✧ Realidade Partida em Duas ✧
(Tiago)
No momento em que minha carne e osso se reuniram, reformando meu braço como se nunca tivesse sido arrancado, uma sinfonia crescente emanou dos cristais. O zumbido que antes era um murmúrio de fundo agora se tornou uma nota ressonante que vibrava no ar, no chão, e dentro do meu peito. A vibração culminou em uma onda de luz líquida e azulada que pulsou do Fragmento Astral da Água, envolvendo-nos.
Não foi um banho, foi uma imersão. Senti a energia saturar cada fibra do meu ser, dissolvendo a exaustão como sal na água. A fuligem da batalha, o sangue seco em minha pele, o suor e a sujeira… tudo se desfez em partículas de luz, efêmeras como poeira em um raio de sol. Os fios rasgados de nossas túnicas se entrelaçaram em um balé silencioso, costurando-se de volta à perfeição, como se um tecelão fantasma estivesse revertendo o próprio tempo. O cheiro de ozônio e pedra fria preencheu a gruta. Estávamos imaculados, restaurados a um estado de pureza que parecia sacrílego após a violência que havíamos enfrentado. A adrenalina febril foi substituída por uma clareza gelada e sobrenatural.
O olhar atônito de Lucas encontrou o meu, e percebi que ele sentia o mesmo magnetismo, a mesma gravidade sutil que nos puxava. Em um impulso que não nos pertencia, um comando silencioso tecido em nossa própria essência, estendemos a mão em direção à esfera flutuante.
(Lucas)
Nossos dedos romperam a superfície do campo de energia da esfera simultaneamente. A sensação desafiava qualquer descrição. Não era úmida nem sólida, nem quente nem fria. Era como mergulhar a mão na própria potencialidade, na fronteira entre o ser e o nada, uma eletricidade estática que percorria não meus nervos, mas minha alma.
Naquele instante de contato, a realidade se estilhaçou. A gruta, Tiago, meu próprio corpo — tudo foi aniquilado por um rugido branco que explodiu dentro da minha mente e por uma luz que era a ausência de todas as cores. Não fui levado ao futuro, mas arrastado a um passado que eu não sabia possuir, a uma memória trancada em um cofre esquecido da minha existência. Eu era um ponto de vista, um par de olhos infantis olhando para cima de um berço de madeira escura e entalhada. Uma mulher, cujo rosto era a definição de ternura e cujos cabelos brilhavam com a cor do trigo ao entardecer, sorria para mim. Ao seu lado, um homem imponente, cuja presença preenchia a sala. Seus olhos… eles queimavam com a mesma intensidade que eu via em meu próprio reflexo, mas desprovidos da escuridão que o tempo lhes traria.
Ele se inclinou sobre o berço, e sua voz, um barítono profundo e livre da malícia que um dia faria reinos tremerem, sussurrou uma única palavra que funcionou como uma chave, abrindo a porta para o inferno: “Filho”.
Era ele. Antes do poder, antes da escuridão. Malakor. Meu pai.
(Tiago)
Minha consciência foi arrancada da gruta e arremessada através do tempo e do espaço. De repente, eu pairava como um fantasma sobre Eldoria. Mas não a Eldoria que eu conhecia. O céu era de um vermelho doentio, a cor de sangue coagulado, e onde o sol deveria estar, havia apenas um buraco negro no firmamento, um vórtice de antimatéria devorando a luz e a esperança. O eclipse.
Abaixo de mim, a cidade que eu amava era uma pira funerária. As chamas lambiam as torres de mármore branco, transformando-as em tochas enegrecidas. O som era uma cacofonia de desespero: o lamento dos moribundos, o clangor caótico do aço, e o rugido gutural de bestas sombrias que rastejavam pelas ruas como um câncer vivo. O ar fedia a carne queimada, a pedra pulverizada e a magia corrompida. E então meus olhos foram atraídos para o topo da torre mais alta do castelo, o pináculo de nosso reino.
Lá, recortado contra o sol morto, erguia-se uma silhueta de pesadelo, um manto de trevas vivas agitando-se ao seu redor como se tivesse vontade própria. Malakor. Ele não estava atacando a cidade; ele era o epicentro da ruína, e sua mera presença era o que a desfazia. A visão não era um aviso, uma possibilidade. Ela se instalou em mim com a certeza fria e absoluta de uma memória de algo que ainda não aconteceu, um fato imutável gravado na tapeçaria do destino.
(Lucas)
Fui expelido da visão com a força de uma catapulta, caindo de volta na realidade com um solavanco que me roubou o fôlego. O ar frio da gruta queimou meus pulmões, e cambaleei para trás, arrancando a mão do fragmento como se ela estivesse em chamas, a pele formigando com o contato profano.
