Capitulo 43 - Funeral!
...
Daniel:
Eu fixava meu olhar no caixão. O rosto dele estava pálido, visivelmente mais magro do que quando o vi pela última vez, meses atrás. O corpo estava coberto por uma manta de flores brancas, escondendo-o da minha vista, mas minha mãe me contou que, ao reconhecê-lo, percebeu o quão debilitado ele estava — a magreza extrema e a palidez denunciavam que ele mal se alimentava há muito tempo. Eu sabia que ele estava abatido, pois quando o vi vivo pela última vez, não era mais o mesmo homem. Seu olhar era cansado, fraco, e a perda de peso já era evidente. Havia uma tristeza profunda, um leve sinal de arrependimento, mas jamais imaginei que ele tiraria a própria vida, pendurando-se com um lençol.
— Vamos dar uma saída daqui — disse Bernardo, apertando minha mão — Ficar aqui olhando não vai ajudar em nada.
Porém, eu não queria ir embora. Precisava ficar ali um pouco mais, para tentar compreender meus sentimentos. Desde que Bernardo me contou sobre a morte dele, no dia anterior, não conseguia definir o que sentia. Deveria lamentar a perda do meu pai ou me sentir aliviado por não precisar mais temer aquele homem horrível?
Durante aquela manhã, muitas pessoas se aproximaram para me abraçar, lamentando a minha perda e dizendo que eu precisava ser forte. Algumas tiveram a coragem de afirmar que Jorge Villela fora um homem íntegro e um oficial exemplar na Aeronáutica. Não conseguia entender tamanha reverência quando a única palavra que vinha à minha cabeça para descrevê-lo era covarde. Covarde por não ter enfrentado o pai que o agredia por ser homossexual. Covarde por odiar Théo, que tanto se parecia com ele na infância. Covarde por não aceitar o filho gay e repetir as agressões que sofreu. Covarde por manter uma vida dupla, escondendo seus relacionamentos com outros homens. Covarde por apontar uma arma para mim e ameaçar minha vida, para depois recuar. Covarde por tirar a própria vida quando finalmente começava a pagar pelos seus erros com Théo e comigo. Jorge Villela não foi um bom pai nem um oficial digno. Foi um covarde que teve medo de ser feliz.
Agora, o que sinto é raiva. Mais que raiva — ódio. Ele escolheu o caminho mais fácil, como sempre. Nunca enfrentou os desafios; sempre fugiu do sofrimento. E para quê? Viveu uma existência vazia, sem amor. Foi um homem cujos três filhos não têm sequer um pingo de orgulho dele. Na infância, eu o idolatrava por acreditar que ele era um pai amoroso, mas tudo desmoronou no dia em que ele espancou Théo. Foi quando percebi o monstro que ele era para meu irmão. A arma em minha cabeça só confirmou o quanto ele era desprezível. Não sentirei falta dele enquanto eu existir.
...
— Mãe, olha o que o papai comprou! — gritei, entrando em casa com a minha bicicleta nova. Queria aquele presente há muito tempo, mas meu pai só concordava em me dar uma se eu tirasse notas boas. Fiz mais do que isso: tirei notas entre nove e dez em todas as matérias e me esforcei muito nas aulas de natação, o que chamou a atenção da treinadora. Fui convidado para competir entre escolas do estado e, para minha surpresa, ganhei medalha de ouro. Meu pai ficou orgulhoso e me levou ao shopping, onde escolhemos aquela incrível bicicleta azul de doze marchas que eu tanto desejava.
— É linda, Daniel — disse minha mãe, vindo até mim e me dando um beijo na cabeça.
Logo atrás dela, meu irmãozinho, que na época não tinha mais que sete anos, entrou. Ele tinha cabelos loiros brilhantes e olhos azuis profundos, mas carregava uma tristeza estranha que eu nunca entendi — e para ser sincero, nem me importava muito.
— Papai, posso ganhar uma bicicleta também? — Théo perguntou com sua vozinha fina, mais parecida com a de uma menina do que a de um menino.
— Quando aprender a falar como um garoto — meu pai respondeu, ríspido.
Théo abaixou a cabeça e voltou para o corredor, provavelmente para brincar no quarto com seus bonecos ou desenhar. Naquele momento, eu não me importava; eu era apenas um garoto feliz de onze anos, orgulhoso de ter agradado meu pai. Lembro do momento em que ele veio até mim no pódio, me pegou no colo e sorriu. Ele estava feliz, e isso me deixava contente. Tudo que eu queria era o orgulho dele — e eu havia conseguido.
