

Estou me sentindo inconsequente, então decido perguntar:

— Já que está afim de falar a verdade, por que comprou a casa com dinheiro vivo?

— Para lavar o dinheiro. Não conte isso para ninguém. Próxima pergunta.

Fico boquiaberto. Por vários segundos, não consigo falar. Quando nalmente consigo me recompor, continuo:

— Por que iria confiar algo assim a mim?

— Porque quero que você confie em mim.

— Por quê?

— Porque eu quero você. E tenho minhas suspeitas de que, para ter você, preciso ganhar um certo nível de confiança. Dá para ver que você não é do tipo que transa com qualquer um. Próxima pergunta.

Meu Deus, meu coração está batendo muito forte. Tão rápido que mal consigo respirar. Acho que ainda estou em choque. — Você é sempre tão…

— Direto? Sou.

— Eu ia dizer contraditório. Ontem parecia que você me odiava.

Ainda não tenho certeza de que não me odeia.

Ele muda de tom.

— Ontem você não estava sob minha proteção. Agora está.

Os olhos dele são hipnóticos. A voz dele é hipnótica. Esse homem está me enfeitiçando.

— Não faço ideia do que você tá falando.

— Não importa. O que importa é que você confie que está a salvo comigo.

Solto uma risada fraca.

— A salvo? Com você? Não mesmo. Acho que nunca estive em tanto perigo com nenhum outro homem na vida.

Ele parece gostar da resposta. Seus lábios se curvam, mas ele balança a cabeça.

— Você sabe o que eu quis dizer.

— Tenta de novo mais tarde. Meu cérebro não tá funcionando direito agora.

— Quero um “sim” ou um “não” — diz ele, em um tom ríspido.

— Usar minhas próprias palavras contra mim não vai funcionar.

— Decide logo. Não temos muito tempo.

— Por que não?

— Não vou ficar na cidade por muito tempo.

Essa resposta me cala por uns bons trinta segundos. Percebo que, aos poucos, estamos cada vez mais próximos sobre a mesa, presos em uma bolha, ignorando tudo e todos, mas não acho que consigo resistir.

Agora entendo como mariposas se sentem quando estão perto da luz.

— Por que você comprou uma casa se não pretende car aqui?

— Já disse o motivo.

Ele estende a mão por cima da mesa. Passa o polegar na minha bochecha, devagar e delicadamente, descendo até o queixo, enquanto seu olhar segue o caminho do dedo.

Sinto meus braços se arrepiarem. Meus mamilos estão formigando. Umedeço os lábios, lutando contra dois impulsos opostos: me jogar sobre a mesa e beijá-lo ou sair correndo e gritando.

Isso é loucura. Você é sensível demais para tudo isso. Levanta daí e vai embora.

Consigo ignorar a voz da razão na minha cabeça.

— Quanto tempo vai ficar aqui?

— Alguns dias. Preciso beijar você.

— Não.

Minha resposta é fraca e nada convincente.

— Então senta no meu colo e deixa eu meter meus dedos em você enquanto te dou comida na boca.

Para controlar a explosão de choque e desejo que essa frase absurda espalha pelo meu corpo, me encosto na cadeira e desvio o olhar, controlando uma risada incrédula.

— Deve ser o champanhe. Não é possível que você tenha dito isso.

— Eu disse, sim. E você gostou. — Depois de alguns segundos, ele continua: — Olha para mim.

— Não consigo. Isso é loucura. Eu conheço você há vinte e quatro horas. Ninguém nunca falou assim comigo antes, nem meu noivo.

Ele fica em silêncio, esperando que eu me recomponha, mas duvido que isso seja possível. Acho que esta conversa vai deixar uma marca em mim.

Quando nalmente reúno coragem para olhar na direção dele, estremeço ao encontrar seus olhos.

Pigarreio.

— Além do mais, parece algo que demanda uma boa coordenação motora. Talvez até mais um par de mãos.

Pela primeira vez, ele sorri para mim.

O sorriso surge devagar e sensual, uma curva leve nos lábios que termina com a exibição de dentes brancos e retos. É um belo sorriso e, ao mesmo tempo, aterrorizante.

Nervosa e suando, me levanto em um pulo.

— Bom, isso foi de nitivamente… interessante. — Minha risada soa perturbadora. — Tenha uma boa noite.

Antes que ele possa responder, dou meia-volta e disparo em direção à saída.

Estou tão desconcertado que quase caio da escada. Arfando como um cachorro, passo pelas portas de vidro do cassino e me jogo no manobrista uniformizado que segura um grande guarda-chuva preto.

— Preciso de um táxi, por favor.

— Claro, senhor.

Ele pega um rádio portátil e pede um carro para quem quer que esteja do outro lado da linha. Geralmente cassinos têm um estacionamento próximo com táxis à disposição para clientes, então estou torcendo para não ter que esperar por muito tempo.

Estou com medo de me desfazer em mil pedaços se não me afastar de Kage o mais rápido possível.

Então senta no meu colo e deixa eu meter meus dedos em você enquanto te dou comida na boca.

Ouço aquelas palavras de novo e de novo na minha mente. Que tortura.

A pior parte é que consigo imaginar isso. E meu corpo também consegue, porque estou duro e pulsando entre as pernas, cada centímetro meu praticamente implorando para sentir as mãos grandes e grossas de Kage.

Quando conheci David, aos vinte anos de idade, eu era inocente. Não tive experiências loucas no ensino médio, nem na faculdade, e nem a vivência que Shane teve quando foi estudar na Arizona State. Morei com meus pais enquanto estudava na pequena e sem graça Universidade de Nevada, em Reno.

