Os dias foram passando, entre aulas, provas e trabalhos. O cotidiano no Discere parecia ganhar um novo ritmo à medida que os alunos se dedicavam aos seus projetos pessoais. Noah, por exemplo, se esforçava para abstrair de sua mente a possível ida de Valentim para o exterior. Em vez de se perder em pensamentos tristes, ele concentrou toda a sua energia no Clube Arco-Íris, que estava fazendo um sucesso estrondoso.
O clube saiu em diversos jornais e, para coroar o feito, Noah chegou a dar uma entrevista para o principal jornal da TV Mundo, o Jornal do País.
Noah estava nervoso. O suor nas mãos entregava o quanto aquela entrevista significava para ele. Ao lado da professora Leda, aguardava o repórter Bruno Assis e o cinegrafista Amarildo na entrada da Escola Discere. Quando o carro da TV Mundo estacionou, Noah engoliu em seco. Do veículo saiu um rapaz alto, bonito, de sorriso fácil e uma voz marcante, dessas que parecem preencher o ambiente sem esforço.
— Bruno Assis, prazer. — Ele apertou a mão de Leda e depois a de Noah. — Vamos começar?
A professora, sempre entusiasmada, guiou os visitantes pelos corredores da instituição. Bruno fazia anotações rápidas no bloco de notas enquanto Amarildo ajustava o enquadramento da câmera, registrando cada detalhe do passeio. Noah se mantinha alguns passos atrás, observando a desenvoltura de Bruno — o modo como ele se movia, como sorria, como olhava direto nos olhos das pessoas quando fazia uma pergunta.
No auditório, os membros do Clube Arco-Íris já os esperavam. Por orientação da professora, os alunos encenariam um dos encontros do grupo, enquanto Bruno realizava algumas entrevistas. A Dra. Eunice tomou a palavra e fez um discurso sobre aceitação, respeito e diversidade, enquanto o som suave da câmera rodando preenchia o silêncio atento da plateia.
— Muito bem, pessoal, excelente! — elogiou Leda, assim que as filmagens terminaram. — Agora, que tal aproveitarmos a presença dos nossos convidados para uma pequena conversa sobre o trabalho de um jornalista no Brasil?
Bruno e Amarildo se entreolharam, cúmplices, antes que o repórter assumisse a fala.
— Bem, meu nome é Bruno Assis, tenho vinte e cinco anos e sou formado em Comunicação Social. Trabalho na TV Mundo há um ano e, atualmente, estou em São Paulo participando de um intercâmbio jornalístico. — Ele deu uma risada leve. — O Amarildo e eu somos do Rio de Janeiro.
O comentário arrancou murmúrios curiosos dos alunos, que trocaram olhares e risadinhas.
— Pessoal, vamos mostrar para os convidados que somos educados. — advertiu Leda com um sorriso.
O cinegrafista entrou na conversa, descontraído:
— Pois é! Como o Bruno falou, estamos cobrindo algumas pautas aqui em São Paulo, enquanto os colegas paulistas estão no Rio. É uma forma de integração que a TV Mundo criou. — Ele fez uma pausa e piscou para os alunos. — Mas confesso que é engraçado ouvir esse sotaque paulista todo dia.
Risos discretos ecoaram pela sala, quebrando o gelo.
Foi então que Noah levantou a mão, hesitante.
— Bruno... — começou ele, com a voz firme, mas curiosa. — Como vocês fazem para denunciar um crime? Digo... hipoteticamente. Se eu tivesse provas de que alguém cometeu um crime, qual seria o melhor caminho como repórter?
O repórter franziu o cenho por um instante, pensativo.
— Boa pergunta, Noah. — respondeu com seriedade. — Tudo começa com a apuração. É preciso reunir provas, ouvir pessoas envolvidas e verificar os fatos antes de qualquer coisa. O jornalista precisa ser responsável, porque uma denúncia sem base pode arruinar vidas. Depois disso, vem o processo de transformar essas informações em uma reportagem sólida, que ajude a revelar a verdade.