— Posso brincar lá fora com a bicicleta? — perguntei, olhando para meu presente.
— Só na praça aqui em frente! — disse minha mãe com carinho — Leve o Théo com você!
Fiz uma cara de quem não queria, pois, mesmo gostando do meu irmão, detestava ter que cuidar dele. Théo não dava trabalho, mas era uma criança diferente, e os outros meninos zombavam dele. Era um chorão.
— Deixe o garoto ir sozinho, Luciana — meu pai interveio — Se ele tiver que ficar de olho no Théo, não vai aproveitar nada.
— Leve o Théo — minha mãe ordenou, cruzando os braços.
Abaixei o descanso da bicicleta e obedeci. Não sei se foi lembrança daquele dia ou se minha mente tentou aliviar a culpa da minha mãe pela surra que deram em meu irmão, mas lembro dela dizendo isso antes de desaparecer no corredor.
— Às vezes você é muito duro com o Théo — ouvi minha mãe dizer.
Não houve resposta, apenas o som da porta da sala batendo. Quando voltei com meu irmão, que estava radiante por ir à praça comigo, meu pai já não estava na sala. Minha mãe estava sentada no sofá, com os braços cruzados, encarando a televisão desligada.
...
— Você está bem, Dany? — Théo perguntou, segurando meu braço e apoiando a cabeça no meu ombro enquanto olhávamos para o corpo do nosso pai no caixão.
— Não sei ainda — respondi sinceramente — Sinto raiva, mas não sei se é só isso. E você, como está se sentindo?
— Você sabe como eu me sinto — disse ele, com o olhar fixo no homem que destruiu sua infância e o fez se sentir um lixo por tantos anos.
Ele tinha razão. Eu sabia o que ele sentia sem precisar perguntar. Não precisava da resposta, mas precisava ouvir.
— Quero ouvir de sua boca — insisti, frio.
— Não precisa ouvir isso, Daniel — Bernardo falou, preocupado — Não agora.
— Preciso — respondi, sem tirar os olhos do corpo — Preciso que alguém aqui diga a verdade sobre quem ele era.
Senti Théo soltar meu braço e se afastar. Por um momento, hesitou se devia atender ao meu pedido. Olhei para meu irmão mais novo, vestido com um terno preto, cabelo loiro arrepiado no topo e raspado nas laterais. Seu olhar não mostrava dor nem tristeza. Era um vazio, de quem não sente nada. Não era o olhar que eu esperava dele.
— Não sinto nada — disse ele, surpreendendo-me — Achei que ficaria feliz, como você, mas, na verdade, não sinto nada. Nem tristeza, nem raiva, nem alegria. É como olhar para o corpo de um estranho.
— Não sente alguma vitória? — perguntei.
— Vitória sobre o quê? — Théo me encarou, perplexo — Ele foi um canalha comigo, mas a vida o puniu. Nunca foi feliz, perdeu a família e morreu sozinho na prisão. Não sinto pena, mas também não celebro a morte dele.
Ele estava certo. Meu pai sempre nos tratou de modo diferente, e isso destruiu a confiança e a autoestima do meu irmão. Nem consigo imaginar o que ele sentiu em todos esses anos de rejeição paterna.
...
— Por que não deixou o Théo vir? — perguntei a meu pai, durante um jantar no restaurante perto do quartel da Aeronáutica. Ele me levou para conhecer o lugar onde trabalhava desde os dezoito anos, e eu adorava ver os aviões, as armas, os soldados. Todos me cumprimentavam e o respeitavam, pois ele era Brigadeiro, e sempre recebia ordens obedecidas com um firme “Sim, senhor!”.
Ele cruzou as mãos sobre a mesa, num gesto sério que eu conhecia bem — era o mesmo que usava para nos repreender.
— Seu irmão não merece — disse, firme — É um garoto malvado, por isso está de castigo.
Naquela época, Théo vivia de castigo, e eu não entendia o motivo. Perguntei à minha mãe várias vezes, e ela sempre franzia o cenho, dizendo que meu pai sabia o que fazia. Ela desaprovava o que ele fazia, mas defendia o marido. Era como se não soubesse de que lado estar. Apoiava o filho que sofria ou o homem violento?
