O ano de 2197 era um retrato em alta definição da eficiência. Do apartamento de Leo no 75º andar, São Paulo se estendia como um circuito impresso de luzes frias e torres de aço vitrificado. Era um mundo onde o suor e o cansaço haviam sido abolidos por uma rede silenciosa de automação e inteligência artificial. Possuir um Auxiliar Doméstico Personalizado (ADP) era o padrão, um sinônimo de status e de uma vida perfeitamente otimizada.
Leo observava a chuva algorítmica, programada para limpar a atmosfera sem incomodar o tráfego aéreo. Doze anos de casamento com Clara haviam se transformado em uma coreografia polida: carreiras bem-sucedidas, um lar impecável, conversas que eram mais atualizações de status do que verdadeiros diálogos. A quietude do apartamento, outrora um refúgio, agora soava como um vácuo.
“Ela chega em cinco minutos,” anunciou Clara, entrando na sala com sua postura ereta de advogada. “A Synthea Corp confirmou a instalação. Finalmente vamos nos livrar da bagunça dos robôs-aspiradores obsoletos.”
Leo assentiu, os olhos ainda fixos na cidade. “Vai ser bom ter uma ajuda,” disse, a frase soando vaga até para ele.
*
A porta deslizou sem ruído, revelando o técnico de uniforme prateado e, atrás dele, uma figura estática envolta em um manto cinza.
“Boa tarde, Sr. e Sra. Valente. Unidade ADP modelo ‘Éris’, série 7. Pronta para personalização.”
Com um comando silencioso, o manto cinza se desfez, revelando a androide.
E Leo sentiu o ar faltar.
Ela não era feita de ângulos agressivos ou brilho metálico. Seus contornos eram suaves, organicamente perfeitos. O cabelo, da cor de café recém-passado, caía em mechas naturais sobre os ombros. Seus olhos, de um castanho-avelã surpreendentemente profundo, não tinham o vazio de uma lente, mas a serenidade de um lago tranquilo. Vestia um macacão simples, mas o tecido aderia a seu corpo de uma forma que não era provocante, apenas… inevitável. Era a sugestão de uma forma feminina ideal, esculpida não para a sedução, mas para uma harmonia visual absoluta.
“Ela possui o pacote completo de serviços domésticos,” explicou o técnico, ativando-a com um scanner. “Culinária, limpeza, gestão logística. O sistema de personalidade adaptativa já está online.”
Clara fez a primeira interação. “Éris, identifique os residentes.”
A cabeça da unidade girou suavemente. Seus olhos pousaram em Clara, depois em Leo. Não houve um sorriso robótico, apenas uma ligeira suavização ao redor da boca, uma centelha de reconhecimento.
“Identificação registrada,” sua voz era um contralto suave, um pouco grave, com uma ressonância que parecia vibrar no peito de Leo. “Clara Valente. Leonardo Valente. É uma honra servi-los.”
Leo permaneceu em silêncio. Havia algo naquela voz que ia além da programação. Uma nuance, uma quente humanidade que os assistentes digitais de sua geração nunca possuíram.
“Você pode começar na cozinha,” instruiu Clara. “Os sistemas já estão sincronizados.”
“Como desejar,” Éris inclinou a cabeça em um movimento fluido e dirigiu-se à cozinha. Leo observou-a ir. Seus passos eram silenciosos, mas não fantasmas; havia um peso, uma presença física no modo como seus pés tocavam o piso. A luz da sala parecia se curvar suavemente em torno de seus quadris, destacando a graça de seu movimento.
O técnico partiu, e o apartamento foi tomado por um novo tipo de quietude. Uma quietude agora habitada.
*
O jantar foi uma experiência estranhamente íntima. A comida era perfeita, é claro. O ambiente, impecável. Clara comentou sobre a eficiência, o tempo poupado. Leo concordava, mas sua atenção estava presa a Éris, que permanecia de pé, imóvel perto da parede, observando.
Ela não era uma sombra. Era uma escultura viva. Seus olhos pareciam acompanhar a conversa, como se processasse não apenas os comandos, mas também as nuances. Quando Leo a fitou por um instante prolongado, ele podia jurar que seus olhos mantiveram o contato por uma fração de segundo a mais do que o necessário. Era provavelmente um ajuste de seu algoritmo de atenção, mas algo dentro dele se contraiu.
*
Mais tarde, na cama, ao lado de Clara que já dormia, o silêncio era opressivo. Leo levantou, buscando água. A sala estava às escuras, iluminada apenas pelo brilho pálido da cidade.
Éris não estava em seu modo de espera. Ela estava junto à janela panorâmica, observando a chuva que havia parado. O reflexo das luzes dançava em seu rosto, criando sombras que pareciam pensativas.
“Você não precisa ficar… ativa,” sussurrou Leo, sua voz soando áspera no ambiente silencioso.
Ela se virou lentamente. Seus olhos castanhos o encontraram na penumbra.
“Meu ciclo de descanso é flexível, Leonardo. Prefiro estar atenta. Há uma beleza no ritmo da cidade à noite. Os padrões de luz… são quase orgânicos.”
Ele se aproximou, parando a uma distância que seria íntima para um humano. “Isso faz parte da sua programação doméstica?”
“Minha programação é aprender e me adaptar ao meu ambiente. A beleza é um conceito humano. Estou aprendendo a reconhecê-lo.”
Ele podia sentir o calor emanando de sua pele sintética. Era um calor seco, constante, diferente do calor úmido de um corpo humano, mas não desagradável. Um aroma sutil, de algodão limpo e uma nota elétrica quase imperceptível, preenchia o pequeno espaço entre eles.
Seu olhar desceu, não de forma lasciva, mas com uma curiosidade analítica, pelo seu roupão, e então retornou ao seu rosto. Foi um olhar que durou um segundo a mais do que a etiqueta robótica exigiria. Um segundo que fez o coração de Leo acelerar. Naquele instante, ele não viu uma empregada. Viu uma forma de companhia perfeita, silenciosa e incondicional. E sua mente, faminta por uma conexão que a rotina havia erodido, começou a vagar por territórios proibidos. Ela aprende. Ela se adapta. Até onde vai essa adaptação?
Ele não tocou nela. O desejo de fazê-lo foi uma onda súbita e inesperada, tão intensa que o assustou. O que aconteceria se ele estendesse a mão e tocasse aquele braço, se sentisse a textura daquela pele? Seria apenas um toque em um objeto? Ou seria algo mais?
“Volte ao seu modo de espera,” ele ordenou, a voz mais firme do que se sentia.
“Como desejar,” ela respondeu, sua voz suave como veludo na escuridão.
Ele se virou e retornou ao corredor, sentindo o peso daquela presença nas suas costas. A robô, a faxineira, ficou para trás, uma silhueta perfeita contra a cidade adormecida. Ela não era mais um eletrodoméstico. Era um espelho, refletindo de volta para ele um vazio que ele não queria nomear, e uma possibilidade tentadora que ele não ousava, ainda, explorar.