Noah assentiu, absorvendo cada palavra.
— Entendi... obrigado. — disse, com um leve sorriso.
Enquanto Amarildo desligava a câmera e os colegas voltavam a conversar animadamente, Bruno lançou um olhar rápido para Noah, como se tivesse percebido que a pergunta carregava mais do que simples curiosidade.
Quando a palestra terminou, o auditório da Escola Discere se encheu de murmúrios e risadas. Os alunos, empolgados com a presença da equipe da TV Mundo, cercaram Bruno e Amarildo para tirar dúvidas, pedir dicas e, claro, tirar algumas selfies. A professora Leda observava de longe, satisfeita com o interesse dos estudantes e o sucesso da atividade.
Bruno, no entanto, parecia ter outro foco. Entre uma foto e outra, ele olhou discretamente para Noah, que conversava com alguns colegas mais afastado. Havia algo na postura do garoto — um ar pensativo, inquieto — que o intrigava desde a pergunta feita minutos antes.
Aproveitando um instante em que o burburinho se dispersou, o repórter se aproximou.
— Noah, vem cá um instante — pediu em voz baixa, conduzindo o rapaz para um canto mais reservado da sala.
Noah o seguiu, surpreso.
— Aquela sua pergunta... — começou Bruno, cruzando os braços. — Ela não foi tão hipotética assim, foi?
Noah tentou disfarçar com um sorriso rápido.
— Claro que foi — respondeu, evitando o olhar direto do repórter.
Bruno arqueou uma sobrancelha e soltou uma risada curta.
— Relaxa. Meu faro jornalístico raramente falha. — Ele falou num tom leve, mas havia seriedade no olhar. — Só vou te dizer uma coisa: se houver algo real por trás dessa história, tenha certeza do que quer fazer. Reúna provas, documente tudo e procure uma autoridade competente. Às vezes, a verdade pesa — mas ainda assim, precisa ser dita.
Noah respirou fundo, sentindo um misto de alívio e apreensão.
— Obrigado, Bruno — disse, com sinceridade.
Antes que o repórter pudesse responder, Valentim surgiu, o olhar firme e um sorriso levemente forçado.
— Pois é, Bruno! — interrompeu ele, aproximando-se e enlaçando Noah num semiabraço que transbordava ciúme disfarçado. — Quando é que a reportagem vai ao ar? Quero ver o meu belo namorado brilhando na TV Mundo.
Bruno riu, percebendo o tom possessivo e o desconforto sutil de Noah.
— Creio que no Primeira Hora, o jornal da manhã — respondeu com tranquilidade. — Vou avisar a professora Leda assim que tivermos a data certa.
Valentim assentiu, satisfeito, enquanto Bruno se despedia dos dois com um aperto de mão firme e um último olhar significativo para Noah.
Quando a equipe deixou o auditório, o silêncio se instalou por um breve momento. Noah ficou parado, observando a porta por onde Bruno havia saído, sentindo o peso das palavras do repórter ecoarem dentro dele — tenha certeza do que deseja fazer.
A direção do Discere, é claro, adorou a publicidade positiva e
Sabe quem adorou a publicidade positiva? A direção do Discere. A equipe pedágogica passou a tratar os membros do clube como um verdadeiro orgulho da instituição. Quem não estava nada satisfeito com os últimos acontecerimentos era Gabriel.
Os fãs de Narciso, que continuavam atentos e fiéis, haviam conseguido derrubar três das contas fakes que Gabriel usava para espalhar boatos e difamações. Frustrado e com medo de ser descoberto como o responsável por vazar a foto comprometedora, ele resolveu deixar o plano de lado.
Nas sessões com a psicóloga do colégio, Gabriel começou a compreender partes sombrias de si mesmo. Descobriu que havia crescido sem o amor dos pais, tornando-se um estorvo para a própria família. Quando conheceu Noah, ainda em Brasília, tudo começou como parte de um plano arquitetado por seu pai, que queria informações sobre Raphael, um dos maiores rivais no Senado. O que o pai não esperava — e nem ele mesmo — era que acabaria se apaixonando por Noah. Mas mesmo apaixonado, entregou o rapaz aos lobos ao expor sua sexualidade, num gesto de pura covardia e autoproteção.