Eu perguntava a Théo o motivo do castigo, mas ele dizia que não sabia. Sempre chorava, mas eu estava contaminado pela influência do meu pai e achava que ele exagerava. Nunca falei isso, mas pensava assim.
Meu pai dizia que Théo precisava ser disciplinado para aprender a se comportar, e eu acreditava que ele estava certo. Afinal, os pais sabem o que é melhor, não é?
Lembro de Fernanda visitando o quarto de Théo para consolá-lo diversas vezes, e eu achava que ela apoiava o mau comportamento dele. Não sabia bem o que era esse “mau comportamento”, mas suspeitava que fosse o jeito afeminado de Théo. Sempre que ele deixava isso transparecer, meu pai gritava para ele agir como um menino. De certa forma, aquelas palavras me atingiam também, pois eu estava entrando na adolescência e começando a sentir atração por outras pessoas — especificamente, por meninos da escola, do curso de inglês e da rua. Mas o pior eram as aulas de natação, quando via os outros garotos de sunga. Não foram poucas as vezes que me peguei olhando para o volume em suas sungas e lembrando do meu pai berrando para Théo: “Deixa de ser bixinha! Aja como um garoto!”. Aquilo me deixava mal.
Acho que foi nessa época que comecei a duvidar se meu irmão era mau ou não. Pena que foi tarde demais, porque quatro anos depois ele levou uma surra que o marcou para sempre.
— Por que ele é mau? — perguntei.
— Porque ele não é como você — respondeu meu pai, encerrando o assunto.
Se ele soubesse que eu e Théo éramos mais parecidos do que pensava, tenho certeza que eu seria o alvo da surra, não meu irmão. Meu pai teria tirado o cinto e me castigado diversas vezes, gritando o quanto odiava o que eu era, dizendo que não teria filho viado. E ninguém estaria ali para me defender. Naquela época, eu não conhecia esse lado dele, mas sabia que precisava mudar para ser aceito.
...
— Sinto muito pela sua perda — Léo disse, ao chegar ao velório — Como você está?
Já estava cansado da pergunta.
— Com raiva — respondi, me afastando de Bernardo e Théo — Vai dizer que ele era uma boa pessoa e morreu cedo demais? Ou vai fazer alguma piada?
Não sei de onde saiu aquilo, e não me importava. Precisava extravasar, e acabei descontando em Leonardo.
Ele me abraçou forte. Fui rude com ele, mas ele me acolheu do mesmo jeito que Marcelo e Bernardo fizeram ao me contar da morte do meu pai.
...
Saí do vestiário e encontrei Bernardo, Théo e Samuel na arquibancada. Todos me olhavam com seriedade, e eu sabia que algo estava errado. Fiz o aquecimento e o treino como sempre, mas a cabeça não parava de pensar neles e no que teria acontecido. Bernardo não sorria nem acenava como de costume, e Théo parecia nem me enxergar, perdido em pensamentos. Samuel estava normal, mas havia algo estranho no olhar dele.
No final do treino, o treinador anunciou que eu representaria a escola na competição estadual, e fiquei feliz. Bernardo sempre dizia que eu conseguiria, mas tinha dúvidas, já que outros garotos estavam no time desde o primeiro ano, e eu tinha acabado de entrar. Tomei banho, mas a imagem deles me observando me perturbava. O que teria deixado eles assim? Seria grave?
Vesti a roupa e fui até eles, que ainda me esperavam na arquibancada, agora vazia, exceto por um garoto gótico, amigo de Bernardo, que se despediu ao me ver. Meu coração acelerava a cada passo.
— Falem logo — disse, parando diante deles.
Bernardo se levantou e segurou minha mão.
— Melhor você sentar — murmurou, com a voz rouca.
Olhei nos olhos verdes de Bernardo e soube que era sério. Olhei para meu irmão e meu melhor amigo, que me olhavam com uma mistura de pena, preocupação e compaixão. Sentei-me entre Bernardo e Théo.
— Vocês estão me assustando — disse, com o coração disparado.
— Dany... — Bernardo hesitou, engolindo em seco — Seu pai faleceu esta manhã.
Foi como levar um soco no estômago, me deixando sem ar e com tudo girando ao redor. Meu pai estava morto. Morto!
— Como foi? — perguntei, tentando focar.
