CURTE UM ROMANCE GAY FOFO E DESPRETENCIOSO? SEGUE O SEGUNDO CAPÍTULO:
Valentim reuniu toda a coragem que ainda restava em si. O coração batia acelerado, mas ele manteve o sorriso, aquele mesmo sorriso que usava quando precisava esconder a confusão dentro do peito. Com passos decididos — e Karla a tiracolo —, foi até o novato.
— Com licença, você está perdido? — Perguntou, voz firme, tentando parecer despreocupado.
O garoto ergueu os olhos com uma expressão blasé que desarmou Valentim por completo. Havia algo naquele olhar — distante, afiado, como se já soubesse de tudo e estivesse entediado com o mundo. Valentim hesitou, e por um segundo, sua confiança vacilou.
Mas então, Noah olhou para Karla — e sorriu. Um sorriso genuíno, leve, quase bonito demais para alguém com aquele olhar tão cínico. Os dois se apresentaram. Karla, empolgada como sempre, tratou logo de apontar para Valentim.
— Esse aqui é meu namorado.
Valentim assentiu, ainda tentando entender por que aquele sorriso de Noah o incomodava tanto.
— Eu tô procurando o 2º ano A. — explicou Noah. — Me perdi no caminho.
— Ah, é a minha turma! — Disse Karla. — Vamos, eu te levo.
Antes que Valentim pudesse dizer qualquer coisa, ela já o abraçava de leve, entregando um panfleto dobrado ao namorado.
— É da turma de futsal. Já abriram as vagas, esqueci de te avisar. A gente se vê no intervalo, amor.
E assim, como um furacão, Noah e Karla sumiram no corredor.
Valentim ficou parado por um momento. Olhou para o panfleto em sua mão. Depois para o corredor vazio.
— Que merda — Murmurou. — Esse fedelho!
Amassou o papel entre os dedos.
Na sala de aula do 3º ano, o burburinho era o mesmo de sempre. Colegas que estudavam juntos desde o fundamental, filhos de empresários, influenciadores e celebridades — todos se reencontrando como se fosse um episódio novo da série favorita. Valentim conhecia todo mundo, mas não confiava em quase ninguém. Karla era sua âncora naquele mar de aparências.
Como esperado, o assunto principal era a Gincana dos Quatro Elementos. Um evento que deixava todos em estado de alerta. A cada ano, as provas ficavam mais difíceis, mais disputadas. E, como líder eleito da turma, Valentim sentia o peso da responsabilidade.
— Vocês sabem que o segundo ano tá vindo com sangue nos olhos, né? — Comentou Berenice, filha da atriz Renata Pires, enquanto retocava o gloss diante da câmera frontal.
— Como assim?
— Chegou um novato. Filho de senador. Noah, eu acho. Dizem que o garoto já ganhou duas olimpíadas. Nada igual a um peixe. Bonitinho, viu. Cuidado, hein. Ele pode roubar tua coroa de rei da escola.
Ela riu, fingindo tirar uma coroa invisível da cabeça de Valentim.
Valentim bufou.
— Fedelho. Aposto que não aguenta cinco minutos numa partida de futsal.
O sistema audiovisual da escola se ativou com o chiado habitual, interrompendo a conversa. A imagem do diretor Sérgio Fernandes surgiu em todas as telas. Um homem alto, de cabelo grisalho e terno impecável, com uma postura quase teatral.
— Bom dia, alunos do Instituto Discere. — O diretor os cumprimentou, sorrindo com os olhos. — Sejam bem-vindos ao novo ano letivo. Especialmente vocês, novatos. Esta casa é de vocês também.
A fala sobre normas e conduta escolar arrancou suspiros e olhos revirados. Era sempre o mesmo discurso. Mas, quando Sérgio mencionou a Gincana dos Quatro Elementos, as atenções se reacenderam.
Do outro lado da escola, na sala do 2º ano A, Noah franziu o cenho, confuso.
— Gincana dos quê? — Murmurou.
Karla, ao lado dele, sorriu e o puxou para um canto.
— É a maior competição da escola. Acontece o ano todo. Tem prova de futsal, natação, dança, corrida... E cinco grandes provas inspiradas nos elementos da natureza.
— Sério?