Agora, todos os dias, Gabriel passava pelo jardim e via o grupo de Noah reunido, rindo e trocando confidências. E, mesmo cercado de conhecidos, ele sentia uma pontada de inveja. Seus próprios amigos pareciam sempre manter uma barreira invisível, como se ninguém conseguisse de fato se conectar com ele.
No grêmio estudantil, porém, ele ainda encontrava seu pequeno trono. Tudo precisava passar por sua aprovação, e esse poder o fazia se sentir importante. Pelo menos até certo ponto. Porque, para o seu desgosto, não conseguiu barrar um projeto que detestava: a palestra sobre relacionamentos tóxicos que Noah idealizou. O tema havia sido sugerido pela professora Leda, e recusar algo vindo dela seria impensável.
O convite que o Clube Arco-Íris mandou confeccionar estampava em letras coloridas:
"Quando o amor machuca: entendendo e prevenindo relacionamentos abusivos na comunidade LGBT+."
Para a palestra, Noah conseguiu nomes de peso: o jornalista Bruno Assis, que era abertamente gay, o policial Fernando Vasconcelos e, como sempre, a psicóloga Eunice. A direção decidiu transmitir a reunião ao vivo pelo site oficial do Discere, após a repercussão positiva do clube. Além disso, o evento aconteceu no auditório da instituição com um número considerável de pessoas.
Como de costume, Noah, Karla e Breno deram um verdadeiro show na decoração e nas lembrancinhas. A mãe de Karla, entusiasmada com o sucesso do clube, liberou uma verba extra para a produção do evento. Além dos brindes, haveria um sorteio de um celular de última geração entre os participantes.
Quando a reunião começou, o auditório estava lotado e repleto de expectativas. Noah subiu ao palco e pegou o microfone com um leve sorriso no rosto, mas com os olhos firmes, determinados.
— Por muitos anos, eu sofri calado com um relacionamento tóxico — começou, com a voz serena, mas firme. — Recebi chantagens e ameaças, mas hoje eu me sinto livre, principalmente com os amigos que consegui, que me apoiam e torcem por mim. Fora que a terapia também tem ajudado.
Noah mostrou alguns prints e áudios — com a voz alterada para não ser identificada — e, por um instante, Gabriel, sentado entre os outros membros do grêmio, sentiu o rosto esquentar. Mas o pior ainda estava por vir. Noah passou um vídeo curto no telão, com a imagem completamente borrada e as cores distorcidas para não revelar detalhes da farda da escola.
***
— Você sabe o trabalho que me deu? — Alguém rosnava, os dedos enroscados nos cabelos do ex. — Eu inventei desculpas para o meu pai, passei vergonha, tudo por sua culpa! Eu vou acabar com a tua vida, e se isso significar destruir também a paz de quem está perto de você, melhor ainda. — Ele riu, cruel. — Fui eu quem sabotou a gincana. Eu criei o perfil falso do Valentim. E, pensando bem... ele é até bem gostoso. Quem sabe não faço dele meu, já que você é fraco demais pra segurar um homem?
— Idiota! — Uma pessoa gritou, desferindo um tapa que fez alguém cair ao chão, atônito.
***
— Além de me perseguir, meu ex também armou planos contra os meus amigos. Tivemos acesso a um celular que comprova todas as falcatruas. Se você me perguntar se eu sinto raiva ou ódio dessa pessoa, eu diria que não. Hoje, eu evoluí. Não sou mais o garoto ingênuo do ano passado. Podemos denunciar, podemos levar os prints e os vídeos à delegacia. E, hoje, vamos conversar com dois profissionais experientes nesse assunto — disse Noah, fitando Gabriel por um instante.
Gabriel ficou pálido como um papel.
— É verdade, Noah — confirmou Fernando, o policial convidado. — Chantagens e ameaças devem ser denunciadas. Inclusive, se você quiser entrar com uma ordem de restrição contra essa pessoa, pode contar comigo.
