RIO DE JANEIRO
A manhã em Copacabana parecia igual a tantas outras. O sol surgia preguiçoso, tingindo o céu de tons dourados, enquanto o vai e vem de gente no calçadão formava um mosaico vivo de passos, conversas e suor. Havia quem corresse com fones de ouvido, quem pedalasse em bicicletas alugadas, turistas com câmeras penduradas no pescoço e moradores que, com toda a calma do mundo, passeavam com seus cães.
No entanto, entre tantos rostos, uma figura destoava. Não era pela forma física ou pela falta de camisa que chamava a atenção — afinal, isso era comum na orla. O que realmente fazia as pessoas desviarem o olhar uma segunda vez era o grande ponto de interrogação que parecia pairar sobre a cabeça daquele rapaz. Era como se todos os pensamentos que carregava tivessem se materializado em um único símbolo.
Narciso corria, sentindo a brisa salgada bater contra o rosto. Estava de volta ao Rio de Janeiro para as férias, mas a mente permanecia presa em São Paulo. O contraste era doloroso: por um lado, a saudade do Rio, da maresia, da algazarra das ondas batendo contra a areia, do cheiro de coco gelado que invadia cada esquina. Por outro, a lembrança recente de São Paulo, cidade que lhe havia dado mais do que trabalho e compromissos: havia lhe dado amigos... e alguém especial.
E naquele alguém, o coração dele tropeçava a cada quilômetro percorrido.
"Será que o João Paulo está se alimentando bem?"
"E se ele conhecer alguém?"
"O João Paulo está pensando em mim?"
Cada pensamento o fazia acelerar, como se pudesse vencer a distância entre as cidades com o simples esforço das pernas. Foram cinco quilômetros. Vinte e cinco minutos. Mas em todos os segundos, João Paulo esteve presente.
Ao chegar ao prédio, Narciso respirava fundo, ainda tomado pelo ritmo da corrida. No apartamento, encontrou a mãe sentada no sofá, os olhos mergulhados nas páginas do roteiro de Anjos da Estrada. Ao lado dela, sorridente e já com as ferramentas em mãos, estava Cris, o barbeiro de confiança de Narciso.
— Chegou a hora — disse Cris, balançando a tesoura no ar, quase em tom de brincadeira.
Narciso passou a mão pelos cabelos longos, gesto automático de quem já havia se acostumado com a presença deles, como se fossem parte de sua identidade. Cortá-los seria, de certa forma, deixar uma parte de si para trás. Mas ele sabia que era necessário. Depois de uma série de testes, finalmente havia conquistado o papel de um dos protagonistas. Três semanas intensas de gravação o aguardavam.
Não era um personagem distante de sua própria realidade. A mãe sempre preferira papeis seguros, histórias que não abalassem a imagem cuidadosamente construída ao redor dele. Mas só o simples ato de cortar os cabelos já representava uma mudança radical.
Será que os fãs estariam prontos para esse novo Narciso?
SÃO PAULO
João Paulo acordou cedo naquela manhã fria de julho. Enquanto o sol ainda lutava para aparecer por entre as nuvens cinzentas de São Paulo, a mãe já se movimentava pela casa, ajeitando as últimas peças do grande mostruário que levariam à Feira de Artesanato da República.
Foram quase duas horas no metrô até finalmente desembarcarem na movimentada Praça da República. A feira já fervilhava de barracas coloridas, sons de pregões e cheiro de comida sendo preparada nas tendas. Joana e João Paulo começaram a organizar as criações feitas à mão: roupas delicadas de crochê, toalhas de mesa, panos de prato, jogos de cozinha e até pequenos brinquedos.
O vento gelado atravessava a praça, e os termômetros não passavam dos dez graus. João Paulo se abaixou para guardar algumas peças em uma caixa quando sentiu uma presença atrás de si. Virou com um sorriso automático no rosto — e encontrou Valentim, carregando uma sacola abarrotada.
— E que roupa é essa? — perguntou João Paulo, franzindo o cenho ao ver o amigo com um suéter de crochê que, para ser sincero, parecia mais uma peça de treino do que algo para desfilar em público.
— Eu fiz. Ficou maneiro, né? — Valentim deu uma volta exagerada e piscou, cheio de confiança. — Ser gato é o meu ponto forte.
— Você não existe, garoto. — João Paulo riu, descrente.
Antes que pudesse acrescentar algo, Joana apareceu animada.
— Olha só quem deu as caras! — exclamou, abraçando Valentim. — Pensei que estivesse viajando.