Eu era um bom menino. Um menino de cidade pequena. Um virgem.

Tirando aquela vez com meu tutor de matemática no ensino médio, mas acho que dez segundos não contam.

A questão é que não tenho a experiência necessária para lidar com um homem no auge da vida, tão bonito, viril e perigoso, falando essas coisas para mim.

É melhor parar em uma loja de conveniência no caminho de casa e comprar mais pilhas. Vou ter que resolver isso sozinho.

— Peço desculpas se eu ofendi você.

Meu corpo enrijece e solto o ar, assustado.

Kage está parado atrás de mim, falando baixinho, perto o suficiente para eu sentir o cheiro e o calor do seu corpo. Não está tocando em mim, mas está a poucos centímetros de distância. Sinto como se meu corpo estivesse pegando fogo por baixo do vestido.

— Foi mais um choque do que uma ofensa — respondo, sem virar o corpo nem a cabeça.

A respiração dele faz uma mecha de cabelo no meu pescoço balançar.

— Não é sempre que eu… — Ele repensa o que ia falar e começa de novo. — Não sou um homem paciente. Mas isso não é problema seu. Se você me pedir para eu te deixar em paz, vou respeitar sua decisão.

Não sei como responder. Na verdade, não sei como responder sem ser sincera. Porque se eu dissesse a verdade, já estaríamos nus em algum lugar.

Escolho minha resposta:

— Não sou o tipo de homem que transa com estranhos. Ainda mais estranhos que vão sumir em poucos dias.

Kage continua atrás de mim, mas se aproxima e leva a boca até minha orelha. Em uma voz tão macia quanto veludo, ele diz:

— Quero provar cada pedacinho de você. Quero ouvir você gritar meu nome. E quero fazer você gozar tão gostoso que vai esquecer o seu. Não tenho tempo para ficar de joguinhos para te conquistar, por isso estou sendo tão direto. Se você pedir para eu te deixar em paz, tem minha palavra de que é isso que vou fazer. Mas, enquanto esse momento não chegar, preciso te dizer, Nicholas, que quero te comer inteiro, seu cu, sua boca e tudo mais que você deixar, porque você é o homem mais lindo que eu já vi em toda a minha vida.

Ele respira fundo na curva do meu pescoço.

Quase desmaio no meio da rua.

Uma SUV preta para na frente do quiosque do manobrista. Kage roça no meu corpo ao passar por mim em direção ao banco do motorista, entrega o dinheiro para o manobrista e vai embora sem olhar de novo na minha direção.

*************

— Ele disse isso mesmo?

— Palavra por palavra.

— Caralho.

— Essa foi a minha reação.

Shne fica em silêncio.

— E você não ficou de joelhos, abriu o zíper da calça dele e começou a chupar o pau dele como se fosse um pirulito?

Suspiro e reviro os olhos.

— E ainda dizem que não há mais romance no mundo.

É a manhã seguinte. Estou em casa, fazendo a mesma coisa desde o momento em que o taxista me deixou aqui ontem à noite: andando para lá e para cá.

Não vi nenhuma luz acesa no vizinho quando cheguei em casa. Nenhum movimento sequer hoje de manhã. Nenhum sinal de Kage. Não faço ideia se ele está lá ou não.

— Fala sério, amigo, essa é a coisa mais safada que eu já ouvi. E já ouvi muita coisa.

Mordendo a ponta do polegar, me viro para andar na outra direção.

— Concordo. Mas é demais. Que tipo de pessoa responderia “Claro, sr. Estranho, por favor, meta em todos os meus buracos, parece uma ideia ótima e nada perigosa”?

— Bom, para começar… eu.

— Ah, fala sério! Você não diria isso.

— Você me conhece mesmo? Claro que diria! Se ele estivesse afim de mim, eu estava pronto pra ir pra casa com ele naquele outro dia sem nem saber o nome.

— Acho que tá na hora de reavaliar suas prioridades na vida.

Ele bufa:

— Escuta uma coisa, Irmã Teresa…

— É Madre Teresa, e para de me comparar com freiras.

— … esse não é o tipo de homem que você dispensa quando ele te oferece uma chance.

Paro de andar, olho para o teto e balanço a cabeça.

Ele ainda está falando.

— Se ele fala tanta putaria assim, logo de cara, aposto um milhão de dólares que você teria uns trinta orgasmos em dez minutos se aceitasse transar com ele.

— Você não tem um milhão de dólares, e isso é fisicamente impossível.

— É possível com ele. Porra, eu poderia gozar umas dez vezes só de olhar pra ele. Aquele rosto! Aquele corpo! Meu Deus, Nicholas, ele derrete calotas polares com um olhar e você rejeitou o homem?

— Se acalma.

— Não vou me acalmar. Estou indignado em nome de todas as pessoas desprovidas de sexo no mundo inteiro.

— Dá licença, a única pessoa desprovida de sexo aqui sou eu, tá?

— A questão é que ele é o tipo de foda que só se encontra uma vez na vida. Você pode ter lembranças maravilhosas dele quando tiver oitenta anos, sentado na sua cadeirinha de balanço em um asilo, usando fralda. Em vez disso, está agindo como se todo dia chovesse pau que nem confete na sua cabeça.

Depois de um segundo de silêncio, começo a rir.

— Meu Deus. A imagem. Vou ter que pesquisar esse meme depois.

— Me manda quando encontrar. Você prestou atenção no que eu disse?

— Sim. Disse que eu sou um idiota. Já entendi.

— Acho que não entendeu, não.

— Vou ter que me sentar? Tô com o pressentimento de que lá vem uma palestrinha.

