✧ O Preço da Confiança ✧
(Tiago)
A entrada do Labirinto da Perdição não era uma simples boca em um penhasco; era uma fenda faminta na própria face do mundo. Um arco de obsidiana polida, que não refletia a luz, mas a devorava, parecia sugar o som e a coragem do ambiente. O ar que exalava de suas profundezas era um miasma de eras, um cheiro denso de poeira milenar, pedra úmida e um desespero tão antigo e palpável que se agarrava à pele como uma teia de aranha invisível e fria.
Trocamos um último olhar, Lucas e eu, uma comunicação forjada em sangue e fogo que dispensava palavras. Nela, reafirmamos o plano, a nossa fé um no outro, e a dura aceitação dos riscos. Sem hesitação, como se temesse que um segundo de pausa pudesse quebrar nosso ímpeto, Lucas virou à esquerda. Eu, à direita. O plano era de uma simplicidade brutal: flanquear a estrutura, cada um buscando uma das lendárias Botas Relâmpago em pedestais opostos, e convergir no coração da construção. Uma estratégia tão direta que chegava a ser um insulto à natureza retorcida e maliciosa do desafio que nos aguardava.
(Lucas)
Os corredores eram mais do que meras passagens de pedra; sentia-os como artérias pulsantes de uma entidade adormecida e malevolente. As paredes, lisas e gélidas ao toque, pareciam ondular sutilmente na periferia da minha visão, rearranjando a geografia do labirinto a cada piscar de olhos. Os sussurros começaram quase que imediatamente, não como ecos distantes, mas como pensamentos invasores plantados diretamente em meu crânio.
“Você os deixou queimar em Valtaris”, disse uma voz com o timbre exato de meu antigo mestre, trazendo consigo o cheiro fantasma de fumaça e carne queimada.
“Fraco. Sempre soube que não era digno”, sibilou outra, imitando perfeitamente o desdém cortante de meu pai.
Mas eu havia me preparado para isso. Aquelas vozes eram apenas fantasmas, e eu não seria assombrado. Em vez de lutar contra elas, eu as deixei passar por mim, concentrando-me naquilo que era inegavelmente real: o rangido rítmico de minhas botas de couro no chão de pedra, a nuvem de minha própria respiração se condensando no ar gélido, a sensação áspera do punho de minha espada sob a luva. Eu não estava fechando uma porta; eu me tornei a própria muralha, erguida tijolo por tijolo com a disciplina aprendida nos silenciosos Campos Floridos. E minhas defesas estavam resistindo.
(Tiago)
Eu me movia com uma fluidez recém-descoberta, um riacho sinuoso contornando obstáculos. O treinamento no lago havia me transformado. A água no meu odre parecia vibrar em uma ressonância suave com meu poder, um lembrete constante de minha nova disciplina e da força que agora corria em minhas veias. Então, o som cortou o silêncio opressor como uma lâmina de vidro.
“Tiago! Socorro! Me ajuda!”
Era a voz de Lucas, inconfundível, mas distorcida por uma agonia tão pura e visceral que meu coração deu um salto violento contra as costelas. Um espasmo instintivo percorreu os músculos de minhas pernas, ordenando que eu corresse, que voasse em sua direção. Mas a mente, forjada na meditação e afiada pela determinação, agiu como uma âncora de gelo.
Lembrei-me de suas palavras na estalagem, a luz da lareira dançando em seus olhos sérios: “O labirinto vai usar o nosso próprio medo, ansiedade e dúvida contra nós. Ignore tudo o que parecer desesperado. Confie no plano, confie em mim”.
Cerrei os punhos, a raiva queimando a isca covarde do medo.
“Um truque baixo e desprezível”, murmurei para as paredes indiferentes, sentindo o poder da água acalmar meu pulso acelerado. E continuei meu caminho.
(Lucas)
Minha primeira grande prova visual se manifestou em uma câmara circular cavernosa, onde o eco de meus passos morria em uma escuridão impenetrável. Daquela escuridão oposta, surgiu uma figura cambaleante: Tiago, com o rosto pálido e manchado de lágrimas, os olhos esbugalhados em puro terror, correndo desesperadamente em minha direção. Em seu encalço, uma criatura tecida dos piores pesadelos emergiu: uma aranha do tamanho de um cavalo de guerra, seu exoesqueleto de quitina brilhando como metal doente, com múltiplas fileiras de olhos vítreos e imóveis. Quelíceras do tamanho de adagas gotejavam um veneno negro e espesso que sibilava ao tocar o chão.
Por um instante de gelar o sangue, meu corpo se preparou para lutar, o pânico ameaçando me engolir. Mas então, a lógica prevaleceu, fria e afiada. Aquele não era o Tiago que eu conhecia. O Tiago que enfrentou Victor sem recuar, que se erguia sempre que caía, jamais fugiria de forma tão patética. E a aranha… era um monstro caricato, grotesco demais, um clichê de horror. Era uma tentativa de chocar, não de enganar de verdade.
“Teatral demais”, pensei, sentindo uma onda de confiança lúcida lavar o medo.
Atravessei a câmara com passos firmes, e a ilusão se desfez atrás de mim, não em fumaça, mas recolhendo-se nas sombras como tinta derramada na água. Estávamos vencendo.