— Ele se enforcou com um lençol na cela — Samuel falou suavemente — Sinto muito, Daniel. Sei que vocês eram próximos.
Éramos próximos até o dia em que ele bateu no meu irmão. Depois disso, vi o monstro que ele era, mas ainda quis acreditar que podia mudar e voltar a ser aquele pai que amava. Então ele colocou uma arma na minha cabeça e disse que me mataria.
— Não éramos próximos — disse, cerrando os punhos — Já não éramos mais.
Samuel se levantou, ajoelhou diante de mim e me abraçou apertado, afagando minhas costas com carinho.
— Ninguém vai te julgar se você chorar — disse com gentileza — Ele podia ser o que fosse, mas ainda assim era seu pai.
...
— Eu sei que você está com raiva — disse Léo, com um tom firme e solidário. — Eu também estaria. Mas quero que saiba que não vou te deixar sozinho, até o fim.
— Valeu… — murmurei, e, pela primeira vez desde que soube da morte do meu pai, as lágrimas finalmente escaparam.
Foi então que Samuel se aproximou. Ele tinha ficado ao meu lado o tempo todo, desde o momento em que a notícia chegou, só se afastando agora para ir ao banheiro. Parou ao lado de Théo, que segurou sua mão e me olhou com compreensão. Samuel tinha razão quando disse que ninguém me julgaria por chorar. Meu pai podia ter sido terrível em muitos momentos, mas não dava para negar que, pelo menos comigo, ele tentou ser melhor. Havia lembranças boas demais: os fins de semana na nossa casa de praia em Búzios, as vezes em que ele aparecia nas competições de natação para me incentivar, e as comemorações só nossas sempre que eu ganhava. Recordo do verão em que ele me deu minha primeira bicicleta; eu o abracei no meio da loja e disse que o amava. Foi uma das raras vezes em que ele me deu um beijo — simples, na testa — mas que me fez sentir que, de alguma forma, ele me amava.
— Não consigo entender como ele pôde fazer isso… — soluçei, me afundando nos braços de Léo.
— Não pensa nisso agora, irmão — disse Leonardo, acariciando minhas costas. — Seu pai foi infeliz a vida inteira… talvez agora tenha finalmente descansado.
Me afastei dele, sentindo o calor da raiva subir. Mais uma vez alguém pintava aquele homem como vítima.
— Sofreu porque quis! — gritei, sem me importar com quem ouvisse. — Não teve coragem de enfrentar o próprio pai e ser quem realmente era. Foi um covarde!
— Respeite seu pai, garoto! — meu avô se aproximou, o rosto marcado pelas lágrimas, mas os olhos queimando de fúria.
— Respeitar ele? — soltei uma risada histérica, o som ecoando na capela. — Olha quem vem falar de respeito! O homem que nunca lhe deu um mínimo de dignidade enquanto estava vivo! Você destruiu a confiança dele e ajudou a criar o monstro que ele se tornou!
— Eu o corrigi! — meu avô rebateu, a voz ainda mais alta que a minha. — Coisa que ele deveria ter feito com vocês dois!
— Corrigiu? — Théo se intrometeu, a voz carregada de desprezo. — O senhor sabia que o seu “filho corrigido” tinha uma conta secreta no Facebook, onde marcava encontros com homens e transava com eles? Que no computador dele tem milhares de fotos e vídeos de sexo com homens, inclusive dele mesmo?
— Mentira! — meu avô explodiu, ofendido. — Ele abandonou essa vida de perversão e pecado!
Eu e Théo caímos na gargalhada, como dois loucos que compartilham a mesma piada amarga.
— Vamos sair daqui, Daniel — Bernardo disse, segurando meu braço. — Todo mundo está olhando.
Olhei ao redor. Ele tinha razão: parentes, amigos, colegas de trabalho de meu pai, todos esperando o próximo escândalo do velório de Jorge Vilella. Mas não eram eles que me incomodavam, e sim o olhar distante da minha mãe, sentada no fundo da capela desde que chegara. Não falava, não chorava, apenas observava.
— Querem saber de uma coisa? — falei alto, para todos ouvirem. — Vocês são uns hipócritas! Vêm aqui, dizem que sentem muito, que ele era um ótimo pai e um oficial exemplar… mas a verdade é que Jorge Vilella era um lixo de ser humano! Um covarde que passou a vida com medo de assumir quem era. Um pai medíocre que espancava o próprio filho porque via nele o reflexo de si mesmo. Esse homem que vocês choram um dia apontou uma arma para a minha cabeça e disse que me mataria, e depois faria o mesmo com Théo! Pois eu espero que agora ele esteja ardendo no inferno!