— Uhum. E culmina com a Prova Final, que define quem leva o troféu. O meu namorado está ansioso. É o último ano dele. A turma dele... meio que nunca perde.
— O Valmir?
— Valentim.
— Isso. — Noah soltou, querendo parecer indiferente, mas lembrava do nome. — Valentim. E se a gente quebrar essa sequência?
Noah sorriu com aquele mesmo brilho cínico nos olhos.
— Você seria o meu herói. — Riu Karla. — Eles até têm talento, mas organização não é o forte deles.
— Bem, isso muda agora. Eu sou ótimo em competições. E qual é a primeira prova?
— Terra. Corrida do Revezamento Sustentável. Equipes enfrentam obstáculos e coletam recicláveis pelo caminho. Estratégia, força e consciência ambiental.
***
A primeira semana de aula passou num turbilhão. Novos rostos, cochichos nos corredores, risadinhas abafadas.
"É o filho do senador"
"Ganhou prêmio nacional de redação e matemática"
"Já chegou se assumindo. É gay mesmo, né?"
"E bonito. Se liga naquele olhar profundo"
Valentim ouvia. Fingindo desinteresse. Mas ouvia. E algo, lá no fundo, começava a incomodar mais do que deveria.
***
Na sexta-feira da primeira semana, durante o intervalo, aconteceu o inevitável. A turma do segundo ano estava ocupando parte da quadra, treinando para a Corrida do Revezamento Sustentável, a primeira prova da gincana. Valentim e os colegas do terceiro ano chegaram depois, dispostos a usar o mesmo espaço.
— Isso aqui é prioridade do terceirão, meu chapa. — Explicou Valentim, girando a bola de futsal na mão.
Noah, sentado no banco com os fones no pescoço e uma garrafinha de água nas mãos, ergueu os olhos.
— Chapa? Que década você vive? — Provocou Noah, num tom calmo e debochado. — Vai fazer aquecimento ou vai contar história de guerra?
Os colegas riram. Inclusive alguns do próprio terceiro ano. Valentim arregalou os olhos, surpreso com a audácia. Andou até Noah, parando de frente.
— Engraçado, fedelho. Tá achando que é quem?
Noah levantou devagar, nem um pouco intimidado.
— Só alguém mais jovem, mais rápido e — Ele olhou de cima a baixo — provavelmente mais inteligente. Quer que eu fale devagar ou você ainda acompanha?
A resposta saiu como um tapa. Valentim sentiu o sangue subir ao rosto.
— Escuta aqui, sabichão. Você pode até ter vencido umas olimpíadas aí no colégiozinho de onde veio, mas aqui é o Discere. Aqui quem manda é o terceiro ano. — Valentim se aproximou demais e esbarrou em Noah.
Noah cruzou os braços.
— Legal. Então lidera. Mas faz isso sem precisar me empurrar pra parecer maior.
Por um segundo, ficou tudo em silêncio. A quadra parecia respirar junto com eles. O embate não tinha gritos — tinha tensão crua, densa.
Berenice, colega de Valentim, após sentir a tensão, interveio:
— Gente, vamos dividir o espaço. O revezamento acontece só depois do Carnaval, dá pra todo mundo treinar.
— Isso aí. — disse Noah, voltando a se sentar. — Deixa o idoso descansar, que já tá ficando sem ar só de falar.
Valentim não respondeu. Só apertou a bola com mais força e virou de costas. Mas Karla, que assistia de longe, sabia reconhecer quando ele estava atingido de verdade.
A raiva era só a superfície. Por baixo dela... algo começava a incomodar mais do que deveria.
***
As salas de aula do Instituto Discere exalavam elegância e rigor acadêmico. Grandes janelas deixavam entrar a luz natural, refletindo nas mesas brancas impecavelmente organizadas. As estantes ao fundo exibiam livros, globos e pastas com etiquetas perfeitamente alinhadas — o cenário ideal para a formação da elite futura do país.
O ambiente, embora sofisticado, estava prestes a mergulhar no caos quando Valentim, com seu típico ar despretensioso e a camisa sempre com os dois primeiros botões abertos, levantou-se para apresentar seu trabalho sobre a História do Brasil.