— Deixa eu explicar o quanto isso é perfeito.

— “Isso” quer dizer o pau dele?

Ele me ignora.

— Primeiro, o cara é maravilhoso. Isso é óbvio. Segundo, ele tá doidinho por você. Terceiro, ele vai embora em poucos dias.

— E daí?

— E daí que não pode haver envolvimento emocional algum. É disso que você gosta, não é?

Resmungo e admito que isso é um pró.

— Além disso, vai ser um ponto final na sua seca. Pode até te ajudar a seguir em frente. Pensa que é um tipo de terapia.

— Terapia?

— Pra sua bunda.

— Meu Deus.

— O que eu quero dizer é que não vejo nenhum lado ruim nisso.

Talvez ele visse se eu tivesse contado a parte sobre ele comprar a casa para lavar dinheiro e enrolar para responder quando perguntei se deveria ter medo dele.

Pensando bem, talvez isso zesse ele gostar ainda mais de Kage.

Pelo que ele me contou sobre Stavros mais cedo, parece que o trabalho na área de tecnologia é uma fachada para seu trabalho de verdade como contrabandista de armas. Ninguém precisa de tantos passaportes ou aviões de carga.

— É só que… eu não sei nada sobre ele. E se ele for um criminoso?

— Você está se candidatando a algum cargo público, por acaso? Quem liga se ele for um criminoso? Você não vai se casar com o cara, só vai quicar no pau dele por alguns dias até ele ir embora. Para de complicar as coisas.

— E se ele tiver uma IST?

Ele solta um grande suspiro.

— Já ouviu falar de uma coisinha mágica chamada camisinha? Todo mundo está usando.

— Você ainda pode pegar IST mesmo usando camisinha.

— Ok. Desisto. Aproveite seu celibato. O resto do mundo vai estar aqui, curtindo a vida sexual com parceiros completamente inapropriados, como pessoas normais.

Ficamos em silêncio por um instante até ele falar de novo:

— Ah. Entendi. Você não está preocupado com o envolvimento emocional dele, e sim com o seu…

Estou prestes a negar isso com todas as forças, mas paro para refletir por um instante.

— Ele é o primeiro homem que me causou esse tipo de reação desde o David. Os outros caras com quem saí pareciam mais meus irmãos. Tipo, eram legais e eu gostava de passar tempo com eles, e só. Não faria diferença alguma ficar em casa com Mojo ou sair com esses caras. Não tive vontade de transar com nenhum. Eles eram… seguros. Mas o Kage sobrecarregou meu sistema. Ele fez eu me sentir como se eu fosse o monstro de Frankenstein, conectado a um monte de eletrodos, recebendo energia. E eu nem conheço ele direito.

— Você não vai se apaixonar por ele se transar uma vez. Ou três.

— Tem certeza? Porque esse é exatamente o tipo de coisa terrível que acontece comigo.

— Ah! Escuta o que você acabou de falar!

— Só tô dizendo a verdade.

— E eu tô dizendo que você não pode passar o resto da vida com medo do que pode acontecer, Nick. E daí se você ficar todo mexido depois de transar com ele? E daí? O Kage vai voltar pra vida ele, você vai voltar pra sua e nada vai ser diferente, tirando o fato de que você vai ter ótimas lembranças e sua bunda vai estar maravilhosamente dolorida. Nada pode te magoar mais do que tudo pelo que você já passou. Você sobreviveu à pior coisa que poderia acontecer. Está na hora de viver de novo. Você quer continuar tendo essa mesma conversa comigo daqui a vinte anos?

Respiramos em silêncio por alguns minutos até eu conseguir responder. — Não.

Ele solta um grande suspiro.

— Ok. Vou falar uma coisa. E essa vai doer.

— Mais do que o que você acabou de falar?

— O David está morto, Nick. Ele morreu.

As palavras ficam no ar enquanto sinto meu peito apertar e seguro as lágrimas se formando.

— Ele só pode estar morto. Ele nunca iria deixar você por vontade própria. — A voz dela fica mais suave. — Ele te amava muito. Não foi abduzido por alienígenas, não entrou para uma seita nem nada do tipo. Foi fazer uma trilha nas montanhas e sofreu um acidente. Escorregou e caiu em algum precipício. É a única explicação plausível.

— Ele era um grande atleta. — Minha voz falha quando nalmente consigo responder. — Conhecia aquelas trilhas de cor. Já tinha caminhado por lá um milhão de vezes. O clima estava perfeito…

— Nada disso impede acidentes — diz ele, gentil. — Ele deixou a carteira em casa, as chaves também. Não sumiu do nada. Não quis desaparecer. Não teve nenhuma movimentação na conta dele. Nenhum dos cartões de crédito foi usado. Você sabe que a polícia não desconfia de ter sido premeditado por ninguém. Sinto muito mesmo, amigo, e eu te amo demais, mas o David nunca vai voltar. E sem dúvidas ele iria odiar ver o que você fez consigo mesmo.

Perco a luta contra as lágrimas. Elas escorrem silenciosamente pelas minhas bochechas, formando caminhos quentes até pingarem do queixo. Nem me preocupo em enxugar o rosto. Não há ninguém para me ver chorar, além do cachorro.

Fecho os olhos e sussurro:

— Ainda consigo ouvir a voz dele. Ainda sinto o toque dele. Ainda me lembro perfeitamente do sorriso quando ele me beijou antes de sair para fazer trilha na manhã do jantar de ensaio. É como se… — Respiro devagar antes de continuar. — É como se ele ainda estivesse aqui. Como posso ficar com alguém se eu sinto que estaria traindo o David?

Shane solta um suspiro de empatia.