— Nada disso. Estou preso em São Paulo por causa das aulas no Detran. Quebrei o pé no começo do ano, perdi o prazo e agora só posso tirar a carteira agora. — explicou, devolvendo o abraço.
— E trouxe as peças? — ela perguntou, curiosa.
— Sim, só as mais bonitas. — disse Valentim, erguendo a sacola.
Joana conteve um comentário, mas, para não desanimá-lo, resolveu expor algumas peças junto às suas. O trio passou a manhã conversando entre vendas. Valentim não parava de elogiar João Paulo, lembrando o quanto o amigo o ajudava com as matérias mais complicadas, mesmo estando um ano à frente na escola. Entre uma venda e outra, o assunto desviava para Narciso; Joana mostrava com orgulho todas as fotos que havia tirado com o jovem ator, enquanto João Paulo ouvia com um sorriso tímido.
Na hora do almoço, Valentim sugeriu que fossem até um restaurante próximo. Entre risadas, compartilharam refeições quentes, aproveitando uma trégua do frio. Depois voltaram para a barraca, e logo perceberam que o tempo gelado favorecia as vendas. Cachecóis, toucas e mantas sumiam rapidamente das prateleiras.
Para surpresa de todos, as peças de Valentim começaram a chamar atenção.
— Gente, que peça linda! — disse uma moça encantada, segurando um cachecol feito por ele. — Quanto custa?
— Cem reais. — respondeu Valentim sem hesitar.
— Arrasou, gato. Vou pagar no Pix. — Disse a garota. Joana e João Paulo se entreolharam, incrédulos, mas a moça sorriu.
— Moço. — O namorado dela chamou a atenção de Valentim e pegou outro item, curioso. — E esse gorro?
— Na verdade, é uma meia. — Valentim sorriu divertido.
— Melhor ainda, vai combinar com o cachecol. — disse a moça, rindo. — Quanto sai?
— Noventa cada.
A venda foi imediata. Entre gargalhadas e entusiasmo, Valentim vendeu nove peças no total. No fim, entregou todo o dinheiro a Joana, agradecendo emocionado:
— A senhora foi quem me fez gostar do tricô, nada mais justo.
Quando recolheram tudo ao cair da tarde, Valentim ofereceu carona até a casa deles. Joana, contente, o convidou para jantar.
À noite, a cozinha exalava o cheiro de pizza caseira, feita por Joana. Eles comeram reunidos, assistindo a um filme de terror antigo na sala. Valentim percebeu que a casa estava mudando: as paredes que antes mostravam os tijolos aparentes agora ganhavam argamassa, mas ainda havia um charme rústico em cada canto.
Mais tarde, os dois rapazes se recolheram ao quarto. João Paulo deitou-se na cama, enquanto Valentim se ajeitou no colchão improvisado no chão. A conversa, como sempre, deslizou para os assuntos de coração.
— Tenho medo de decepcionar o Noah. — confessou Valentim, olhando para o teto. — Ele é muito especial. Tive que rever tantas coisas em mim para estar com ele... mas parece que sempre aparece alguém para atrapalhar.
— O obstáculo da vez é o Gabriel? — João Paulo perguntou, sem rodeios.
— Bingo. — suspirou Valentim. — Aquele cara é tóxico demais. Só de pensar que já namorou com o Noah... me dá um nó. — Por alguns instantes, ficou em silêncio. Então virou o rosto para o amigo. — Mas e você? Como está o rolo com o Narciso?
João Paulo engoliu em seco, olhando rápido para a porta do quarto.
— Xiu! Se minha mãe descobre, ela surta. Ela é apaixonada pelo Narciso.
— Relaxa. — Valentim riu. — Mas e você? É?
— Não sei. — João Paulo hesitou. — Somos de universos diferentes. Ele é um ator famoso, e eu sou...
— Um cara incrível. — interrompeu Valentim, firme. — Uma pessoa que não mediu esforços para me ajudar. Você não pode se diminuir assim, João Paulo.
O silêncio que seguiu não foi pesado; ao contrário, trouxe um certo conforto. Cada um, à sua maneira, refletia sobre amores, medos e esperanças, enquanto a noite fria de julho envolvia a casa em quietude.
INTERIOR DE SÃO PAULO
Noah sempre se sentia em paz na fazenda. Aquela imensidão verde, o cheiro de terra molhada e o silêncio interrompido apenas pelo canto dos pássaros eram como um santuário, um refúgio do barulho da cidade. Mas, naquela manhã, ao descer do carro, levou um verdadeiro choque.