(Tiago)
Minha confiança, no entanto, foi a armadilha mais bem preparada. Avançando por um corredor que parecia idêntico aos anteriores, o chão de pedra sob meu pé direito simplesmente deixou de existir. Não houve um estalo, nenhum tremor, nenhum aviso. Em um instante eu estava caminhando com propósito, no outro, mergulhando em um abismo de escuridão absoluta e silêncio sufocante.
O impacto com o fundo de pedra foi uma explosão de dor que me roubou o ar e a consciência por um segundo, meu corpo inteiro gritando em protesto. Levantei-me, ofegante, tateando ao redor. Eu estava no fundo de um poço cilíndrico, cujas paredes não eram de pedra bruta, mas de um material liso e frio como obsidiana polida, impossíveis de escalar. Muito acima, o círculo de luz da entrada era um sol zombeteiro, uma promessa de liberdade fora de alcance. O pânico começou a borbulhar em meu peito, mas eu o sufoquei com a força de vontade. Eu tinha poder.
“Égide Marinha!”, comandei, tentando conjurar uma plataforma de água sólida para me impulsionar.
Por um instante, uma esfera de água trêmula se formou… e então evaporou com um chiado sibilante, sugada pelas próprias paredes como se o labirinto estivesse sedento por minha magia. Desesperado, tentei o “Tridente de Netuno”, disparando os projéteis aquáticos contra a parede na esperança de criar o menor apoio que fosse. Eles se despedaçaram sem deixar um único arranhão.
O desespero começou a se infiltrar em minhas defesas. Preso. Impotente. E a cada tentativa fracassada, a cada minuto que passava, eu sentia — ou imaginava — que as paredes do poço se esticavam sutilmente para cima, o círculo de luz diminuindo, tornando-se uma estrela cada vez mais distante em um céu de pedra.
O tempo se desfez. Foram horas? Um dia inteiro? A escuridão e o silêncio eram companheiros enlouquecedores, preenchidos apenas pelo som da minha própria respiração irregular e pelos batimentos frenéticos do meu coração. A sede arranhava minha garganta, a fome corroía meu estômago. E então, a voz de Lucas ecoou do alto, não mais um grito de dor forjado, mas algo muito pior: uma urgência frenética, distorcida pela distância e pelo desespero, que quebrou o que restava da minha mente.
“Tiago! Onde você está? Estou de procurando há três dias!”
“Três dias”. A frase ecoou dentro do meu crânio, quebrando a noção do tempo como um martelo quebrando um espelho. Três dias. Preso naquele buraco infernal. A fome, a sede, o fracasso… tudo se chocou contra a barreira da minha sanidade, e ela se estilhaçou. Um grito rasgou minha garganta, um som rouco e animalesco, o som da rendição de uma alma, que foi imediatamente engolido pela imensidão sufocante do poço. Naquele momento, eu já não sabia mais se a voz de Lucas, ou mesmo meu próprio grito, eram reais.
(Lucas)
Eu continuei avançando, minha mente uma lâmina afiada, repelindo ilusões menores — o brilho de um tesouro falso, o som de correntes se arrastando — com uma eficiência que beirava a arrogância. Um orgulho perigoso começou a crescer em mim. Até que virei um corredor e meu mundo se desfez.
A cena diante de mim não era uma criatura fantástica ou um grito distante. Era específica. Pessoal. E totalmente devastadora. Malakor estava lá, não como uma sombra ou uma memória, mas corpóreo, sua presença uma aura de poder maligno tão intensa que congelava o ar e silenciava até meus pensamentos. E de joelhos diante dele, ensanguentado, com os ombros curvados em derrota absoluta, estava Tiago. A luz da esperança, que sempre brilhara em seus olhos, estava completamente extinta.
”Veja, meu filho”, disse Malakor, sua voz um veneno destilado, calmo e cruel. “É assim que a esperança morre. Não com um estrondo, mas com um silêncio.”
Antes que eu pudesse gritar, antes que um único músculo pudesse obedecer ao meu comando de atacar, Malakor conjurou uma lâmina de pura sombra e, com um movimento casual e entediado, como quem espanta uma mosca, atravessou o peito de meu amado.
“Não!”
O grito que rasgou minha garganta não era meu; era o som de cada barreira mental, cada bloco de determinação, cada lição dos Campos Floridos sendo pulverizada em um único e cataclísmico instante. A imagem de Tiago caindo para o lado, o sangue escuro manchando sua túnica, um último suspiro trêmulo escapando de seus lábios, queimou-se em minha retina.
Corri para frente, um rugido de pura dor no peito, mas a cena se dissolveu como sal na água, e tudo o que meus punhos encontraram foi a parede fria e implacável do labirinto. O ar me faltou, meu pulmões em chamas. Minha mente, antes uma fortaleza, agora era um campo de batalha em ruínas, inundado por todas as dúvidas e medos que eu havia suprimido.
O que era real? O sussurro de meu antigo mestre? A aranha? O grito de Tiago por ajuda? A sua morte? A realidade havia se tornado um caleidoscópio de dor, e eu não conseguia mais distinguir um reflexo de uma verdade. Eu caí de joelhos, o som do meu próprio soluço ecoando nos corredores que agora pareciam rir de mim. O corpo de qual Tiago eu estava chorando? O real, ou apenas o primeiro de muitos fantasmas que me assombrariam até o fim?
Continua…