O tempo passou e chegamos em dezembro. Meu aniversário havia passado e não quis grandes comemorações, a verdade era que eu havia ficado traumatizado com o aniversário de morte da Chanel, então evitava comemorar. Apesar de não falar muito da Chanel, ela ainda iria fazer um grande feito na minha vida mesmo com sua morte. Como vocês sabem, eu gosto de soltar umas coisas, mas esse capítulo não é sobre a Chanel, é sobre o Luke. Então vamos voltar ao foco.
O segundo semestre, eu diria, foi um grande turbilhão. Foi uma rotina completamente nova para mim, com o fato de ter duas faculdades ao mesmo tempo. Era puxado, mas bom ao mesmo tempo, e me fez conhecer outras pessoas e aumentar meu círculo de amigos. Vou pular um pouco esse meu primeiro ano na nutrição, porque não tive nada de relevante para o texto.
E vocês devem estar se perguntando: e Carlos? E Raul? E Guto? E Paul? Bom, um breve resumo de cada um.
Carlos — aquele que me ensinou sobre a complexidade do amor adolescente, que me mostrou como duas pessoas podem se amar e ainda assim se machucar. Carlos tinha essa capacidade única de me fazer sentir especial e vulnerável ao mesmo tempo. Ele era intensidade pura, paixão desenfreada, mas também insegurança e possessividade. Com Carlos, eu aprendi que nem todo amor que queima forte dura para sempre. A distância entre nós seguia, aquela tentativa frustrada dele de uma aproximação. Apesar de ter mexido comigo, eu não cedi. Cada um estava seguindo sua vida, eu estava feliz com Luke, e ele ficava cada vez mais sério com Raul.
Raul — minha relação com ele era de mal a pior. Eu ainda sabia que ele era um GP e tinha essa informação que às vezes pretendia usar, e às vezes não queria usar. Afinal, Carlos e Raul eram páginas e livros fechados da minha vida, porque eu estava completamente apaixonado por Luke.
Guto — o homem mais velho que me mostrou um tipo diferente de desejo, mais carnal, mais direto. Com Guto eu aprendi sobre atração física pura, sobre como o corpo pode querer independentemente do coração. Ele tentou me procurar várias vezes durante esses meses, eu ignorava suas mensagens assim como suas ligações. Eu entendi que ele nunca iria pertencer ao meu mundo, e eu não iria pertencer ao seu. Todo nosso envolvimento se resumia a sexo, e ele, apesar de ter 43 anos, parecia que não entendia isso. Por outro lado, eu estava completamente feliz com Luke.
Paul — ele havia voltado para o Brasil. Nosso contato foi zero, como havia sido nos últimos tempos. Quando nos encontramos, Luke teve algumas inseguranças, mas logo ficou mais calmo. Quando digo inseguranças, refiro-me às crises de ciúmes que ele começava a ter, até que entendeu que eu e Paul definitivamente não tínhamos nada. Paul estava focado num relacionamento também.
E Luke? Ah, Luke... Luke era diferente de todos eles. Se Carlos me ensinou sobre paixão adolescente, se Guto me mostrou desejo carnal, se Paul me deu uma ilusão de amor maduro, Luke me trouxe algo que eu nunca havia experimentado antes — uma mistura devastadora de amor profundo e dependência emocional. Luke tinha o dom de me fazer sentir como se eu fosse a pessoa mais importante do universo e, ao mesmo tempo, a mais insignificante. Ele era ternura e tempestade, carinho e controle, magia e manipulação. Com Luke, eu descobri que é possível amar alguém tão intensamente que você perde completamente a noção de onde termina o amor e onde começa a obsessão.
Então acho que ficou claro que todos os meus "problemas" deixaram de ser problemas enquanto eu vivia uma linda história de amor com Luke. Mas como eu disse no capítulo anterior, nem tudo eram flores, e mar calmo nunca é bom sinal.