Doce de Leite, sua égua, estava nos estágios finais de uma gravidez. O rapaz ficou atônito ao ouvir a notícia da equipe que cuidava dos animais. Aparentemente, a égua havia engravidado no ano anterior, mas ninguém havia percebido.
Noah ficou parado diante dela, sem saber se sorria ou se se preocupava. Doce de Leite era sua companheira desde potra, mas ele nunca havia cogitado a possibilidade de vê-la prenha.
Imediatamente, avisou aos pais, que estavam em viagem a Brasília. Raphael, ao contrário dele, reagiu com entusiasmo. Rapidamente, pediu que uma equipe veterinária fosse cuidar do animal e garantiu a Noah que tudo correria bem. Mais tarde, o rapaz não resistiu e mandou a novidade para Valentim.
***
Valentim <3: Então, tá explicado por que a Doce de Leite me derrubou. Hormônios da gravidez.
Noahzito: Vc não existe. Bobo.
Valentim <3: Saudades de ti, novinho. (Foto)
Noahzito: Olha só quem tá acordado esse horário. Saudade de vocês. E como estão as aulas?
Valentim <3: Eu estanquei o carro umas 30 vezes. Quase joguei eu e o instrutor no Tietê, mas está tudo tranquilo. Em breve, o teu homem vai estar motorizado. Fora que estou treinando com o Rafael.
Noahzito: O seu Rafael é tão bonzinho. Aprende mesmo, que eu quero ser Maria Gasolina.
***
Apesar da saudade que sentia do namorado, Noah estava feliz com a calmaria do campo. Suas únicas ocupações eram cuidar de Doce de Leite e tentar se concentrar nos livros que havia deixado de lado. O vestibular se aproximava, e ele ainda não tinha certeza de que rumo seguir.
O pai sonhava em vê-lo estudando Direito ou Ciências Políticas, mas nenhuma dessas opções o entusiasmava. Noah fizera inúmeros testes vocacionais: alguns apontavam para escritor, outros para ator. Nenhum dos dois parecia fazer sentido — ele nunca gostou de escrever e jamais subira num palco.
Enquanto dava banho em Doce de Leite, suspirou alto:
— E se eu virar veterinário, Doce de Leite? — perguntou, esfregando o pelo da égua. — Não, esquece, eu não suporto sangue. Nunca daria certo. Meu Deus, como escolher uma profissão é tão difícil? Que saco.
— Você pode virar político igual ao seu pai. — disse uma voz atrás dele.
Noah congelou, pois reconheceu a dona da voz e arregalou os olhos.
— Mentira! — exclamou, antes de correr e abraçar a visitante. — Prima Evelyn!
— Noah, você está todo melado. — reclamou a moça, mas acabou rindo e retribuindo o abraço.
— Parece um século que não te vejo.
— Três anos, primo. Desde que fui para Londres. E olha só como você cresceu... mas me conta, como está o meu primo preferido?
— Eu sou o único que você tem. — brincou Noah, apertando-a novamente. — Que saudade, Ev!
Depois de terminar o banho da égua, ele próprio tomou um e foi encontrar a prima em seu quarto. Evelyn havia trazido da Europa uma variedade de doces para dividir com ele. Era uma jovem gordinha, cheia de vida, na faixa dos vinte e dois anos, estudando Moda em uma renomada universidade londrina.
Noah, animado, contou-lhe tudo: a saída turbulenta do armário, o inferno que havia vivido com Gabriel, e a inesperada paixão por Valentim. Evelyn escutava cada detalhe como quem acompanha uma novela, reagindo com expressões de choque e surpresa. Quando ele mostrou as fotos de Valentim, ela suspirou alto.
— Primo, estou chocada! Como tudo isso pode ter acontecido em apenas três anos?
— É a vida, gata. — respondeu ele, rindo.
— E o tio Raphael, levou de boa?
— Completamente. No começo foi difícil, mas... depois de tudo o que ele passou no ano passado, acho que aprendeu a ver as coisas de outro jeito.
— Pois é, foi uma barra. Mas pelo menos agora tudo está em ordem. Você com um cara lindo e fofo... Só falta resolver esse problema do Gabriel. Se quiser, eu vou lá e dou uma surra nele.
— Acho que nem porrada dá jeito no Gabriel, Ev. Mas o lado positivo é que o Valentim sempre me apoia.
Evelyn sorriu, cúmplice.
— Eu preciso conhecer esse bofe antes de ir embora.
Noah riu, balançando a cabeça, mas sabia que a prima não estava brincando.