— Obrigado, Fernando. Eu só quero que essa pessoa suma. Isso, para mim, já é o suficiente. — afirmou Noah. — Então, gente, agora vamos começar mais uma palestra do Clube Arco-Íris.
A plateia irrompeu em aplausos, enquanto Gabriel sentia o mundo ruir ao seu redor.
***
Quando a palestra terminou, o auditório foi tomado por uma mistura de euforia e reflexão. Os alunos comentavam entre si sobre os relatos e os conselhos dos convidados, enquanto os professores os parabenizavam pela organização impecável do evento.
Noah voltou ao centro do palco com o microfone em mãos. O auditório ainda estava cheio, e os alunos pareciam ansiosos pelo momento mais aguardado da noite.
— Antes de qualquer coisa, quero agradecer a presença dos nossos convidados — disse Noah, sorrindo para a mesa onde estavam os palestrantes. — Muito obrigado ao jornalista Bruno Assis, ao policial Fernando Vasconcelos e, claro, à nossa querida psicóloga Eunice. A presença de vocês fez toda a diferença.
O público respondeu com aplausos calorosos, enquanto os três convidados acenavam para os estudantes com sorrisos discretos.
— Agora... — Noah fez uma pausa dramática, erguendo o celular. — Chegou o momento mais esperado da noite. Os sorteios dos prêmios!
Ao todo foram 10 brindes doados pelo Comitê de Pais do Discere. Um burburinho animado se espalhou pelo salão. Alguns alunos se ajeitaram nas cadeiras, outros ergueram as pulseiras numeradas para cima, como se isso aumentasse a sorte. Um a um os prêmios foram entregues para os sorteados.
— Atenção, pessoal. O grande prêmio da noite chegou. — anunciou Noah, enquanto abria o aplicativo de sorteios. Na tela do aparelho, os números começaram a girar rapidamente, passando um após o outro até que foram diminuindo a velocidade. Um a um, os algarismos foram surgindo.
— E o número sorteado foi o... 134! — revelou Noah, erguendo o celular para que todos pudessem ver. — Quem é o grande felizardo?
Os olhares se cruzaram pelo auditório. Alguns estudantes conferiam suas pulseiras, outros levantavam-se nas pontas dos pés tentando encontrar o sortudo. Mas ninguém se manifestou.
— Gente? — Noah riu, confuso. — Alguém aí com a 134?
O silêncio pairou por mais alguns segundos. Até que, do meio da plateia, uma mão se ergueu com timidez.
— Acho que é o meu? — disse João Paulo, mostrando a pulseira no pulso.
— Espera... — Noah aproximou-se para conferir e leu o número com atenção. — É 134 mesmo! O grande vencedor é... João Paulo!
A plateia explodiu em aplausos e assobios. João Paulo caminhou até o palco com um sorriso largo e, ao receber o celular de última geração das mãos de Noah, ergueu o prêmio no ar como um troféu.
— Foto para o site do colégio! — anunciou Karla, correndo com o celular na mão.
João Paulo e Noah ficaram lado a lado, sorrindo para a câmera. O clique foi acompanhado de uma nova onda de aplausos.
Bruno se aproximou de Noah com um sorriso estampado no rosto. Elogiou o rapaz pela coragem e afirmou que ele havia feito um excelente trabalho de apuração, reunindo provas reais e testemunhas. Aquilo, segundo Bruno, era o trabalho de um verdadeiro jornalista nato.
— O que eu aprendi na minha carreira é nunca fugir de um embate — disse ele, com um tom confiante —, mas a gente precisa ter as armas certas. Aposto que esse teu ex deve estar se cagando de medo. — Bruno sorriu e completou: — Você arrasou, cara.
Noah, ao sair do palco, sentiu um peso se desprendendo de seus ombros. Ele andou decidido até o canto do salão, onde Gabriel permanecia sentado, encolhido na cadeira, com os olhos fixos no chão. Ao se aproximar, Noah não esboçou sorriso.