Eu estava também estagiando num box de crossfit, como vocês sabem, e lá eu era super querido por alguns coaches e alunos. Luke me acompanhava vez ou outra, e ele era cismado com um aluno, o Vinícius. Ele devia ter seus vinte e poucos anos, tinha um sorriso lindo, era todo definido e mandava super bem na calistenia.
Luke desenvolveu uma cisma muito grande por ele, da qual nunca entendi como tudo isso tinha começado. Vinícius me havia adicionado no Instagram, sempre comentava minhas coisas, mas eu sempre deixava claro aos meus seguidores que namorava com Luke. Durante todo esse tempo, me mantive fiel, sim, vocês estão lendo isso: eu, Lucas, fui fiel. Só tinha olhos para Luke. A gente estava vivendo nosso conto de fadas, estávamos tendo um namoro de verdade, com todas as coisas boas que um namoro tem a oferecer. Mas como eu disse, mar calmo não é bom sinal.
Luke tinha essa cisma pelo Vinícius, e vez ou outra fechava a cara. Às vezes mudava de humor drasticamente, se eu falasse ou respondesse ao Vini, era briga na certa. Muitas vezes eu tranquilizava Luke, dizendo que ele via coisas onde não havia, que Vini era apenas um amigo. Apesar de que a gente sabe quando alguém está afim da gente, e era claro que Vini queria ficar comigo. E, bom, devo admitir que eu também queria ele. Mas eu estava com Luke, não iria trair por trair, assim como fiz diversas vezes antes. Eu tinha feito um pacto com Luke, eu tinha feito uma promessa e iria honrar essa promessa para ele.
Os pequenos surtos de Luke começaram de forma sutil. Primeiro foram os olhares — aqueles olhares penetrantes que duravam alguns segundos a mais do que o normal quando eu mencionava qualquer pessoa, especialmente homens. Depois vieram os comentários ácidos, sempre disfarçados de brincadeira:
— Engraçado como você sempre tem muito assunto com outros caras — ele dizia, sorrindo, mas com os olhos frios.
— Luke, para com isso. Você sabe que eu só tenho olhos para você.
— Eu sei, amor. É só... você é muito carismático. Às vezes tenho medo que alguém tente te conquistar.
Essas conversas sempre terminavam com beijos e declarações de amor, então eu não dava muita importância. Afinal, ciúmes em pequenas doses podem até ser fofo, não é? Eu pensava que era apenas insegurança normal de quem ama muito.
Mas as coisas começaram a escalar quando Luke descobriu que eu havia curtido algumas fotos do Vinícius no Instagram. Era algo completamente inocente, eu curtia fotos de vários amigos, mas Luke levou para o lado pessoal.
— Por que você curtiu a foto dele sem camisa? — perguntou ele, segurando meu celular com força.
— Luke, é só uma curtida. Eu curto foto de todo mundo.
— Mas você curtiu bem rápido. Como se estivesse stalkeando o perfil dele.
— Isso é ridículo. Eu não fico stalkeando ninguém.
— Então por que você não curte as minhas fotos tão rápido assim?
Era uma lógica distorcida, mas eu ainda tentava racionalizar, ainda tentava acalmar a situação. Luke sempre conseguia me fazer sentir culpado, mesmo quando eu sabia que não havia feito nada errado.
O Vini marcava em cima, e isso sempre resultava em briga, principalmente se Luke pegasse meu celular e encontrasse alguma mensagem dele. Uma vez, por azar do destino, Vinícius mandou um nude do nada pelo Instagram, e por maior azar do destino, Luke estava do meu lado quando a mensagem chegou.
Foi uma briga muito feia.
Luke tomou meu celular das minhas mãos com violência, me bateu, disse que eu não prestava. Me defendi da melhor forma que pude, mas aquela havia sido nossa primeira briga séria durante toda nossa volta do namoro. E aquilo me deixou muito mal, as coisas que Luke me disse, o que ele fez... Ele ficou super estranho comigo depois disso.
— Você é um mentiroso — ele gritava, segurando o celular longe de mim. — Finge que me ama, mas fica se insinuando para outros caras!
— Luke, eu nem pedi essa foto! Ele mandou do nada!