Meu avô perdeu o controle. O soco veio seco e forte, me derrubando no chão. O gosto de sangue encheu minha boca. Passei a mão nos lábios e vi o fio vermelho escorrer. Sorri para ele, que tremia de raiva e dor.
— Como ousa falar dele assim?! — gritou. — Ele era seu pai!
Minha avó surgiu, segurando o braço dele.
— Álvaro, chega… — disse, a voz embargada.
— Deixa ele fazer o que sabe de melhor, vó — retruquei, ainda sorrindo. — Me espancar, assim como fez com ele! — apontei para o caixão. — Depois, a senhora encobre, como sempre fez, escondendo da família quem ele realmente era.
— Você está falando sem sentido, Daniel — ela respondeu, ofendida. — Acho que precisa descansar.
— Eu nunca falo coisa com coisa, não é, vó? — me levantei devagar. — Acha que esqueci quando me chamou de mentiroso no seu aniversário? Ou daquele discurso dizendo que meu pai era um garoto doce e carinhoso?
— Não esqueci — ela disse, fria. — E continuo sem acreditar nas suas acusações. Eu conhecia meu filho melhor que qualquer um.
— Talvez seja hora de repensar se a senhora realmente conhece as pessoas — falei, sorrindo de forma amarga. — Ou talvez conheça, mas finja que os monstros dentro delas nunca saem do armário. Pois deixa eu dizer: eles saem… e devoram tudo ao redor. O Jorge que você conheceu morreu nas mãos do monstro que seu marido criou. E, depois disso, só restou o monstro.
— Você está louco, Daniel — ela disse, com um olhar carregado de ódio. — Se odiava tanto seu pai, deveria se retirar.
— Vamos, Dany — Bernardo me puxou.
Olhei uma última vez ao redor. Fernanda ainda estava abraçada a Guilherme, o olhar vazio. Ao perceber que eu a observava, levantou os olhos para mim com uma mistura de surpresa e preocupação. Ela sabia quem nosso pai realmente era, mas nunca deixou de amá-lo. Formei um silencioso “me desculpa” com os lábios. Ela assentiu.
— Vou te levar pra casa — Bernardo disse, pegando o celular e chamando um carro. — Você precisa descansar, não pregou o olho a noite inteira.
— Eu falei demais, né? — perguntei.
— Falou… mas eu entendo. — Ele confirmou o pedido do carro. — Você está com a cabeça cheia.
— Disse tanta besteira… — passei a mão pelos meus cabelos loiros, já todos bagunçados. — Tento me convencer de que não vou sentir falta dele, mas lembro de quando eu era criança e achava que ele era o melhor pai do mundo. Tá tudo confuso! — a dor me fez desabar novamente, sentando no meio-fio com as mãos na cabeça. — Como ele pôde fazer isso, Bernardo?
Ele se sentou ao meu lado e passou o braço pelos meus ombros. Me aninhei nele, sentindo um mínimo de conforto, embora o buraco no meu peito continuasse sangrando por dentro.
— Não sei o motivo… mas chorar e sentir falta dele não é errado — disse, acariciando meu braço. — Ele tinha muitos defeitos, mas era seu pai. Vocês viveram momentos bons. É natural que seu coração esteja confuso.
— Muito confuso… — admiti. — Não sei o que é certo sentir.
— Acho que a dor é inevitável — ele respondeu. — E como Samuel disse: ninguém vai te julgar.
— Mas… e Théo? — perguntei. — Ao chorar por ele, não estou traindo meu irmão?
Bernardo beijou minha testa, exatamente como meu pai fez no dia da bicicleta. E isso fez o buraco doer ainda mais.
— Você não está traindo ninguém, Dany. Você e seu irmão sentem de formas diferentes. Ele vai entender. Se permita sentir.
Pouco depois, o carro chegou. Bernardo me ajudou a entrar e seguimos para o apartamento dele. Ao chegar, demos de cara com Gabriel, que tinha acabado de chegar da escola para ir ao velório. Ele me abraçou, sem dizer nada. Apenas silêncio. Depois, comentou que iria ver como Théo estava. Nós apenas assentimos.