— Precisamos conversar. — disse, a voz firme.
Gabriel levantou o olhar devagar, com a expressão derrotada. Sem dizer nada, apenas seguiu Noah até um corredor lateral do auditório, onde ficaram a sós.
— Eu não vou mais baixar a cabeça para você, Gabriel — começou Noah, cruzando os braços. — Acabou. Nenhuma provocação, nenhuma ameaça. Eu não sou mais aquele garoto que você manipulava.
Gabriel respirou fundo, tentando manter a compostura.
— Eu... queria agradecer por você não ter me denunciado à polícia. — murmurou, num fio de voz. — Eu... realmente achei que você fosse fazer isso.
Noah soltou uma risada breve e seca.
— Eu não denunciei à polícia... ainda. Mas eu denunciei você, sim. Só que para quem realmente podia agir de forma imediata.
— O quê? — Gabriel arregalou os olhos.
— Eu mostrei o vídeo e as provas ao Comitê de Pais e ao diretor Sérgio. — explicou Noah, o encarando. — Eu, Valentim e Narciso te denunciamos formalmente suas ações. Você nos acusou de crimes que não cometemos, espalhou mentiras, tentou destruir nossa reputação. E hoje... a máscara caiu. E eu só não levo isso a outro nível, pois um escandalo para o meu pai a essa altura do ano não faria bem. Mas tu não tem noção de como eu odeio você. Então, some seu verme!
Antes que Gabriel pudesse responder, passos firmes ecoaram pelo corredor. O diretor Sérgio se aproximava, acompanhado por dois inspetores.
— Gabriel — chamou Sérgio, com o semblante sério e contido. — Precisamos conversar na diretoria. Agora.
Gabriel ficou imóvel por um instante, como se o chão tivesse sumido sob seus pés. Então, sem dizer uma palavra, seguiu o diretor com os ombros curvados e o olhar perdido.
Quando ele desapareceu no fim do corredor, Noah voltou para o auditório, onde seus amigos o esperavam com olhares ansiosos. Karla foi a primeira a falar:
— E aí?
Noah sorriu de leve.
— O Sérgio está cuidando disso agora.
— Finalmente — disse Breno, aliviado.
— Era o mínimo — completou Valentim, cruzando os braços. — Depois de tudo o que ele fez com a gente.
João Paulo deu um tapinha no ombro de Noah.
— Você foi corajoso, cara. Muito corajoso.
Narciso, com um sorriso de ponta a ponta, ergueu os braços no ar:
— Então... acho que isso merece uma comemoração, não?
Os seis riram juntos, num alívio quase catártico. Por muito tempo, Gabriel havia pairado sobre eles como uma sombra, um fantasma que aparecia para espalhar medo e insegurança. Mas agora, com a verdade exposta e as provas entregues, o "reinado" de Gabriel chegava ao fim.
— Pessoal, vou conversar com os responsáveis pela decoração. — Disse Noah, deixando os amigos comentando sobre a cara de espanto de Gabriel.
Valentim observava Noah de longe, enquanto ele conversava animadamente com alguns professores e organizava os últimos detalhes do evento. Desde que soubera da viagem do namorado, Noah mantinha uma postura calma demais, educada demais... distante demais. Valentim sentia cada centímetro desse afastamento, como se houvesse uma parede invisível entre eles.
— Noah, eu posso falar com você? — perguntou ele, com a voz baixa e o coração acelerado.
Noah se virou por um instante, com um sorriso educado.
— Pode ser depois? Eu preciso entregar o presente dos palestrantes convidados. — Desconversou, antes de chamar Breno com um aceno. — Amigo, me ajuda.
— Claro — respondeu Breno, prontamente.
Os dois pegaram algumas caixas e começaram a entregá-las aos convidados, que conversavam com professores ao fundo. Valentim ficou parado por um momento, sentindo-se cada vez mais deslocado, até ouvir a voz conhecida de Karla ao seu lado.
— Qual foi a burrada da vez? — perguntou ela, fazendo uma careta engraçada.