— Claro, porque você não deu motivo nenhum, né? Deve ter sido muito inocente da sua parte.
— Eu nunca dei motivo para isso!
— Para de mentir! — Ele me empurrou contra a parede. — Você acha que eu sou idiota? Eu vejo como você olha para ele no crossfit, como vocês conversam...
— A gente mal conversa, Luke! Você está ficando paranóico!
Foi nesse momento que ele me deu o primeiro tapa. Não foi forte, mas o choque foi imenso. Luke nunca havia levantado a mão para mim antes.
— Desculpa — ele disse imediatamente, parecendo tão surpreso quanto eu. — Desculpa, amor, eu não queria...
Mas o estrago estava feito. Algo havia se quebrado entre nós naquele momento.
Então deletei Vini do Instagram, do WhatsApp, de tudo. Luke meio que ficou tranquilo depois disso, mas aquela briga não saía da minha mente. Só que o que eu não sabia era que aquilo era apenas a ponta do iceberg.
Na primeira semana de dezembro, já estávamos praticamente de férias, só faltava entregar um projeto de nutrição, e olha, férias. Era sexta-feira à noite, e eu e Luke estávamos indo fazer uma pequena viagem para uns chalés na praia. Seria um final de semana diferente nosso.
Luke dirigia e eu ia colocando as músicas. Tudo estava perfeitamente bem, tudo tranquilo, até que meu telefone tocou. E quem era? "Vini número novo". Sim, ele mesmo. Meu telefone estava no Bluetooth do carro, e Luke viu a ligação na tela do painel.
— Seu namoradinho está te ligando — disse Luke, bufando de raiva.
— Ele não é meu namoradinho. Eu nem sei por que ele está me ligando.
— "Vini número novo"? Sério mesmo, Lucas? Você acha que eu sou tonto? Atende essa merda e quero ouvir o que ele tem a dizer.
Respirei fundo e atendi pelo viva-voz, já sentindo meu estômago se contraindo de nervosismo.
— Oi, Vini.
— Tá por onde, gatão? — a voz embriagada dele ecoou pelo carro. — Tô super bebado, vamos nos encontrar, por favor.
Luke apertou o volante com tanta força que seus nós dos dedos ficaram brancos.
— Vini, eu namoro. Já disse para você me esquecer e não falar comigo. Tchau.
— Não desliga, por favor! — Vini gritou antes que eu pudesse encerrar a ligação. — Você é muito tesão, larga o Luke. Você não merece ele, ele não presta.
— Tchau, Vini.
Desliguei rapidamente, mas já era tarde demais. Estávamos na estrada, era umas 23h da noite, quando Luke freou o carro com tudo. O pneu cantou no asfalto, e eu tomei um susto.
— O que houve? Bateu?
— Desce do meu carro agora — a voz dele estava diferente, mais grave, mais fria.
— Oi? Tá ficando maluco? O Vini estava bêbado, você não ouviu?
— DESCE AGORA! — ele berrou, e foi aí que começou a me dar socos.
— Você quer mesmo que eu desça aqui? Nesse fim de mundo, escuro desse jeito? Você está maluco, Luke!
— FOOOORRRRAAA! DESCE DA PORRA DO CARRO SE NÃO EU TE MATO! — Luke gritou, ficando vermelho, as veias saltando no pescoço.
Pela primeira vez na minha vida, tive medo de Luke. Medo real, visceral, do tipo que faz seu corpo inteiro tremer.
— Você é um idiota, Lucas! — ele continuou gritando, batendo no volante. — Você, como sempre, bota tudo a perder entre a gente! Não sabe segurar esse rabo, tem que dar para qualquer macho!
— Luke, eu não te traí, por favor! — falei, chorando.
— DESCE DO CARRO AGORA! — E então ele me deu um tapa que fez minha cabeça bater no vidro da janela.
Então abri a porta, tremendo, e Luke arrancou o carro, me deixando ali, numa estrada sozinho, cheio de mato, longe da cidade, sem dinheiro, sem nada. Meu celular havia caído no banco do carro dele.