Com uma postura confiante, ele iniciou:
— Em mil novecentos e vinte e dois, Dom Pedro gritou "Independência ou morte!", e o Brasil se separou de Portugal... — Começou, com voz firme, mas os seus papéis caíram no chão. Ele pegou e tentou arruamar a ordem.
Os olhares se cruzaram entre os colegas.
— Depois disso, o Brasil foi governado por Marechal Ronaldo, que construiu o Cristo Redentor em homenagem à Jesus Cristo... — Continuou, sem perceber a crescente perplexidade da turma. — E foi só em 1888 que a escravidão acabou com a assinatura da Carta Magna feita pela Princesa Isabel
A professora Auxiliadora, que até então ouvia com a cabeça levemente inclinada, tirou os óculos com calma e os colocou sobre a mesa.
— Nem ChatGPT você usou? — Disparou, arqueando uma sobrancelha, arrancando risos da sala.
Valentim deu um sorriso amarelo e abaixou os papéis, sentindo o rosto esquentar.
— Pega leve, professora. O Valentim está focado na Gincana. — Interveio Pedro, tentando amenizar a situação.
— Ele é nosso líder. — Completou Berenice, ainda segurando seu próprio trabalho, que havia garantido nota máxima.
Mas a professora não estava inclinada à piedade.
— Pois é, mas lembre-se, Sr. Almeida Cardoso, a escola não se resume só à Gincana. Tenho certeza que o seu pai tem expectativas.
Valentim engoliu seco, envergonhado.
— Desculpa, professora Auxiliadora. Na próxima eu melhoro.
Ela o analisou por um momento e, com frieza quase cômica, finalizou:
— Nota 3. Pela dicção.
Valentim voltou para o seu lugar cabisbaixo, sentindo os olhares — e os risos abafados — ainda ecoarem em sua mente. A vergonha queimava em sua pele, mas o que doía mais era aquele velho conhecido sentimento de fracasso. Se sentia incapaz, como se seu cérebro fosse uma rádio fora de sintonia. No ano anterior, ele havia passado raspando em quase todas as matérias. Recebera advertências de todos os professores. Havia dias em que até a coordenadora o chamava pelo nome completo com naturalidade — sinal de que as visitas à sala dela haviam se tornado frequentes demais.
Na época, alguns colegas tinham até demonstrado pena, como se estivessem vendo um animal ferido tentando atravessar a avenida. Só que agora, no último ano do ensino médio, a pressão não diminuíra — pelo contrário, ficava maior, mais pesada, mais cruel. Enquanto seus colegas falavam sobre intercâmbio, vestibular e futuras carreiras, Valentim só pensava em conseguir lembrar onde deixara o caderno de história ou por que havia esquecido de fazer um simples dever de casa.
Ele não fazia por mal. Tentava. Todos os dias tentava. Mas era como correr contra o vento. Ele tinha dificuldade em manter o foco por mais de alguns minutos; se perdia nas próprias anotações; cometia erros por puro descuido; esquecia tarefas diárias e vivia perdendo coisas — a carteira, o estojo, o uniforme de educação física. E quando se abria com os pais, eles apenas suspiravam com impaciência e diziam: "Você precisa se esforçar mais. Não estamos pagando essa escola à toa."
Naquela semana, após mais um trabalho entregue com erro — uma redação errada, sobre o livro errado — ele esperava apenas o retorno frio de mais um boletim vermelho. Porém, a nova professora de literatura, Leda Vasconcelos, surpreendeu.
Leda era diferente dos outros professores. Jovem, sensível, e com um olhar curioso que parecia enxergar além das notas. Despertava paixões e cochichos pelos corredores, mas, para Valentim, ela parecia mais como uma possibilidade de respiro.
Depois da aula, ela o chamou. A sala já estava quase vazia, exceto pelos poucos alunos que ainda guardavam suas coisas.
— Valentim, o que houve? Eu pedi uma redação sobre Iracema, e você me entregou uma sobre Senhora. Eu sei que são livros do José de Alencar, mas precisa seguir a grade curricular. — Disse ela, num tom mais de preocupação que de cobrança.
Valentim abaixou os olhos, engoliu em seco.
— Desculpa, professora. Eu tento me concentrar, mas às vezes é difícil. A senhora deve me achar um fracassado, não é? Um riquinho que passa por causa do dinheiro da família...