— Como assim? — Valentim franziu o cenho, tentando parecer despreocupado.
— Valentim Cardoso de Almeida. Vem. — Karla agarrou o braço dele de repente.
— Espera, Karla. Ei, isso é sequestro... — murmurou ele, sendo praticamente arrastado por ela para um canto mais reservado do auditório.
— Desabafa.
Valentim respirou fundo, sentindo o peso no peito.
— Ano que vem vou estudar em Dublin. Um curso que meu pai inventou. Ao todo, vou ficar um ano e meio. O Noah descobriu isso através do meu pai e está estranho comigo. Ele não ficou puto ou brigou, mas está estranho. — as palavras saíram atropeladas, como se ele estivesse tentando se livrar delas o mais rápido possível.
— Você vai para Dublin? Como assim? — Karla arregalou os olhos.
— É um curso para jovens empreendedores. Karla, o meu pai sempre fez minhas vontades e, mesmo com os preconceitos, ele me abraçou. Fora que eu tenho responsabilidades com a empresa, afinal, vai ser o meu futuro. Eu amo o Noah, ele é o homem da minha vida, mas eu devo muito ao meu pai. Olha só onde a gente estuda. — Valentim apontou ao redor. — Quantos jovens têm essa oportunidade?
Karla o observou por um momento em silêncio, absorvendo cada palavra. Então, riu com os olhos marejados.
— Meu Deus, o que fizeram com você? Só ouvi sensatez, mas eu entendo o Noah também. Você é o primeiro cara que o trata bem. E convenhamos, Valentim, você não precisa se esforçar para tanto. — ela o puxou para um abraço apertado, e lágrimas escorreram por seu rosto.
— Você está chorando? — perguntou ele, surpreso.
— Sei lá. Daqui a pouco as provas finais vão chegar e... acabou. — Karla enxugou as lágrimas com cuidado para não borrar a maquiagem. — E eu percebi que nunca te agradeci.
— Me agradeceu? — Valentim sorriu de canto.
— Sim, por tudo. Por me ajudar quando precisei. Por me dar bronca quando vacilei. E por ser o melhor amigo que uma garota poderia ter. Eu te amo, Val. Você é a minha alma gêmea da vida.
— Eu te amo, Karla. E eu que preciso agradecer. Sem você acho que não estaria aqui hoje. Somos nós para sempre, certo? — disse ele, tocando de leve o rosto dela e enxugando suas lágrimas.
— Tá, mas e o assunto "Noah"? — Karla perguntou, ajeitando a maquiagem com os dedos.
— Eu tô no escuro, irmã. — confessou, cabisbaixo.
— E se você fizer uma surpresa? — sugeriu ela, sorrindo de leve. — Uma surpresa romântica que mostre que você o ama, e que vocês podem fazer dar certo.
Valentim ficou em silêncio por um momento, o coração batendo mais rápido com a ideia. Talvez fosse isso que Noah precisava: um gesto que dissesse tudo o que ele ainda não conseguira dizer com palavras.
Os corredores da escola estavam mais silenciosos que o normal naquele fim de tarde. Karla e Valentim conversavam próximos ao pátio, rindo de alguma lembrança boba, quando Narciso surgiu de repente, com os olhos arregalados e o semblante aflito.
— Pessoal, eu preciso da ajuda de vocês. — anunciou, fazendo os dois levarem um susto.
— Entra na fila. — disse Karla com um sorriso travesso, e depois ergueu as mãos num gesto brincalhão. — Brincadeira, o que foi?
Narciso respirou fundo, cruzou os braços e começou a andar de um lado para o outro, claramente nervoso.
— Eu bebi e fui para a casa do João Paulo. Eu acabei pedindo ele em namoro, mas logo recobrei a consciência e falei que eu o pediria em namoro em outra oportunidade. — disse tudo de uma vez, como se as palavras queimassem em sua boca.
Karla piscou algumas vezes, tentando absorver.
— O que está acontecendo com os gays dessa escola? — questionou, rindo incrédula.