Comecei a chorar e me sentir completamente perdido e sozinho. Como Luke foi capaz daquilo? Tudo bem que ele vinha com alguns surtos, mas aquilo? Me largar no meio do nada por uma crise de ciúmes da qual eu não tive culpa alguma em partes?
A escuridão era total, um breu absoluto. Não passava nada naquela estrada deserta. Comecei a caminhar sem rumo, sem saber o que fazer, tentando achar algum abrigo ou alguma coisa. Meus passos ecoavam no asfalto frio, e cada ruído da mata me fazia pular de susto. Eu nunca havia me sentido tão pequeno, tão indefeso, tão abandonado.
Então vi faróis de um carro vindo na direção contrária. Resolvi atravessar a pista e tentar uma carona ou algo do tipo. As luzes do farol estavam altas, foram abaixadas, e a velocidade diminuiu. Quando o carro se aproximou, era Luke.
Ele parou ao meu lado e disse, com uma frieza que me gelou a espinha:
— Entra.
— Luke, para que isso, cara? — falei, chorando. — Você ficou maluco?
— Entra nessa porra de carro antes que eu me arrependa.
Entrei, ainda tremendo, ainda chorando. Fiquei pedindo desculpas por algo que eu nem sabia direito o que era, disse que Luke estava sendo injusto. Ele apenas dirigia em silêncio, com uma expressão séria e assustadora. Eu só fazia chorar.
Não podia acreditar que meu grande amor estava ali, prestes a desmoronar mais uma vez por algo que eu não tinha culpa, por algo que era apenas loucura na cabeça de Luke. Eu falava, e Luke não me olhava, não me respondia. O silêncio dentro do carro era ensurdecedor.
Chegamos de volta à nossa cidade. Disse para Luke me deixar em qualquer canto, mas ele seguiu dirigindo. Não sabia para onde ia me levar e não disse mais nada apenas fiquei chorando, tentando me explicar em vão.
Foi quando Luke parou num motel.
— Luke, motel? Eu não estou com cabeça para nada — minha voz saiu fraca, quase um sussurro.
— Cala a boca, seu imundo! — ele rosnou. — Você não tem vez aqui. Estou com ódio de você.
Luke saiu, bateu a porta do carro e foi fechar o quarto do motel. Fiquei me perguntando o que deveria fazer, se ia embora, se entrava, se ficava ali. Mas tudo foi em vão. Quando ele voltou:
— Vai, desce do carro.
— Luke, por favor... — comecei a chorar novamente.
Entramos no motel. O quarto era pequeno, com aquele cheiro característico de desinfetante mal disfarçando outros odores. Assim que entramos, Luke avançou para cima de mim, começou a me beijar com violência e arrancar minha roupa, mas eu não estava no clima. Ele conhecia meus pontos fracos, sabia exatamente como me tocar, mas dessa vez era diferente, havia algo predatório nos seus movimentos.
— O quê? Não vai ficar animado comigo? Só fica animado com o Vini? — ele perguntou, com um sorriso cruel nos lábios.
— Luke, por favor...
PAAFFFFF! Um tapa na minha cara que me derrubou no chão.
— Você é um fraco, isso que você é! — ele gritou, em cima de mim.
— Luke, para, por favor...
E então, dali em diante, foi só ladeira abaixo.
Luke me bateu, rasgou minha camisa, tirou minha roupa e praticamente me abusou sexualmente. Foi a primeira vez que tive raiva do nosso sexo, raiva de Luke, raiva de mim por estar ali, me permitindo ser usado e humilhado de forma tão brutal.
Luke batia na minha cara enquanto me forçava. Me dava socos no estômago, cuspia no meu rosto. Em outro contexto, algumas dessas coisas até poderiam ser consideradas um jogo sexual mais intenso, mas ali era humilhação pura, era dor, era sofrimento, era violência.
— Você gosta assim, não gosta? — ele dizia, me segurando pelo cabelo. — Você gosta de ser tratado como o que você é!