— Ah, amigo.

— Eu sei que é idiota.

— Não é idiota. É leal e romântico, mas, infelizmente, infundado. Você acredita estar traindo a lembrança que tem do David, não o homem de verdade. Nós dois sabemos que tudo que ele queria era ver você feliz. Não assim. Você vai honrar melhor a memória dele sendo feliz do que preso no passado.

Dessa vez não me aguento e começo a soluçar.

— Estou indo aí. Chego em dez minutos.

— Não! Por favor, não. Tenho que… — Tento respirar, mas saem apenas arquejos. — Preciso seguir em frente e parte desse processo é não usar você como animal de apoio emocional.

— Você poderia ter dito só “muleta” — diz ele, em um tom seco.

— Não tem o mesmo apelo. E gosto de imaginar você como uma iguana verde gigante que posso levar no avião comigo.

— Iguana? Eu sou a porra de um réptil? Não posso ser um cachorro fofinho?

— É iguana ou gato siamês. Achei que iria preferir ser uma iguana.

— Pelo menos você não perdeu o senso de humor — diz Shane, rindo.

Limpo o nariz com a manga da camisa e solto um grande suspiro.

— Obrigado, Sha. Odeio tudo que você disse, mas obrigado. Você é a única pessoa que não fica cheia de dedos comigo como se eu fosse quebrar a qualquer momento.

— Você é meu melhor amigo. Eu te amo mais do que amo minha própria família. Entraria numa briga de faca por você. Não esquece disso.

Não consigo não rir.

— Você vai ficar bem depois que a gente desligar?

— Vou — digo, fungando. — Tá tudo bem.

— E você vai direto para a casa ao lado e se acabar com aquele pedaço de mau caminho?

— Não, mas a minha bunda agradece a preocupação.

— Ok, mas não vem reclamar pra mim quando o próximo cara que te chamar pra sair tiver verrugas genitais e mau hálito.

— Obrigado pelo voto de confiança.

— De nada. A gente se fala amanhã?

— Uhum. Até amanhã.

— Mas me liga se você escorregar e cair naquele gigantesco pa…

— Tchau!

Desligo na cara dele, sorrindo. Só o Shane consegue me fazer chorar e rir em questão de segundos.

Que sorte é tê-lk comigo. Tenho uma leve suspeita de que, todos esses anos, ele foi muito mais do que um melhor amigo para mim.

Acho que ele salvou minha vida.

A campainha toca e me tira do meu devaneio. Pego um lenço da caixa na mesa de centro, limpo o nariz, passo a mão pelo cabelo e finjo ser um adulto normal.

Quando chego à porta e espio pelo olho mágico, vejo um rapaz jovem que não conheço segurando um envelope.

Abro a porta e ele pergunta:

— Nicholas Peterson?

— Sou eu.

— Oi. Meu nome é Josh Harris. Meu pai é dono dos apartamentos Fornwood na beira do lago.

Meu corpo paralisa. Paro de respirar. Meu sangue vira gelo.

David estava morando em Fornwood quando desapareceu.

— Sim?

É tudo que consigo dizer.

— Fizemos uma grande reforma recentemente. Mexemos no teto, em muita coisa interna. O último inverno foi pesado… — E? — interrompo, em um tom mais alto.

— E achamos isso.

Josh me entrega o envelope.

De olhos arregalados, trêmulo, olho para o envelope como se fosse uma bomba.

— Meu pai me contou o que aconteceu. Com você. Eu não morava aqui. Estava com minha mãe em Denver. Meus pais são divorciados, mas… — Ele parece tímido ao falar. Está claramente desconfortável. — Enfim, achamos esse envelope entre a parede e as caixas de correio do saguão. Elas são do tipo que abrem pela frente, sabe?

Ele está esperando que eu diga alguma coisa, mas perdi completamente a capacidade de falar.

Vejo meu nome e endereço na frente do envelope.

É a letra de David.

Acho que vou vomitar.

— Não sabemos o que aconteceu. A caixa estava bem mexida. Havia um espaço em um lado que havia começado a enferrujar e acho que… Acho que o envelope caiu na brecha e ficou preso. Encontramos quando fomos trocar as caixas.

Ele estende o envelope para mim. Estou estremecendo, aterrorizado.

Ao me ver paralisado, como uma

louco, ele diz:

— Está… Tem seu nome e endereço.

— Tá, entendi. Só… um segundo — digo, sem fôlego.

Ele olha para um lado. Olha para o outro. Parece realmente arrependido de ter batido à minha porta.

— Desculpa. Me perdoa — digo, e então puxo o envelope da mão dele, dou meia-volta e corro para dentro, batendo a porta.

Eu me encosto nela, segurando o envelope com força e tentando respirar.

Alguns segundos depois, ouço a voz de Josh.

— Quer que eu… Quer que alguém esteja ao seu lado quando você abrir?

Preciso enfiar a mão na boca para controlar os soluços de choro.

Quando você acha que o mundo não passa de um monte de merda aleatória, a bondade de um completo estranho pega você de surpresa.

— Eu estou bem — digo, com uma voz tão trêmula que demonstra o quanto eu não estou bem. — Obrigado, Josh. Você é muito gentil.

Obrigado.

— Ok, então. Boa sorte.

Ouço os passos se afastando até desaparecem.

Meus joelhos não conseguem mais aguentar o peso do meu corpo, então deslizo pela porta até o chão. Não sei por quanto tempo fico sentado, encarando o envelope nas minhas mãos suadas.

Está manchado. O papel está seco, levemente amarelado. Há um selo no canto superior direito: a bandeira dos Estados Unidos. Não passou por uma agência do correio, então não há uma data de quando David o colocou na caixa.