— Ei! — Valentim fingiu-se de ofendido, levando a mão ao peito. — E como você pretende pedir ele em namoro?
— Não sei... — Narciso admitiu, coçando a nuca, visivelmente frustrado.
— Eu pedi o Valentim em namoro no Sampa Sky. — contou Noah com orgulho, surgindo de mansinho e se sentando ao lado de Valentim, que sorriu envergonhado.
— O Breno me pediu em namoro quando observávamos o pôr do sol no Nordeste. — disse Karla, com um suspiro dramático, como quem revive um momento perfeito.
Narciso bufou.
— O João Paulo é um cara lindo, então merece um pedido de namoro à altura. Vocês me ajudam?
Um sorriso lento e astuto começou a se formar no rosto de Karla. Seus olhos brilharam como se tivesse acabado de bolar um plano diabólico.
— E se a gente matasse dois coelhos com uma cajadada só? — sugeriu, inclinando-se para perto.
— Ih... lá vem. — murmurou Valentim, já acostumado àquela expressão.
— Eu sou a fada madrinha das gays! — declarou Karla, levantando os braços como se esperasse uma trilha sonora épica. — E eu tenho um plano perfeito.
Narciso e Valentim trocaram olhares curiosos, e então se aproximaram para ouvir. Karla sussurrou seu plano com empolgação, gesticulando exageradamente enquanto explicava cada detalhe. Ao final, os dois rapazes estavam sorrindo, e Narciso parecia mais animado do que nunca.
— Isso vai ser incrível. — disse ele, já imaginando a reação de João Paulo.
— Só não estraga tudo de novo, hein? — provocou Valentim, rindo.
— Confia na fada madrinha. — disse Karla, piscando um olho.
***
Victor passava os dias com uma ansiedade silenciosa que apenas os mais atentos poderiam perceber. Embora não fosse de demonstrar emoções com facilidade, seu olhar denunciava o peso da expectativa que carregava: queria ver Valentim formado. O filho estava um ano atrasado em relação à turma original, mas Victor jamais o cobrara por isso — preferia pensar que cada um tinha seu próprio tempo. Ainda assim, desejava ardentemente que aquela etapa chegasse ao fim para que o rapaz pudesse, enfim, trilhar novos caminhos.
Todas as manhãs, antes de iniciar sua rotina na empresa, ele ligava para José, seu irmão que morava na Irlanda. As conversas eram práticas, mas cheias de cuidado: tratavam da documentação de Valentim, que já estava praticamente toda pronta para que ele pudesse estudar no exterior. José seria o responsável por receber o jovem e ajudá-lo na adaptação ao novo país. Saber disso deixava Victor aliviado.
Na Cardoso Empreendimentos, os dias eram ainda mais agitados do que de costume. Uma nova loja do Grupo Cardoso estava prestes a ser inaugurada, e Victor acompanhava cada detalhe pessoalmente. Entre reuniões, contratos e orçamentos, encontrou tempo para tratar de um assunto especial com sua equipe de confiança: a promoção de Joana. Ela estava com ele há quase um ano e demonstrara um comprometimento raro, daqueles que chamavam atenção mesmo em meio à correria do cotidiano corporativo.
Quando a chamou em sua sala para dar a notícia, ela ficou visivelmente emocionada.
— Eu nem sei como agradecer, seu Victor. — disse Joana, apertando a mão do chefe com firmeza e um sorriso nervoso nos lábios.
— Com muito trabalho duro e dedicação. — respondeu ele com um leve sorriso orgulhoso. — Inclusive, a nossa equipe de Recursos Humanos está preparando um curso para a senhora fazer. Tenho certeza de que vai agregar muito na sua nova jornada de trabalho.
Os olhos de Joana brilharam. Ela respirou fundo e, depois de alguns segundos de hesitação, arriscou uma pergunta pessoal.
— E seu Victor, como está a sua relação com o Valentim?
Victor endireitou a postura na poltrona, e um brilho orgulhoso percorreu seus olhos.