— Para, Luke, você está me machucando!
— Machucando? — ele riu, um riso que não tinha nada de alegre. — Você ainda não viu nada.
O Luke que eu amava tinha se transformado num demônio. Ele não era mais aquele garoto que fez truques de mágica, que trocou juras de amor comigo no chão da sua sala. Era um monstro que estava me fazendo criar um dos maiores traumas de toda a minha vida. Era um castigo no qual eu era inocente, do qual eu não tinha culpa total.
Quando ele terminou, eu dei graças a Deus. Me senti fraco, sentia o gosto de sangue na boca, me sentia um completo idiota por ter me permitido passar por aquilo. Mas ainda não tinha acabado.
Por um momento de paz, Luke veio até mim, e como se fosse uma outra pessoa, uma outra personalidade, ele me abraçou.
— Desculpa, eu não quis te machucar. Eu te amo, me perdoa — disse Luke, me abraçando, mas eu fiquei imóvel. Não tinha forças, não queria dizer nada, só queria sumir dali para sempre.
— Lucas, eu peguei pesado, me desculpa, por favor.
Luke se levantou, foi até o frigobar, abriu uma garrafa de cerveja e começou a beber. Em questão de segundos, aquela personalidade doce e arrependida se transformou. Ele me olhou, seu olhar mudou completamente, como se um interruptor tivesse sido acionado, e então começou a jogar as coisas em mim.
Ele agora estava com uma garrafa de água e jogou na minha cara. Jogou tudo o que tinha ao seu alcance, copos plásticos, sachês de açúcar, almofadas. Me chutou, disse coisas horríveis:
— Você é uma merda! — ele gritava, me chutando no chão. — Você não vale nada! Ninguém nunca vai te amar de verdade! Você é patético!
E novamente eu só fiz chorar, me sentindo a pior pessoa do mundo. Como Luke era capaz de fazer aquilo? O que tinha acontecido com ele?
Luke ligou para a recepção, pediu a conta, vestiu a roupa e jogou minha bermuda e cueca para mim como se fossem trapos. A conta chegou, ele pagou. Já eram quase 4h da manhã. Eu não tinha mais lágrimas, não tinha mais forças.
Saímos do motel em silêncio. Assim que chegamos na estrada, Luke parou o carro novamente.
— Desce do carro. Eu te odeio, Lucas. Você não presta.
Peguei meu celular, que ele havia jogado no meu colo com desdém, e saí do carro. Me sentei no meio-fio. Tentava chorar, mas não conseguia mais, era como se meu corpo tivesse esgotado toda sua capacidade de produzir lágrimas.
Luke foi embora, deixando o cheiro de pneu queimado no ar. Pelo menos agora eu estava na civilização, próximo a uma avenida movimentada, mas aquela noite tinha sido a pior de toda a minha vida.
Como Luke foi capaz de tamanha crueldade? Eu estava completamente perdido. Não sabia o que fazer. Não queria ligar para meu pai ou qualquer pessoa da família. Mas havia só uma pessoa que poderia me salvar, somente uma pessoa que eu queria naquele momento.
Então não pensei duas vezes — procurei seu telefone na agenda e liguei.
Deu um, dois, três, quatro, cinco toques, e nada.
Até que ele atendeu.
— Alô? — a voz sonolenta ecoou do outro lado da linha.
— Tá dormindo? — falei, com minha voz começando a falhar.
— Sim... O que houve?
— Vem me buscar, por favor — e comecei a chorar novamente.
— O que aconteceu, Lucas?
— Por favor, vem. Tô perto do McDonald's da Avenida 7 — e chorei de soluçar, como uma criança perdida.
— Tá, tá. Fica aí, vai pro McDonald's que eu chego já lá.
Houve uma pausa, e ouvi ele afastando o celular, provavelmente falando com alguém que dormia ao lado:
— Cala a boca … – puff desligou.