FORTALEZA
Longe do frio de São Paulo, Karla aproveitava as férias ao lado do namorado, Breno. Os dois adoravam estar fora do ambiente escolar, onde sempre havia comentários maldosos e olhares curiosos. Ali, sob o sol do Nordeste, não existiam máscaras nem cobranças. Breno era um garoto trans e não escondia esse fato de ninguém. Tinha orgulho de sua história, e Karla o apoiava com a mesma intensidade, de forma plena e sincera.
Ele havia começado a transição cedo, aos treze anos, e os pais estiveram ao seu lado em cada etapa, bancando tratamentos e acompanhando suas escolhas. O pai, uma figura conhecida no agronegócio nordestino, e a mãe, médica respeitada, nunca deixaram de valorizar o filho. As férias da família eram sempre na casa de veraneio em Fortaleza, uma residência que parecia saída de um sonho.
A casa erguia-se de frente para o mar, com paredes claras refletindo a luz do sol, janelas amplas que deixavam a brisa entrar, e um terraço coberto de redes coloridas. O jardim era pontuado por coqueiros altos, e o som das ondas completava o cenário de descanso. Foi ali que Karla percebeu algo diferente em Breno: ele estava mais leve, mais brincalhão, circulando pela casa sem camisa, trocando piadas com os irmãos e exibindo uma confiança que enchia os olhos dela.
— Se todo mundo fosse assim... — pensou Karla, ajudando o namorado a organizar a mesa do jantar.
Enquanto colocava os talheres ao lado dos pratos, murmurou:
— Espero que um dia você possa passar as férias com a minha família.
Breno sorriu, ajeitando as travessas.
— Ia ser incrível, amor. Mas não te cobra muito por isso. O importante é ter você ao meu lado.
O comentário arrancou um sorriso tímido de Karla, que abaixou os olhos.
— Obrigada por ter tanta paciência comigo.
Ele riu, com aquele jeito descontraído que só tinha ali.
— Eu que agradeço por ter você ao meu lado. Uma mulher linda, inteligente e gente boa. Sabe, diferente dos babacas do Discere, você até que se saiu legal.
— Não sei se isso foi elogio ou ofensa, mas vou fingir que foi elogio. — retrucou ela, divertida, antes de se inclinar e beijá-lo.
— Te amo, linda.
— Te amo, lindo.
O momento romântico foi interrompido pela voz de Bárbara, irmã mais velha de Breno, que aparecia na sala com um ar entediado.
— Podem acabar com esse lenga-lenga? — disse, tentando esconder o incômodo de quem ainda digeria o fim de um noivado.
Breno se levantou e foi até ela com um sorriso malicioso.
— Desculpa se o amor te incomoda. — provocou, abraçando a irmã de surpresa.
— Sorte tua que é mais velho, senão eu não ia ter dó de bater em idoso. — retrucou Bárbara, arrancando risadas de Karla.
O clima ficou ainda mais descontraído quando Lucas, o caçula, apareceu de repente.
— Ei, que arrumação é essa? Dois velhos brigando feito criança? Tomem rumo!
— Tomem rumo? — Breno gargalhou. — O velho aqui é tu!
As brincadeiras enchiam a sala de vida. Karla observava em silêncio, encantada com a cumplicidade entre os irmãos. Diferente dela, que sempre crescera sozinha, Breno carregava consigo esse espírito de irmandade, um vínculo que o protegia e fortalecia. E agora, de algum jeito, ela também fazia parte disso. Estava no lugar em que queria estar.
Foi quando o celular de Karla vibrou sobre a mesa. Na tela, o nome da mãe.
— Oi, mãe? — atendeu, levando o aparelho ao ouvido.
Do outro lado, a voz soava tensa.
— Karla, filha... o seu pai descobriu tudo.
— Como assim? Descobriu o quê? — perguntou, tentando disfarçar a inquietação, embora sentisse o coração acelerar.
A resposta veio direta, quase como um golpe:
— Breno Albuquerque.
— E o que tem? — Karla murmurou, buscando não deixar transparecer o impacto.
— Filha, eu vou tentar apagar o incêndio aqui. Não se preocupe, viu? — disse a mãe, antes de desligar abruptamente.
Karla permaneceu imóvel por alguns segundos, encarando a tela apagada do celular. Breno percebeu o desconforto e envolveu-a com um abraço caloroso, enquanto Bárbara e Lucas terminavam de arrumar a mesa.
— Tá tudo bem, amor? — ele perguntou, acariciando-lhe os cabelos.
— Tá... — respondeu Karla, forçando um sorriso que não chegava aos olhos. Mas por dentro, o coração batia descompassado, como uma bateria de escola de samba prestes a explodir.