A gruta parecia pequena, claustrofóbica. A palavra “filho” ecoava, não em meus ouvidos, mas em meu sangue, um veneno se espalhando por cada veia. O rosto gentil daquele homem na memória se sobrepunha, se fundia e se transformava na máscara de ódio do tirano Malakor. Era uma verdade tão monstruosa, tão fundamentalmente errada, que meu corpo a rejeitava com espasmos de náusea.
Levei as mãos à cabeça, cravando os dedos em meu cabelo, puxando como se pudesse arrancar fisicamente a memória de meu crânio.
“Não!”, o grito rasgou minha garganta, cru e selvagem, o som de uma alma se partindo.
Ele ricocheteou nas paredes de cristal, multiplicando-se até que a caverna inteira parecia gritar comigo.
“Não, não, não! Malakor, não!”
(Tiago)
O grito de agonia de Lucas me arrancou da minha própria paisagem infernal. O resíduo gelado da destruição de Eldoria ainda se agarrava à minha alma, mas a dor dele era presente, imediata, uma ferida aberta bem na minha frente. Vê-lo assim, desmoronado, o pilar de força inabalável que sempre fora reduzido a um homem tremendo e quebrado, foi um choque quase tão grande quanto a própria visão. Minha primeira suposição, a mais lógica, era que ele havia testemunhado o mesmo futuro desolador.
“Lucas, calma!”, minha voz soou fraca, instável.
Aproximei-me, estendendo as mãos para segurar seus ombros, mas ele se debateu, os olhos selvagens e sem foco, perdido em um tormento que eu não compreendia.
“É uma ilusão!”, insisti, as palavras soando como uma frágil mentira até para mim. “Uma armadilha do fragmento, um truque para nos quebrar!”
Eu estava tentando convencê-lo, mas uma parte de mim tentava desesperadamente se convencer.
(Lucas)
As palavras de Tiago eram apenas um zumbido distante, um ruído de fundo para o cataclisma em minha mente. “Ilusão?”. Aquele sentimento de pertencimento, a ressonância daquela voz em meus ossos… era mais real do que a pedra sob meus pés.
Com uma força nascida do pânico, agarrei a frente de sua túnica, torcendo o tecido em meu punho. Meus olhos, desesperados, finalmente encontraram os seus, implorando por uma negação, por qualquer outra verdade que não fosse a minha.
“O que você viu?”, perguntei, a voz um grunhido rouco. “Tiago, pelo amor dos deuses, me diga o que você viu!”
Ele hesitou por uma fração de segundo, e eu vi o horror da sua própria visão ainda estampado em seu rosto.
“Eu vi... o eclipse. O próximo eclipse”, ele disse, a voz baixa e carregada de desgraça. “Malakor vai destruir Eldoria. Ele vai queimar tudo até as cinzas!”
A verdade dele colidiu com a minha. A confirmação da profecia da queda de Eldoria e a revelação do meu sangue não eram duas visões separadas, dois horrores distintos. Eram a mesma história. A profecia e a paternidade não eram duas serpentes, eram uma única hidra, e naquele momento, eu senti suas presas em meu coração. A força me abandonou como se meus ossos tivessem se transformado em pó. Caí de joelhos, o impacto surdo no chão da gruta, e o choro veio, não em soluços, mas em convulsões que pareciam me partir por dentro.
(Tiago)
Ele desabou, e eu me ajoelhei com ele, segurando-o firme enquanto seu corpo era abalado por um luto primordial. O som de seu choro, tão cru e desprotegido, ecoou no silêncio cristalino, um contraponto devastador à harmonia do fragmento. Eu o embalava, sussurrando palavras de conforto vazias e sem sentido, quando ele me interrompeu e relevou uma verdade horripilante. Lucas era filho de Malakor. O herdeiro genético de nosso maior inimigo, do arquiteto do nosso apocalipse, soluçando indefeso em meus braços.
A visão do futuro se mesclou com a realidade do presente, e um medo diferente, mais agudo e pragmático, tomou conta de mim. E se essa verdade o corrompesse? E se o sangue do tirano, adormecido por anos, finalmente despertasse? O reino, se soubesse, o veria como um monstro em espera, um espião involuntário, uma bomba-relógio no coração de nossa resistência.
Naquele instante, segurando o homem que amava, eu soube que palavras de conforto não eram mais suficientes. A amizade não bastaria. Eu precisava forjar um laço com ele que fosse mais forte que o sangue, mais profundo que a profecia, mais absoluto que o dever para com o reino. Precisava que sua lealdade não fosse a Eldoria, nem a um ideal. Teria que ser, incondicional e unicamente, a mim.
Continua…