Enquanto esperava, sentado naquele meio-fio frio, com o corpo dolorido e a alma destroçada, me lembrei de uma passagem de "O Pequeno Príncipe" que minha professora de literatura havia lido para a turma anos atrás. Era sobre as baobás — aquelas árvores que, se não fossem arrancadas enquanto pequenas, cresceriam tanto que acabariam destruindo o planeta inteiro.
"É preciso arrancar os baobás logo que a gente os distingue das roseiras, às quais se assemelham muito quando pequenos", dizia Saint-Exupéry.
Naquele momento, eu compreendi que os sinais de possessividade e agressividade de Luke eram os baobás da nossa relação. Pequenos no início, parecidos com cuidado e amor, mas que eu deixei crescer até que se tornaram monstros capazes de destruir tudo.
Os primeiros ciúmes, os primeiros comentários ácidos, os primeiros momentos em que ele me fez sentir culpado por coisas que eu não havia feito, todos eram pequenos baobás que eu deveria ter arrancado pela raiz. Mas eu estava tão cego pelo amor, tão deslumbrado com a intensidade do que sentia, que confundi possessividade com paixão, controle com cuidado, manipulação com amor.
O filósofo francês Simone de Beauvoir, em sua obra sobre o segundo sexo, escreveu algo que naquele momento ganhou um significado dolorosamente real para mim: "O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos". Eu havia me tornado cúmplice da minha própria opressão, justificando os comportamentos abusivos de Luke porque acreditava que eles eram manifestações do seu amor por mim.
Gaslighting — embora eu não conhecesse essa palavra na época — era exatamente o que Luke fazia comigo. Ele distorcia a realidade de tal forma que eu acabava questionando minha própria percepção dos fatos. Quando ele dizia que eu estava flertando com outros caras, quando afirmava que eu dava motivos para que outros me cantassem, quando insistia que eu era o culpado pelas suas explosões de raiva, eu acabava acreditando.
O psicólogo Carl Jung escreveu sobre a sombra, aquela parte de nós que reprimimos e negamos, mas que continua existindo em nosso inconsciente. Luke não havia integrado sua sombra; ele a projetava em mim. Todos os seus medos, suas inseguranças, sua incapacidade de lidar com suas próprias emoções se transformavam em acusações contra mim.
Mas talvez a reflexão mais perturbadora daquela madrugada tenha sido a consciência de que eu também tinha minha parcela de responsabilidade, não pela violência que sofri, essa culpa era inteiramente dele, mas pela minha incapacidade de estabelecer limites saudáveis. Eu estava tão carente de ser amado, tão desesperado para fazer nosso relacionamento funcionar, que aceitei migalhas de afeto em troca de oceanos de dor.
O amor verdadeiro não deveria doer daquele jeito. O amor verdadeiro não deveria exigir que eu me diminuísse para que o outro se sentisse maior. O amor verdadeiro não deveria me deixar com medo, machucado e abandonado no meio-fio de uma avenida às 4h da manhã.
Mas mesmo sabendo disso, mesmo depois de tudo que havia acontecido, eu sabia que ainda amava Luke. E essa talvez tenha sido a descoberta mais assombrosamente triste daquela noite: que é possível amar profundamente alguém que nos destrói, que podemos sentir saudade de quem nos machuca, que nosso coração pode insistir em querer alguém que nossa mente sabe ser perigoso.
Vi os faróis de um carro se aproximando, diminuindo a velocidade. Meu coração disparou, por um segundo, pensei que poderia ser Luke voltando, talvez arrependido, talvez querendo me pedir desculpas mais uma vez. Mas então reconheci o carro, e uma mistura de alívio e vergonha tomou conta de mim.
Era ele. A única pessoa para quem eu consegui ligar naquela madrugada desesperada. A única pessoa que eu sabia que viria me buscar, sem perguntas, sem julgamentos, só porque eu pedi.
O carro parou na minha frente, e eu permaneci imóvel por alguns segundos, como se ainda não acreditasse que alguém havia vindo me salvar. Então a porta se abriu, e eu vi aquele rosto familiar, preocupado, sonolento, mas presente.
— Lucas? Meu Deus, o que aconteceu com você?