Mas deve ter sido um dia ou dois antes de ter desaparecido. Se tivesse sido antes, ele teria me perguntado se eu o recebi.

E por que ele me mandaria algo pelo correio, afinal? A gente se via todos os dias.

Viro o envelope lentamente. Com cuidado e reverência. Levo ao nariz, mas não há nenhum traço do cheiro de David. Passo os dedos no meu nome, escrito em tinta preta desbotada com sua letra precisa e inclinada.

Então solto um suspiro, viro de novo, passo um dedo pela aba onde a cola está enrugada e abro.

Uma chave prateada pesada cai na minha mão.

*******************

Fico olhando para a chave com o coração acelerado. É comum e nada memorável. Não há nada de especial nela.

Eu a viro. Do outro lado, no topo, está uma sequência de

números:Só.

Não há nenhum bilhete no envelope. Nada além dessa maldita chave prateada que poderia abrir qualquer coisa, desde uma porta até um cadeado. Não tem como saber.

Que porra é essa, David? O que é isso?

Depois de vários minutos paralisado e confuso, me levanto e vou até o notebook. Está na bancada da cozinha. Tenho que passar por cima de Mojo, adormecido no meio do chão.

Ligo o computador e pesquiso “Como identificar uma chave que encontrei”.

Mais de 900 milhões de resultados.

A primeira página contém conselhos de chaveiros e fabricantes de chaves, além de imagens de diferentes tipos de chave. Clico nelas, mas não vejo nenhuma parecida com a minha. Os sites dos fabricantes também não ajudam.

Penso por um minuto e então me viro para abrir a gaveta da bagunça. Há uma cópia da chave da casa, do cadeado do barracão no quintal, do meu armário da academia, do carro e de um pequeno cofre no meu quarto onde guardo meus documentos, a escritura da casa e outros papéis importantes.

Nenhuma delas se parece com a chave do envelope.

Meu primeiro instinto é ligar para Shane, mas como faz só dez minutos que afirmei que não iria mais depender tanto dele, me contenho.

Fico parado na cozinha, passando o polegar pela chave e pensando nas mil possibilidades.

David não era dado a extravagâncias. Não me enviaria uma chave pelo correio como parte de um jogo ou algo do tipo. Ele era sério, maduro, um adulto responsável. Talvez responsável demais, na verdade. Eu sempre brincava que ele tinha alma de gente velha.

Tínhamos dez anos de diferença, porém, às vezes, quando ele estava em um dia ruim, parecia que tínhamos cinquenta.

Ele era filho único e os pais dele haviam morrido em um acidente de carro pouco depois de ele se formar no ensino médio. David não tinha nenhuma família além de mim. Ele se mudou do Centro-Oeste para o lago Tahoe um ano antes de me conhecer e trabalhava com teleféricos no Resort Northstar. No verão, trabalhava como guia de passeios de barco no lago. Estava em ótima forma, era um atleta nato e adorava esportes ao ar livre. Fazia exercício sempre que podia.

Isso o ajudava a dormir melhor. Nos dias em que não conseguia malhar, cava inquieto, andando de um lado para o outro como um animal em uma jaula.

Nessas noites, acordava de repente, tremendo e pingando suor.

Meu salário era melhor que o dele, mas isso não era um problema para nenhum de nós. Ele era bom em poupar e investir, e ambos éramos bem econômicos, então nos dávamos bem nanceiramente. Meus pais deixaram a casa para mim quando se aposentaram e mudaram para o Arizona para morar em um condomínio com um campo de golfe, então eu tinha a sorte de não ter uma hipoteca para quitar.

Depois da nossa lua de mel, David viria morar comigo.

Obviamente, a vida tinha outros planos.

Quando ouço uma batida à porta, quase caio para trás. Mojo boceja e se vira.

A campainha toca e escuto uma voz vindo do outro lado da porta:

— Nicholas? Você tá aí?

É o Chris.

Chris, que terminou comigo pelo telefone e agora está aparecendo aqui de surpresa, justamente quando estou em crise por causa de uma chave misteriosa que meu noivo desaparecido deixou para mim anos atrás.

Ele nunca foi bom de timing.

Quando abro a porta e o vejo ali, de uniforme, segurando o chapéu e com um sorriso tímido no rosto, sinto um aperto no coração. Já sei que essa não é uma conversa que quero ter.

— Oi.

— Oi, Nick. — Os olhos dele viajam por mim e seu sorriso fraqueja. — Tudo bem?

Policiais e sua maldita atenção aos detalhes. Apesar de ser um xerife e não um policial de verdade, ele tem a coisa dos sentidos aguçados. Aquela vigilância constante que o faz pensar que todo mundo está prestes a cometer um crime.

Meu rosto está seco, mas ele deve conseguir sentir o cheiro das lágrimas em mim.

— Tudo. E com você?

Sorrio para ele.

— Estou bem, obrigado. — Ele se mexe um pouco. — Só queria ver se você tá bem.

Eu me pergunto se a fofoqueira da Diane Myers o convenceu a fazer isso e arqueio as sobrancelhas.

— Sério? Por quê?

Ele olha para o chão por um instante, mordendo o lábio inferior.

Tem uma aparência jovem e adorável. Uma vibe meio Clark Kent nerd fofo, com óculos e covinha no queixo. Sinto uma leve pontada de arrependimento por nunca ter sentido nada real, porque ele seria um ótimo marido.

Mas não para mim.

Ele me olha, ainda com o queixo para baixo.

— Me senti mal por como terminamos no outro dia. Acho que fui meio babaca.