Ela caminhou até sua carteira e se apoiou nela com delicadeza, como quem se aproxima de alguém prestes a desabar.
— Não, Valentim. Eu não estou te julgando. Quero só te ajudar a encontrar uma solução. — Ela sorriu, com suavidade. — Vou te dar outra chance. Redação. Iracema. Amanhã. Tudo bem?
Valentim assentiu, surpreso com a gentileza.
— Sim, senhora. Obrigado, prof.
Enquanto ela saía da sala, ele permaneceu sentado por mais alguns segundos, sentindo uma coisa estranha. Não era vergonha. Nem desespero. Era... esperança? Talvez. Pela primeira vez em muito tempo, alguém parecia acreditar que ele era mais do que os erros que cometia.
***
A água era o refúgio perfeito. Lá embaixo, onde o som do mundo se abafava e apenas o ritmo dos próprios movimentos importava, Noah encontrava paz. Nadar sempre fora sua maneira de escapar — dos problemas, das memórias, das pessoas. Fazia parte da equipe de natação da escola, algo que surgira naturalmente, como se a piscina fosse o único lugar onde ele realmente pertencia. Além disso, os treinos lhe davam a chance de ajudar os amigos, os orientando para as competições que viriam.
Na escola, Noah não era de muitos amigos. Convivia bem com Karla e com Lucas Farias, um dos poucos rapazes assumidamente gay do instituto, filho de um CEO de uma multinacional. Lucas admirava a coragem de Noah em colocar a bandeira do arco-íris na farda, um gesto pequeno, mas que significava muito.
Naquele dia, o treino tinha sido mais intenso que o normal. Quando finalmente saiu da água, o cansaço pesava em seus músculos, mas a mente ainda estava agitada. Enxugou o corpo rapidamente, a toalha raspando contra a pele úmida, e se dirigiu ao vestiário, ansioso para se trocar e ir embora.
Foi então que o viu.
Valentim estava lá, tirando a camisa do uniforme de futsal, os músculos definidos sob a luz fraca do vestiário. Noah tentou desviar o olhar, mas falhou miseravelmente. Os ombros largos, o abdômen marcado, a linha que descia até o cós da calça — tudo parecia desenhado para prender sua atenção.
— Tira uma foto, fedelho, dura mais tempo. — A voz de Valentim ecoou, provocativa, enquanto ele pegava a toalha e se encaminhava para o chuveiro, um sorriso irônico nos lábios.
— Nos teus sonhos, idiota. — Noah sentiu o rosto queimar, mas não deixou por menos.
Se vestiu rápido, os dedos quase tremendo enquanto abotoava a camisa. Queria distância dali, de Valentim, daquela tensão que sempre surgia quando os dois estavam no mesmo espaço. Toda vez que o via, Noah lembrava de Gabriel.
Gabriel Portugal. Filho de um senador de direita, bonito, popular e cruel. No início, Noah chegou a acreditar que o interesse dele era genuíno. Até descobrir que Gabriel só queria informação — algo para usar contra ele. Quando descobriu sobre sua sexualidade de Noah, o rapaz iniciou um jogo de sedução, que funcionou perfeitamente.
Durante meses, Gabriel reuniu mensagens, fotos e declarações apaixonadas de Noah. Numa tarde, após os dois transarem, agiu de má-fé e o chantageou. Antes que pudesse ser exposto, Noah tomou a dianteira: publicou nas redes sociais, assumindo-se antes que alguém o fizesse por ele.
O rebuliço foi inevitável. O pai, Raphael, chegou a pedir que ele desmentisse, mas Gabriel tinha provas. Prints, mensagens, coisas que Noah nem lembrava de ter compartilhado. A escola virou um campo minado, e ele, o alvo.
— Isso nunca mais vai acontecer de novo. Nunca mais vou deixar outra pessoa me usar. — Prometeu Noah.
Ao sair do vestiário, Noah percebeu que estava chorando. Limpou as lágrimas com o punho, raivoso consigo mesmo. Prometera que nunca mais deixaria alguém usá-lo, mas desde então, tudo o que encontrara foram rapazes interessados apenas em vantagens, em segredos, em diversão fácil.
Ele queria mais. Precisava de mais. Alguém que o assumisse, que o quisesse de verdade.
E, com certeza, alguém como Valentim não seria a pessoa ideal.