Bernardo me levou para o andar de cima e sugeriu que eu tomasse um banho. Entrei no banheiro e deixei a água quente correr, sentindo o calor anestesiar meu corpo e trazer uma sonolência necessária — afinal, eu não tinha fechado os olhos a noite toda. Depois, fui até o quarto dele, peguei uma roupa minha guardada no armário e me joguei na cama.
— Quer que eu peça algo para você comer? — ele perguntou, com a voz ainda preocupada. — Posso pedir para a Miriam preparar um lanche.
— Não precisa, amor — respondi, puxando o edredom para me cobrir, já que o ar-condicionado deixava o ambiente frio demais. — Só quero descansar um pouco.
— Tudo bem — ele disse, fazendo uma pausa antes de completar. — Vou tomar um banho rápido, já volto.
Assenti, e ele apagou a luz, saindo e me deixando sozinho. Nem sei quando exatamente dormi, só sei que foi rápido, pois não ouvi ninguém voltar.
Caí no sono às cinco da tarde e acordei por volta das cinco da manhã, encarando o teto e perdido em pensamentos confusos. Bernardo dormia abraçado a mim, sereno como um anjo protetor — meu anjo que me tirou daquele caos antes que eu me destruísse mais. Passei a mão nos lábios machucados, notando o leve inchaço do soco do meu avô. Não foi só por eu ter desrespeitado meu pai morto, mas por ele não suportar a verdade que eu falei, a verdade que o feria profundamente desde que descobriu que eu era gay, naquela festa do aniversário da minha avó.
“Outro? O que tem na água da casa de vocês?”, lembro bem do desprezo na voz e do jeito como ele torceu o nariz para mim. Aquele soco não passou de um aviso, um ensaio para o que ele realmente queria fazer: me quebrar. E a reação da minha avó? Um discurso cheio de falsa moral, claramente contra mim, como se eu fosse o monstro por acusar meu pai de violência e ameaça. Ela me odiava por ter colocado seu filhinho atrás das grades e, agora, provavelmente, me culpava pela morte dele.
— Mas eu não sou o culpado, droga! — as palavras escaparam antes que eu pudesse me conter, acordando Bernardo.
— O que foi, amor? — perguntou ele, preocupado.
— Desculpa ter te acordado — falei, virando para ele e dando um beijo leve. — Só pensei alto.
— Entendi — ele disse, afastando uma mecha do meu rosto com carinho. — De que culpa você fala?
Olhei nos olhos verdes dele e respirei fundo.
— Pensei que minha avó me culpa pela morte dele — murmurei, tão baixo que qualquer som poderia abafar minhas palavras. — E acabei dizendo que não tenho culpa.
— E realmente não tem — afirmou, com firmeza. — Nada do que aconteceu foi sua culpa. Tudo foi resultado das escolhas que ele fez. Não carregue esse peso.
— Não carrego — confirmei, com sinceridade. — Só queria que tudo isso terminasse logo.
— Vai terminar hoje — garantiu ele.
Mas Bernardo estava enganado. O enterro foi às dez da manhã, com uma breve oração e uma homenagem militar: cantaram o hino nacional e cobriram o caixão do meu pai com a bandeira do Brasil. Enquanto baixavam o caixão no túmulo de mármore, os olhares se voltaram para mim — olhares de julgamento, escárnio e até surpresa por me ver ali. A maior surpresa foi ver Théo derramar algumas lágrimas — não o choro desesperado de minha avó ou de Fernanda, mas uma tristeza silenciosa, genuína.
Quando o túmulo foi fechado, começaram os abraços e as despedidas. Exceto pelos meus amigos, meus irmãos, minha mãe e meu cunhado, ninguém se aproximou de mim. Aos poucos, a capela esvaziou, deixando apenas nós ali, diante da última morada do meu pai. Bernardo me prometera que aquilo acabaria naquele dia, mas eu sabia que nunca terminaria. Um buraco sangrava dentro do meu peito, latente e dolorido.
Saí dali carregando um coração dilacerado, marcado pela tristeza, pelo ódio e pela saudade. Meu pai foi um homem horrendo, um pai ainda pior, mas eu sabia que em algum momento, por mais breve que fosse, ele me amou.
— Adeus, pai — sussurrei ao entrar no carro da minha mãe.
...
Continua...