Ah. Isso. Já tinha esquecido.

— Que nada. Você foi um cavalheiro.

Ele me observa em silêncio por alguns segundos.

— Sério? Porque você parece estar chateado.

É impressionante como homens pressupõem que são a causa de qualquer emoção em uma pessoa. Tenho certeza de que daqui a vinte anos, um idiota atrás de mim na fila do mercado vai achar que estou vermelho e suando porque ele é bonito demais.

— Esse é o fim de semana que costumo ficar chateada todo ano, Chris — digo, tentando não soar grosseiro. — Ontem teria sido meu aniversário de casamento de cinco anos. — Ah. Caralho. Eu não…

Ele arregala os olhos e me encara, surpreso.

— Relaxa. Estou bem, de verdade. Mas obrigado por vir. É muito legal da sua parte.

Chris está se contorcendo como se tivesse chutado o canto de uma mesa e quebrado o dedo do pé.

— Se eu soubesse que era esse fim de semana, tipo, ontem, eu não teria… Quer dizer, eu nunca… Porra. Que timing ruim.

— Você não sabia. Não morava aqui quando tudo aconteceu e eu nunca contei pra você. Então, por favor, para de se sentir mal com isso. Tá tudo bem, eu juro.

Ficamos parados, em um silêncio desconfortável, até ele perceber o envelope na minha mão.

Escondo-o nas costas, engulo em seco e aperto a chave.

Ele olha de novo para mim com uma sobrancelha arqueada e sei que estou com uma expressão de culpa no rosto.

Merda.

— Eu estava… mexendo em algumas gavetas e achei essa chave, hum, acho que meus pais deixaram aqui. — Tento dar de ombros de um jeito inocente, mas devo parecer muito culpada. — Estava tentando descobrir para que serve.

— Você pode mandar uma foto e ver se eles a reconhecem.

— Boa ideia! Vou fazer isso. Obrigado.

— Deve ser a chave extra da casa. Você tem uma fechadura Kwikset de entrada. — Ele gesticula para a porta. — Suas chaves são todas padrão. Você já tentou?

— Não. Literalmente acabei de achar.

— Deixa eu tentar.

Ele estende a mão.

A menos que eu queira parecer estranho ou culpado, não tenho opção a não ser entregar a chave.

Ele a pega e olha com cuidado.

— Não. Não é da porta da frente.

— Ah. Ok. — Eu estendo a mão para pegá-la de novo. — Vou guardar de novo, então…

— É a chave de uma caixa de segurança.

Minha mão para no ar. Minha voz fica mais aguda e tensa quando pergunto:

— Uma caixa de segurança?

— Isso. Tipo aquelas de banco, sabe?

Meu coração acelera. É quase impossível não arrancar a chave da mão dele e bater a porta. Em vez disso, prendo uma mecha de cabelo atrás da orelha e tento fingir que não estou surtando por dentro.

— De banco. Hum. E como você sabe?

— Tenho uma igual. Mesmo tamanho e formato, com essa parte de cima quadrada. Até os números são os mesmos. — Ele ri. — Bom, não exatamente os mesmos. Esse é o número da caixa de segurança.

Estou tão impaciente para ele ir embora que tenho dificuldade de me concentrar e só faço um ruído de concordância tipo “Ah, que interessante”.

— Deve ser o mesmo banco que eu uso. Wells Fargo. Talvez outra agência, quem sabe. Mas esse tipo de chave é padrão para a rede inteira.

Meu coração bate cada vez mais rápido.

David não tinha uma conta no Wells Fargo. Usava o Bank of America.

Mesmo se fosse possível alugar uma caixa em um banco onde você não tem conta… por que ele faria isso?

Chris me entrega a chave. Eu a pego e minha mente está a mil por hora.

— Ótimo, obrigado. Vou ligar pros meus pais e avisar que encontrei. Nem devem se lembrar dessa caixa. Quando se mudaram, meu pai não estava bem de saúde.

— Com certeza, é bom você avisar logo. Se a taxa de administração ficar pendente por muito tempo, o banco abre as caixas e coloca os itens em leilão ou entrega para o tesoureiro estadual. — Ele solta uma risadinha. — Quer dizer, se não for só um monte de fotos sensuais. Nesse caso, acho que só destroem tudo.

Não pergunto por que ele sabe todas as regras sobre caixas de segurança. Seria uma palestrinha de uns trinta minutos sobre o assunto. Só co assentindo e fingindo estar impressionado e grato.

— Vou ligar pra eles agora mesmo. Obrigado mais uma vez, Chris.

Bom te ver.

Estou prestes a fechar a porta quando ele fala de repente:

— Acho que cometi um erro.

Deus do Céu, por que você me odeia? Eu fiz alguma coisa? Você é contra vibradores ou algo assim?

— Pra ser sincero, achei que terminar com você iria, sei lá, abrir seu olho. Fazer você perceber que talvez não devesse subestimar o que a gente já tinha. A gente se dá muito bem.

Sim, é verdade. Também me dou bem com meu cachorro, com meu barbeiro e com a bibliotecária da escola que tem oitenta anos de idade. Mas também não tenho vontade de transar com nenhum deles.

— Acho você um cara incrível, Chris — digo, em um tom gentil. — É a pura verdade. Você tinha razão quando disse que eu estava vivendo no passado…

Ele fecha os olhos e suspira.

— Isso foi muito babaca da minha parte.

— … e eu não culpo você por não querer perder tempo com alguém tão… tão problemático. Pra ser sincero, estava pensando que você se daria muito bem com a minha amiga, Marybeth.

Ele abre os olhos e faz uma careta.