— Muito boa. O meu menino vai ganhar o mundo. — afirmou, com a voz carregada de carinho.
Joana sorriu com o coração aquecido.
— Assim como o João Paulo vai, graças ao senhor. — disse com sinceridade. — Os dois são garotos de ouro. Acho que tivemos sorte nesse quesito.
Victor desviou o olhar por um instante e fitou uma moldura sobre a mesa: uma foto de sua família, sorrindo em um raro momento de descontração.
— Tivemos. — repetiu, num tom suave, como se estivesse falando mais consigo mesmo do que com ela.
***
O início de mais uma semana no Instituto Discere parecia comum. Os corredores voltaram a ganhar vida com o vai e vem dos estudantes, que carregavam pilhas de livros e cadernos enquanto trocavam conversas apressadas sobre provas, trabalhos e fofocas do fim de semana. Algumas mesas da biblioteca estavam ocupadas por grupos que revisavam conteúdo de última hora, e o burburinho típico das segundas-feiras pairava no ar.
De repente, o sistema de comunicação das salas foi ativado. As telas espalhadas pelo colégio acenderam com o brasão do Instituto, interrompendo as conversas e chamando a atenção de todos. Em seguida, surgiu a imagem do diretor Sérgio, com seu semblante sério e voz firme.
— Bom dia, alunos e professores. Espero que estejam todos bem. — cumprimentou, ajustando os óculos. — Hoje, preciso compartilhar algo importante com vocês. E, como acredito na transparência, darei espaço para que a própria pessoa envolvida possa falar.
Um breve silêncio pairou antes de a imagem cortar para outro ambiente: um estúdio simples, onde Gabriel Portugal estava sentado diante das câmeras. Seus ombros estavam levemente curvados e os olhos evitavam encarar a lente. Quando respirou fundo e começou a falar, sua voz saiu trêmula:
— Olá, colegas e corpo docente do Instituto Discere. Para aqueles que não me conhecem, eu me chamo Gabriel Portugal. Nos últimos meses, eu tomei uma sucessão de decisões erradas e prejudiquei muitas pessoas. Eu fui o responsável pela sabotagem na Gincana dos Elementos. Também divulguei e compartilhei um perfil fake de Valentim, além de fazer a postagem expondo o Narciso. Então, eu pedi para o diretor que eu pudesse me desculpar com todos, principalmente para os colegas que foram afetados. Eu sei que o que fiz foi errado e sei que minhas ações terão consequências. Obrigado, e mais uma vez peço desculpas. — lamentou Gabriel, a voz embargada e o olhar fixo na mesa à sua frente.
— Beleza, Gabriel. Você já está fora do ar. — disse o cinegrafista, desligando os equipamentos.
— Obrigado. — murmurou o garoto, tentando esboçar um sorriso, mas se assustando com o toque repentino de seu celular. — Alô, pai?
— Fez o discurso? — perguntou o homem do outro lado da linha, com uma voz áspera e impaciente.
— Sim, senhor.
— Que isso não se repita, Gabriel. Eu não quero ter que limpar as suas sujeiras. Você é uma decepção em todos os sentidos, como filho, como aluno e como político. — disse o homem, encerrando a ligação de forma abrupta, sem sequer se despedir.
As palavras cortaram fundo. Gabriel ficou alguns segundos parado, encarando a tela escura do celular, até sentir as primeiras lágrimas escaparem. Limpou o rosto rapidamente com a manga do uniforme e saiu da sala.
Ao atravessar o corredor, sentiu dezenas de olhares sobre si. Alguns cheios de reprovação, outros apenas curiosos, mas todos igualmente pesados. Nenhuma palavra foi dita, e o silêncio parecia gritar. Gabriel sabia que, se não fosse pelo ano letivo estar tão próximo do fim, já teria sido expulso. A direção, entretanto, havia sido clara: seria melhor que ele se transferisse para outra escola, longe do rastro de mágoas que deixara.
Com o passo arrastado e a cabeça baixa, ele continuou pelo corredor, sentindo como se cada olhar fosse um lembrete do peso que agora carregava.