— A que parece Amish?

Preciso conversar com ela sobre o guarda-roupa da gata.

— Ela não é Amish. Ela é maravilhosa. É inteligente e gentil, e acho que vocês se dariam muito bem juntos. O que acha? Interessado?

Ele me lança um olhar estranho. Não consigo entender o motivo até ele responder:

— Não, Nick. Não estou interessado. Vim aqui dizer que ainda gosto de você e que foi um erro terminar.

Merda.

— Sinto muito. Hum, não sei o que dizer.

— Você pode dizer que vai jantar comigo hoje à noite.

Ficamos nos encarando em um silêncio desconfortável.

— Acho que não vai rolar.

— Amanhã, então. Terça. Você escolhe.

— Chris… — começo, em um tom gentil.

Antes que eu consiga terminar de falar, ele se aproxima e me beija.

Bom, tenta. No último segundo, consigo virar a cabeça, e os lábios dele tocam minha bochecha.

Recuo, mas Chris agarra meus ombros e não deixa eu me afastar. Ele me puxa para o peito e me prende.

— Me dá mais uma chance. — Ele sussurra no meu ouvido com uma voz rouca. — A gente vai devagar, como você quiser. Sei que você passou por muita coisa e eu quero estar aqui por você…

— Me solta, por favor.

— … para o que você precisar. A gente tem uma conexão, Nick. Uma conexão muito especial…

— Chris, para com isso.

— … e você precisa de alguém pra cuidar de você…

— Eu disse me solta!

Eu me debato contra o peito dele, começando a entrar em pânico e sentindo hematomas se formarem onde ele está me apertando, mas meu corpo congela quando ouço alguém falar:

— Tire as mãos dele, cara, senão vou arrancar elas fora.

É uma voz masculina, grave e assustadora.

Chris olha para trás e vê Kage a alguns passos de distância, encarando-o com o olhar frio de um assassino.

Surpreso, Chris se afasta.

— Quem é você?

Kage o ignora e se vira para mim.

— Você tá bem?

Eu abraço a mim mesmo, me assentindo.

— Tudo bem.

Ele me olha de cima a baixo, em silêncio, o olhar severo e analítico à procura de uma prova de que não fui ferida. Em seguida, seu olhar gélido se volta para Chris.

— Você tem dois segundos para sair dessa varanda, senão nunca mais vai conseguir andar sozinho.

Chris ergue o queixo e in a o peito.

— Não sei quem você pensa que é, mas eu sou…

— Um homem morto, se não for embora daqui. Agora.

Chris olha para mim como quem pede ajuda, mas ele está na minha lista do ódio agora. Quando o encaro, balançando a cabeça, ele se volta para Kage de novo e o observa com cuidado, analisando os ombros fortes, os punhos cerrados e o semblante mortal. Por m, decide ser sensato.

Pega o chapéu caído, coloca-o na cabeça e se vira para mim.

— Ligo pra você mais tarde.

Então ele vai embora.

Dobro o envelope duas vezes e o guardo junto à chave no bolso de trás.

— Você tem um efeito interessante nas pessoas, vizinho — digo, sério, enquanto assisto Chris correr até seu carro estacionado na rua. — Mesmo nas que andam armadas.

Ele se aproxima e sua mandíbula está tão tensa quanto seu olhar.

— Ele tem sorte de eu não ter arrancado a cabeça dele. Tem certeza de que você está bem?

Sorrio.

— E você diz que não é um príncipe encantado.

— Longe disso — diz ele, com a voz baixa. — Mas não é não.

— Ele é inofensivo.

— Todo homem é perigoso. Mesmo os inofensivos.

— Você tem uma péssima opinião sobre o nosso próprio gênero, pelo visto.

Ele dá de ombros.

— É a testosterona. A droga mais mortal da natureza.

E a mais sexy. Todos os feromônios masculinos que ele exala estão me deixando tonto. Desvio o olhar, tímidl.

— Estive pensando no que você disse. Ontem à noite. — Pigarreio. — Você sabe.

— Sei. E? — pergunta ele, com a voz mais grave.

— E… — Respiro fundo, reunindo coragem, e olho nos olhos dele. — Estou lisonjeado. Você deve ser o homem mais atraente que já vi na vida. Mas não estive com ninguém desde meu noivo e estou num momento difícil, então não acho que seria bom começar um caso com um estranho gostosão. Seria divertido e maravilhoso, mas não seria bom pra mim.

A gente se encara. Ele está com uma expressão séria e intensa no rosto, os olhos escuros xos nos meus.

Quando estou prestes a começar a rir de nervosismo, ele murmura em resposta:

— Ok. Eu respeito sua decisão. Obrigado por ser sincero.

Por que estou suando? O que está acontecendo com meu coração? Estou tendo uma crise?

— Então vamos ser apenas vizinhos — digo, enxugando as mãos suadas na calça jeans.

Ele solta o ar, passa uma das mãos pelo cabelo e olha para sua casa.

— Não por muito tempo. Vou colocar a casa à venda em poucas semanas.

Não sei por que isso faz eu me sentir tão para baixo. Afinal, você não consegue usar o dinheiro lavado se não vender o imóvel que comprou para lavar o dinheiro.

Preciso refletir sobre por que essa informação sobre a lavagem de dinheiro não me incomoda.

— Vou embora hoje, de qualquer forma.

— Hoje? E o seu trabalho?

Ele volta os olhos para os meus. Vejo uma escuridão, desejo e segredos.

— Já acabei.

— Ah. — Fico tão murcha quanto um pneu furado. — Acho que isso é uma despedida, então.

— Acho que sim.

Estendo a mão.

— Foi interessante conhecer você, Kage.

Ele olha para minha mão por um segundo e sorri. Depois, pega minha mão e ri para si mesmo.

— Você continua usando essa palavra.

— É uma boa palavra.

— Justo. Foi interessante conhecer você também, Nick. Cuide-se.

— Pode deixar.

Kage fica em silêncio por um segundo, então diz:

— Espera.

Ele tira uma caneta do bolso interno da jaqueta e um cartão de visita do outro. Vira o cartão, escreve algo no verso e me entrega.

— Meu número. Caso você precise.

— Precise do quê?

— Qualquer coisa. Se seu teto vazar. Se tiver problemas com o carro. Se o policial Babacão tentar te beijar de novo e precisar levar uma surra.

— Você sabe lidar com telhados, então? — pergunto, tentando segurar um sorriso.

— Não tem nada com que eu não consiga lidar.

Ele mantém a expressão séria e um pouco melancólica ao dizer isso, como se a sua força viesse de um lugar de dor.

Tenho a estranha sensação de que Kage não teve uma vida fácil. E parece ter se conformado com a ideia de que isso nunca vai mudar.

Ou talvez sejam os meus hormônios dando pane por eu estar perto dele.

Ele se vira para ir embora, mas para quando eu digo:

— Espera!

Ele não se vira, apenas vira a cabeça para o lado para me ouvir melhor.

— Eu… Eu…

Foda-se. Corro até ele, agarro sua jaqueta, fico na ponta do pé e dou um beijo na sua bochecha.

— Obrigada.

A palavra sai sem eu pensar.

— Pelo quê? — diz ele, depois de um segundo de silêncio.

— Por me fazer sentir algo. Fazia muito tempo que isso não acontecia. Não sabia que ainda era possível.

Ele me encara. Segura meu rosto com a mão gigante e passa o polegar lentamente pela minha bochecha. Inspira devagar, e seu peito enche. As sobrancelhas franzem até formar uma expressão de dor.

Em seguida, ele solta o ar, tira a mão do meu rosto e vai para casa sem dizer mais nada. Bate a porta ao entrar.

Cinco segundos depois, ouço o tum tum tum dos punhos no saco de pancadas.

**********************

KAGE

S

e comunicar com alguém preso em uma penitenciária federal é complexo.

Os presidiários não podem receber ligações. Todas

precisam partir de dentro e serem feitas a cobrar. Celulares não aceitam ligações a cobrar, então as chamadas precisam ser direcionadas a telefones xos.

Ou seja, alguém precisa estar presente para atender a ligação. Ou seja, é necessário combinar um horário com antecedência.

A duração da chamada é limitada, não pode passar de quinze minutos. Quando o tempo acaba, a ligação é encerrada sem aviso algum.

O detento não pode ligar de novo.

Manter a comunicação privada é ainda mais difícil.

Os guardas escutam tudo. Ficam próximos da área de visitação, observando com atenção. Monitoram todas as cartas que entram e saem; o mesmo vale para e-mails, que são de uso restrito e somente em circunstâncias especiais. Depois são examinados, palavra por palavra.

Em suma, se comunicar com alguém em uma penitenciária federal é uma merda.

A menos que o detento tenha subornado todo mundo no sistema carcerário para ter privilégios.

E pagado bem.

— Resolveu tudo?

A voz do outro lado da ligação é masculina, rouca e com um sotaque carregado. Max fuma dois maços de cigarro por dia, desde que o conheci, e isso fica óbvio na sua voz e no seu rosto. Os dentes também não ajudam.

— Resolvi.

Em uma palavra, conto a mentira mais perigosa da minha vida. Max já mandou matar pessoas por muito menos.

Sei disso porque fui eu quem apertou o gatilho.

Ele resmunga.

— Que bom. Não gosto de pontas soltas. Ela sabe de alguma coisa?

— Não. Não sabia de nada. Teria me dito se soubesse.

A risada dele é grave e sem humor.

— Por isso que eu mandei você pra fazer esse trabalho. Todo mundo fala quando é você quem faz as perguntas.

É verdade. Sou o melhor no que faço.

Geralmente esse tipo de elogio me dá uma certa satisfação, talvez até orgulho. Porém, hoje, me deprime.

Não preciso tentar adivinhar por que: sei qual é a razão.

A razão tem cabelos escuros como a noite, lábios vermelhos carnudos e olhos da cor do mar em dia de tempestade, um azul acinzentado e turbulento. A razão é doce e engraçado, esperto e sexy. Sincero. Corajoso. E muito mais forte do que ele acha.

Desde a primeira vez que o vi, levei um soco no estômago. Ao menos foi assim que me senti.

— Obrigado.

— Pelo quê?

— Por me fazer sentir algo. Fazia muito tempo que isso não acontecia.

Não sabia que ainda era possível.

Aqueles dez segundos mexeram mais comigo do que tudo que vivi nos últimos anos. Décadas. Estão marcados na minha mente. Nos meus ouvidos. No meu coração.

Não achei que ainda tinha coração, mas, pelo visto, tenho. Aquele vazio no meu peito voltou a ser preenchido por batidas fortes.

Por causa dele.

— Vou atrás das outras pistas. Aviso quando achar alguma coisa.

— Boa. Kage?

— Sim, chefe?

— Ia rasstchityvaiu na vas.

Estou contando com você.

— Ia znaiu.

Eu sei.

Fecho os olhos e imagino o rosto de Nick.

Se alguém descobrir que não terminei o trabalho que vim fazer aqui, nós dois estamos mortos.

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 0 estrelas.
Incentive MJ Mander a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários