Ele não respondeu, mas seus olhos, cheios de dor e amor, diziam tudo. Notei que ele olhou para meu pescoço e o fato de não ver o colar ali pareceu aliviar, ainda que pouco, o peso que carregava. Pena que o alívio não era completo porque o mar existente em meu coração continuava revolto e uma tempestade ainda maior estava por começar.
[CONTINUANDO]
Seis meses se escoaram igual areia de ampulheta desde aquela noite à beira do rio, onde, com o coração em brasas, deixei Paulinho mergulhado em suas dúvidas, igualzinho o doce de abóbora que derrubei e afundou nas águas escuras do rio que corta Passa-Vinte. O tempo, esse tirano que não se curva aos tormentos da alma, passou como o vento que varre os morros, célere, mas deixando um rastro de poeira que se agarra à pele e ao coração. Eu, em minha fraqueza de moça do interior, coração dividido entre a lealdade a um amor antigo e a chama traiçoeira de uma paixão acesa por Leonardo, tentei, com esforço vão, me entender com Paulinho, embora cada passo em sua direção fosse um pisar em chão movediço, temendo que a verdade me engolisse.
Não foi fácil, confesso. Nossos encontros, após aquela noite fatídica, eram tomados por silêncios que gritavam mais alto que quaisquer palavras, silêncios que carregavam o peso de segredos não confessados e promessas frágeis como a teia de aranha do teto do meu quarto. O amor, esse mistério que ora nos eleva, ora nos despedaça, tem um jeito cruel de nos fazer crer que podemos remendar o que já está roto. Aos poucos, voltamos a prosear, a caminhar pela praça até a noite se fazer dona, onde nossas mãos se tocavam timidamente e os risos, antes murchos, ensaiaram ecoar como nos dias de outrora, quando o mundo era apenas um vestido de chita e um olhar apaixonado. Mas, ai de mim, era tudo fachada, um teatro que eu montava para enganar a ele, a mim mesma e, quem sabe, ao próprio destino.
Queria eu crer que podia apagar o passado. A cena do tanque, da varanda, do meu quarto, aqueles instantes em que Leonardo colou mais do que sua boca em mim, impingiu à minha pele palavras que prometiam mundos, roubou-me a razão que eu imaginava ter de sobra. Eu tentava empurrá-lo para o canto mais escuro da minh’alma, mas ele insistia em voltar, como sombra que a luz da lua não dissipa. Paulinho, com seus olhos que outrora me fitavam com devoção, agora pareciam carregar uma desconfiança permanente de mim. O colar com o pingente de coração, presente de Leonardo, que eu escondia sob o vestido, guardei para não criar maiores problemas entre a gente.
As prosas na praça, os doces compartilhados, os olhares trocados na missa dominical, tudo, antes tão leve, agora parecia um esforço hercúleo para manter Paulinho por perto de mim, não por falta de amor, mas por medo de enfrentar a verdade que crescia em mim: eu já não era mais a Emilinha de outrora, a moça direita que mamãe criara. O colar de Leonardo, com sua foto minúscula dentro do coração dourado, era um símbolo do que eu me tornara: uma mulher dividida, seduzida por promessas de um mundo além dos morros de Passa-Vinte, um mundo que Leonardo, com seu jipe brilhante empoeirado e suas histórias de Beagá, me fazia entrever.
Foi numa tarde ardente de janeiro, com o sol de Passa-Vinte derretendo até os pensamentos, que tomei a decisão que mudaria meu destino. Não era mais possível viver entre dois amores, entre a segurança de Paulinho e a tentação de Leonardo. Este último, que me enviava cartas quase toda a semana, prometia-me uma vida nova, longe da calma preguiçosa de Passa-Vinte, onde eu poderia ser mais que a moça de vestido de chita. Mas para isso, eu precisava romper com o passado e isso significava romper com Paulinho, uma coragem que eu não tinha. Então, como a bela covarde que eu já era decidi usar o caminho dos errados: mentir.
Fui até mamãe, como quem busca absolvição antes de cometer o pecado. Ela estava na cozinha, trançando a massa de uma rosca que seria recheada com goiabada, o cheiro adocicado invadindo o ar. Aproximei-me, hesitante, coçando as mãos como quem teme o que vai dizer:
- Mamãe, posso falar um tiquinho com a senhora?
Ela ergueu os olhos, sem parar o movimento das mãos, e seu olhar, que parecia enxergar além da carne, fixou-se em mim:
- Desembucha, Emilinha. Tá com carinha de quem tá com o coração em nó.
Suspirei, sentando-me num banquinho ao lado da mesa, as palavras saindo com dificuldade, como se temesse que, ao dizê-las, tornassem-se reais:
- É o Paulinho, mamãe. Eu... é... A gente terminou...
Mamãe parou de sovar a massa, limpou as mãos no avental e me encarou com uma sobrancelha erguida, os lábios apertados, tensos, que misturava surpresa e desconfiança. Após um breve tempo em silêncio, falou:
- Terminou!? Mas... que novidade é essa, menina? Uai, e quando foi que isso aconteceu? Ocês tava tão bem. Tava vendo ocês juntos quase sempre de novo, proseando na praça, passeando, rindo que nem dois bobos...
Corei, sentindo o rosto queimar, e baixei os olhos, incapaz de sustentar o olhar dela:
- É, mamãe, mas as coisas não deram certo... A gente brigou. Ele tá muito ciumento. Tá vendo coisa onde não tem. Eu não aguento mais.
- Mas... Jesus Maria José!... Num tô creditano!
- Pois é. Eu acho que tô precisando de um tempo, sabe? Tava pensando em ir pra Beagá, ficar um pouco com a tia Valdete.
Mamãe estreitou os olhos na minha direção e ficou em silêncio, como quem pesa a alma de uma filha. Depois, com um suspiro, voltou à massa, mas sua voz veio firme, carregada de um tom que misturava carinho e advertência:
- Tá bão, filha. Se é isso que cê acha que precisa, vai. Mas, ó, cuidado com essas ideia de cidade grande. Beagá é cheia de tentação e ocê é moça direita. Não deixa o Léo ou qualquer outro vir com essas conversa de homem da capital, te tirar do rumo. E fala com teu pai antes, porque acho que ele não vai gostar nadinha de saber que cê tá indo assim, sem mais nem menos.
Papai odiou a novidade e negou minha viagem, uma, duas, três vezes, e acho que só deixou depois que mamãe entrou no páreo e disse que eu precisava encontrar o meu caminho, e que talvez, ele estivesse fora de Passa-Vinte:
- Mas e Paulinho!? Ainda hoje o vi e ele me parecia tão bem...
Senti um aperto no peito ao ouvir o nome daquele que sempre demonstrou me amar sem qualquer objeção e com uma paciência de Jó. Mas a maldita mentira, uma vez plantada, parece dar frutos rápido, e com uma doçura falsa, igual a melaço de cana: é doce, mas não é mel.
Sorri, agradeci, mas ainda sentindo um peso descomunal no peito, a culpa beliscando minh’alma. A mentira que contei a mamãe era um peso que eu carregava com dificuldade, mas parecia-me necessário para justificar minha partida, afinal, eu não podia dizer a verdade, dizer que Leonardo, com suas promessas e seu jeito, fazia meu coração tremer, além de ter me chamado para ir ficar com ele em Belo Horizonte, nem que eu, em minha fraqueza, decidira ir ao seu encontro.
Naquela mesma noite, fui até o bar do Seu Zé Formoso e liguei na casa de tia Valdete, pedindo para ficar em sua casa por uns tempos. Menti também a ela, dizendo que precisava de um tempo para “pensar na vida” após o término com Paulinho. A resposta veio rápida, com um convite caloroso e a promessa de um quarto só para mim. Leonardo, que estava a seu lado, assumiu a ligação e se dispôs a vir me buscar no dia seguinte.
Honrou a palavra, pois, já na manhãzinha do dia seguinte, apareceu em Passa-Vinte com o seu jipe brilhante e empoeirado, parando em frente à nossa casa como um prenúncio de mudança. Ele desceu, com aquele sorriso que misturava charme e perigo, e me encontrou na varanda, onde tantas vezes o destino me traíra:
- Então, Emilinha, tá mesmo decidida? - Perguntou, com a voz baixa, como se temesse que os morros ouvissem.
- Tô! - Respondi, com a voz tremendo, mas tentando soar firme: - Preciso sair daqui, Léo. Eu... Eu preciso ver o que tem lá fora, senão vou minguar e secar aqui em Passa-Vinte.
Ele se aproximou, o hálito adocicado de café ainda presente, e tocou meu ombro com uma delicadeza que escondia outras intenções:
- Tu vai ver, Beagá é outro mundo. Lá tu vai ser quem tu quiser, não só a moça de Passa-Vinte. E eu... eu vou tá lá pra te ajudar.
Corei, sentindo todo o peso do colar e pingente que agora eu voltara a usar, ainda escondido sob o vestido, e desviei o olhar:
- Leonardo, eu... estou indo para conhecer, e vou ficar na casa da tia Valdete. Mas é só... Não... Não pensa que a gente...
Ele riu, um riso seco que ecoava como um trovão:
- Penso nada, prima! Tô é muito feliz em poder te levar. Ah, e conhecendo minha mãe, ela já deve estar arrumando um quarto no capricho para você.
Foi um dia e uma noite tensa, pois Paulinho poderia aparecer a qualquer momento, embora eu soubesse que ele dificilmente viria, pois estava ajudando Seu Ciro numa empreitada que terminaria tarde. Arrumei uma mala nessa noite, olhando ao longe as luzes de Passa-Vinte que pareciam brilhar ainda mais, como se quisessem me chamar a atenção para algo.
Na manhã seguinte, com minha mala e um vestido de chita azul, o mesmo que Paulinho dizia combinar com meus olhos, o colar e uma decisão titubeante, que, por algum motivo que eu mesma não entendia, me despedi. Mamãe e papai, embora desconfiados, me deram sua bênção, com lágrimas nos olhos:
- Que Deus te proteja, filha. - Disse mamãe, abraçando-me com força. - E, ó, não esquece quem cê é. Beagá pode ser radiante, mas é teu coração que deve brilhar.
- Sua bênção, mamãe, papai... - Murmurei, com os olhos marejados.
Papai, sempre tão calado, apenas me puxou para um abraço, beijando minha testa:
- Cê é minha menina, e sempre vai ser, Emilinha. Volta logo.
Virou-se então para Leonardo e disse, seco:
- Cuida da minha filha, moço. O bem que fizer para ela, fará para mim; mas se deixar algum mal acontecer com ela, melhor nunca mais aparecer por essas bandas.
Leonardo apertou sua mão, comprometendo-se a cuidar “muito bem” de mim. Subimos no jipe e partimos. Acenei para eles enquanto consegui vê-los. Passamos em frente à casa de Paulinho que, àquela hora, estava fechada, ele certamente na lida. Olhei uma última vez para os morros e para o céu de Passa-Vinte, que parecia mais nublado que de costume. A poeira subia atrás de nós, como se tentasse apagar o rastro da minha partida.
A viagem até que não demorou muito depois que entramos numa rodovia asfaltada. Belo Horizonte era um mundo que eu só conhecia por ouvir dizer. As ruas largas, os prédios altos, o barulho constante de carros e vozes, tudo era tão diferente da calma preguiçosa de Passa-Vinte que, a princípio, senti-me como um passarinho solto numa tempestade em alto mar. Tia Valdete me recebeu com um abraço caloroso, seu apartamento pequeno, mas arrumado, cheirando a café fresco e lavanda. Ela, com seu jeito de mulher da cidade, embora tivesse nascido na roça, logo percebeu que minha vinda não era apenas por um “tempo para pensar”:
- Emilinha, Emilinha... Tu está com uma cara que... Sei não, hein!? - Disse, servindo-me um copo de suco de laranja: - O que tá acontecendo? Esse tal término com o seu namorado... Foi só isso mesmo que te fez decidir vir para cá?
Suspirei, olhando para o chão, o peso da mentira arqueando o meu pescoço sob o vestido como uma corrente:
- É verdade, tia. Eu e o Paulinho... a gente brigou feio. Ele tá muito ciumento, não confia mais em mim. Achei melhor a gente terminar e eu vir para cá, conhecer melhor a cidade grande. Sei lá... Talvez estudar, trabalhar... Não sei ainda...
Ela me olhou com aqueles olhos que pareciam ler a alma, os mesmos de mamãe, mas não insistiu:
- Então está bem, menina. Mas cuidado com o que cê escolhe. Cidade grande tem muita opção de muitas coisas, mas é também lugar de se perder, se não tiver juízo.
- Que é isso, mãe!? Vai assustar a Emilinha. - Resmungou Léo, sentando ao meu lado: - Daqui a pouco, vou ter que leva-la de volta se a senhora continuar pintando esse monstro para ela.
Os dois primeiros dias em Beagá passaram como um flash, com Léo me levando para vários passeios durante o dia, levando-me para passear pelas praças da cidade, mostrando-me um mundo que, embora fascinante, me fazia sentir ainda mais distante de quem eu era. Mas era a noite que eu me impressionava mais, as luzes, a vida noturna, os bares, era tudo tão diferente, tão vivo, tão surpreendente. Seus olhares, suas palavras, seu toque sutil, tudo reacendia a culpa que eu tentava enterrar.
Na segunda noite, enquanto tomávamos um sorvete na Praça da Liberdade, ele segurou minha mão, seus olhos brilhando sob a luz dos postes:
- Emilinha, cê tá vendo? Esse é o mundo que eu te prometi. Aqui cê pode ser quem quiser. Não precisa ser a moça de Passa-Vinte, presa a um namorico que não te leva a lugar nenhum.
- Não fala assim do Paulinho, Léo. - Retruquei, puxando a mão: - Ele é um homem bom, Leonardo. Só não teve chance na vida. Eu é que sou uma péssima pessoa por querer mais e não trazê-lo junto comigo.
Ele sorriu, aquele sorriso que misturava charme e perigo:
- Relaxa, Emilinha. Com o tempo, tu vai esquecer dele e poderá me deixar entrar em seu coração.
Na tarde seguinte, enquanto eu arrumava a mesa do café da manhã, tia Valdete entrou e se sentou à mesa, chamando-me a fazer o mesmo à sua frente. Tinha uma expressão nada amistosa:
- Emilinha, acabei de receber uma ligação da tua mãe. Ela me contou que o Paulinho foi na tua casa, com o pai dele, pra te pedir em noivado. E ele disse que vocês não tinham terminado coisa nenhuma! O que está acontecendo? Só lá é que ele descobriu que tu veio pra cá com o Léo. Que história é essa, menina?
Corei, sentindo o chão sumir sob meus pés. Pior é que o Léo estava dormindo ainda e não poderia me ajudar. Nervosa, comecei a apertar a saia do meu vestido, sem saber o que dizer:
- Fala, menina, o que está acontecendo?
- Eu... Eu não sabia, tia. Eu juro que não sabia que ele ia fazer isso.
- Não sabia!? - Retrucou ela, com a voz firme: - Cê mentiu pra tua mãe, pro teu pai, pra mim! Por que isso!? E agora tá aqui... aqui! Imagina o coração desse rapaz, Emilinha! Por que... você... fez isso?
- Não é assim, tia! - Tentei me defender, com lágrimas nos olhos: - Eu tava confusa, eu... eu não sabia o que fazer. O Paulinho tava muito ciumento mesmo e o Léo, ele... ele me fez acreditar que eu podia ter mais, que eu podia ser mais, e eu sei que posso.
Tia Valdete suspirou, olhando para a porta que dava para os quartos:
- Emilinha... Ai, ai, ai, Emilinha...Toma tenência, menina! O coração da gente é um bicho traiçoeiro. Às vezes, ele quer o que brilha, mas nem tudo que brilha é ouro. Tu precisa decidir quem tu é, e o que tu quer, porque, se continuar assim, vai conseguir é nada e pior, vai perder a ti mesma.
- Desculpa, tia.
- Está tudo bem. Por mim, sem problemas. - Disse ela, acariciando a minha mão: - Mas é melhor você ir se preparando, porque seus pais estão vindo para cá para conversar com você.
Minha pressão deve ter caído, porque vi tudo preto por um instante. Minha tia me acudiu e deve ter entendido de imediato o que me afligiu. Ledo engano... Eu havia pensado no antes e no durante, mas nunca pensei no depois, quando descobrissem que eu havia mentido. Agora, eu teria que enfrentar as consequências e, conhecendo o meu pai, elas não tardariam a chegar.
Dois dias depois, numa manhã ensolarada e quente, com o ar abafado ao ponto de ser sufocante, meus pais chegaram em Beagá, vindos em uma lotação. A chegada foi festiva, afinal, minha tia não via a irmã há anos. Elas se abraçaram, se beijaram, choraram e tudo isso à frente de mim e de um invocado Zé Maria, que não tirava os olhos de fogos de cima de mim. Talvez por isso, eu estivesse sentindo tanto calor, vá saber...
Tia Valdete fez questão de lhes servir um belo e farto café com tudo o que tinha direito: pães, bolos, sucos, café, leite e...
- Pão de queijo!? Isso num é pão de queijo não, uai! – Resmungou meu pai após a primeira mordida.
- Credo, Zé! Está tão ruim assim? – Perguntou minha tia, com um sorriso travesso nos lábios.
- Ruim não tá, mas tamém não tá bão. – Resmungou meu pai dando uma segunda mordida: - Acho que vô comê um bolinho desse aí.
Foram momentos deliciosos, de boa conversa, prosa mole e risadas soltas. O Léo preferiu ficar na sala, lendo um livro qualquer, enquanto a gente proseava tantas e boas. Meu pai não tirava os olhos de mim, mas sua risada pelo menos me dava um alento de que talvez a tempestade não fosse tão grande assim. Ledo engano...
- Dete, a gente tá precisando muito proseá com uma certa pessoa. Será que ocê não daria uma licencinha pra nóis? – Perguntou meu pai, agora mordendo os lábios enquanto me encarava.
Tia Valdete olhou bastante apreensiva para a minha mãe que apenas acenou positivamente com a cabeça, mostrando que ela também não estava do meu lado, o que era óbvio dadas as circunstâncias:
- Zé... Ela é menina ainda. Se fez besteira, deve relevar. Acho só que talvez não seja o melhor momento. Vocês não gostariam de descansar um pouco da viagem e deixar essa conversa pra depois?
- Dijeitoninhum! – Resmungou meu pai, atropelando as palavras: - Viemo só pra isso e não vou sossegá até fazer isso!
- Mana... – Resmungou minha tia, apertando a mão da minha mãe.
- Deixa estar, Dete. O Zé tem razão. A gente precisa proseá com ela e vai ser já.
Minha tia se levantou e foi para a sala, fechando a porta da cozinha atrás de si, deixando apenas a mim, meus pais e um terror sufocante presos naquele espaço apertado. Minha mãe respirava profundamente, em silêncio, enquanto meu pai parecia querer tirar sangue de uma fatia de bolo de fubá, tamanha a ira com que mordia o quitute, tudo sem parar de me fuzilar com o olhar injetado:
- Por que cê fez isso? – Perguntou ele, espalhando farelo de sua boca pela mesa.
- Ô Zé!? – Resmungou minha mãe.
- Descurpa.... – Ele falou, juntando os farelos e depositando num prato, enquanto repetia com uma calma ainda mais assustadora: - Fala, Emilinha! Por que ocê fez uma bestera desse tamanho?
Eu não tinha o que falar. Até tinha, mas sabia que meu pai não iria aceitar a justificativa. Minha mãe também aguardava impacientemente que eu dissesse algo e sabia disso porque ela levantou a sobrancelha e mexeu a cabeça me cobrando:
- Ocê pode falar agora, ou ocê pode falar depois, lá em casa... – Resmungou meu pai, ajeitando a fivela do cinto: - Mas cê vai fala... Ô se vai fala...
Olhei para minha mãe já ficando em pânico. Ela não me ajudou dessa vez:
- Fala para o seu pai! Conta tudo, Emilinha, tim-tim por tim-tim. Se ocê não fala, eu vô fala. Mas é melhor se fosse ocê: ia ficá menos feio.
O ar na cozinha estava espesso, como se o próprio tempo tivesse se condensado ali, sufocando-me com o peso das palavras não ditas. Meus pais, sentados à minha frente, eram juízes de um tribunal onde eu era ao mesmo tempo réu e vítima. Papai, com os olhos faiscando, parecia pronto para tirar aquele cinto e me comer o lombo, enquanto mamãe, com sua calma aparente, escondia uma braveza que talvez fosse até maior que a dele. O silêncio que se formou após as últimas palavras dela era um abismo, e eu estava à beira, com as pernas trêmulas e o coração aos pulos, sabendo que qualquer palavra mal colocada poderia me lançar ao fundo:
- Fala, Emilinha... - Repetiu papai ainda mais calmo, a voz mais baixa, mas muito mais cortante, como uma faca de fio recém amolado que não precisa de força para ferir: - Conta logo essa história, porque eu não vim de Passa-Vinte até Beagá só pra tomar café e comer bolo de fubá.
Engoli em seco, sentindo a correntinha com o pingente de coração que do Léo queimar contra minha pele, escondido sob o vestido. A mentira que eu havia tecido com tanto cuidado agora se desfazia como linha podre e eu não tinha mais para onde correr. Olhei para mamãe, buscando um fiapo de compaixão, mas ela apenas cruzou os braços, o olhar firme, como quem diz: “Você cavou esse buraco, agora saia dele.”
- Eu... - Comecei, a voz tremendo: - Eu não quis magoar ninguém. Juro procês. Juro por Deus! Foi tudo... tudo tão confuso. Eu... Eu não tava mais me sentindo eu mesma. Tava com o coração apertado, com vontade de ver o mundo, de ser mais do que a moça que lava roupa no tanque, faz doce, bolo e vai à missa todo domingo.
Papai bufou, recostando-se na cadeira, o rosto vermelho como brasa:
- E pra isso cê precisava mentir? Dizer que terminou com o Paulinho, que ele tava ciumento e sei lá mais o quê? Cê nunca foi de menti, Emilinha, por que isso agora? - A voz dele subiu, e ele bateu a mão na mesa, fazendo os pratos pularem: - Cê sabe o carão que a gente passou quando ele foi lá em casa com o Seu Ciro, sabe? Imagina a dor do moço, todo bem arrumado, aprumado mesmo, com flor e aliança na mão, decidido a desposar ocê, descobrindo que ocê veio para Beagá de baixo de mentira! Nu! Me dói no coração imaginá o que ele sentiu...
Senti as lágrimas subirem aos olhos, mas lutei para contê-las. Chorar agora seria confessar fraqueza e eu já me sentia pequena demais diante deles. Mamãe, que até então se mantivera mais contida, inclinou-se para frente, a voz suave, mas carregada de uma tristeza que cortava mais que a ira de papai:
- Filha, eu te criei pra ser direita, pra falar a verdade, mesmo quando doesse. Por que cê não veio conversar comigo? Por que não disse o que se passava? Para tudo tem solução, menos a morte. Só sei que mentir não é meio de se resorvê as coisa.
As palavras dela eram como agulhas, cada uma perfurando um pedaço da minha alma. Eu queria gritar, contar tudo, sobre Leonardo, sobre as cartas, sobre os beijos, sobre o colar, sobre o desejo ardente de escapar de Passa-Vinte e ser mais do que a moça de chita, mas as palavras se embolavam na garganta, como se temessem sair e enfrentar o julgamento:
- Eu tava com medo. - Murmurei, por fim, baixando os olhos para o chão: - Medo de decepcionar vocês, medo de ficar presa em Passa-Vinte pra sempre, medo de... de não ser quem eu posso ser.
Papai se levantou, a cadeira arranhando o chão com um som que parecia ecoar minha culpa. Ele caminhou até a janela, olhando para fora, como se buscasse nas ruas de Belo Horizonte uma resposta que eu não podia dar e suspirou em silêncio, profundamente:
- Medo, é? - Disse ele, sem se virar: - Medo é coisa que todo mundo tem, Emilinha. Mas coragem é fazer o certo, mesmo com medo. E ocê, pelo visto, escolheu o caminho mais fácil: mentir, enganar, fugir. Pois bem... Agora cê vai voltar com a gente pra Passa-Vinte e enfrenta os seus medo. Não tem conversa! Aqui não é teu lugar, não com essa cabeça cheia de lorota que ocê tá.
- PAPAI, NÃO! - As palavras saíram antes que eu pudesse contê-las, um grito desesperado que fez até mamãe se assustar: - Eu não quero voltar! Eu quero ficar aqui, quero estudar, quero trabalhar, quero... quero viver!
Ele se virou, os olhos faiscando, mas antes que pudesse responder, mamãe levantou a mão, pedindo silêncio. O grito deve ter sido alto mesmo, porque tia Valdete entrou pela porta e se plantou sob o batente, olhos arregalados, temerosos pelo pior. Mamãe olhou para ela fazendo um aceno de cabeça e me encarou, e havia algo em seu olhar que misturava pena e firmeza, como se ela visse em mim a menina que um dia fora e a mulher que eu poderia ser:
- Emilinha, cê tá confusa, e eu entendo. Mas o que cê fez não tem conserto ficando aqui, brincando de cidade grande enquanto o Paulinho tá lá, com o coração despedaçado, pensando sabe-se lá o quê por causa da sua mentira. Cê vai voltar com a gente, nem que seja pra olhar nos olhos dele e dizer que o namoro do’cês terminou. Depois, se ainda quiser, a gente conversa sobre Beagá. Mas agora, filha, cê precisa acertar as contas com o passado.
As palavras de mamãe eram finais, uma porta que se fecha. Não havia espaço para argumentar, não havia brecha para escapar. Meu coração batia forte, mas eu sabia que não tinha escolha. A culpa, esse monstro que me perseguia desde a noite à beira do rio, finalmente me alcançara.
A volta a Passa-Vinte foi um calvário silencioso. Dentro de uma lotação, com papai sentado ao meu lado e mamãe na frente, trocamos poucas, pouquíssimas palavras. Eu olhava pela janela, vendo os morros se sucederem, já imaginando que logo os de Passa-Vinte se aproximariam, como sentinelas de um destino do qual eu tentara fugir. A correntinha e pingente do Léo, que eu ainda usava, parecia pesar uma tonelada, e eu o apertava contra o peito, como se aquilo pudesse me ajudar a superar a minha vergonha.
Chegamos à tardinha, quando o sol já se despedia, tingindo o céu de laranja e roxo. A casa, com sua varanda simples e suas janelas de madeira, parecia a mesma, mas eu já me sentia uma estranha. Mamãe colocou a mão no meu ombro, um gesto que era ao mesmo tempo consolo e advertência:
- Vai descansar, filha. Amanhã ou depois, a gente conversa com o Paulinho. E ocê vai dizer a verdade, nem que doa, porque pelo menos ela vai libertá ocês.
Eu apenas assenti e fui para o meu quarto que agora me parecia pequeno demais para conter tudo o que eu sentia. Deitei-me na cama, olhando o teto, onde a teia de aranha ainda pendia, intocada, como um lembrete de que o tempo não apaga os erros, apenas os cobre de poeira.
Foram dois dias em que eu tentava organizar o que dizer ao Paulinho, num misto de rotina e angústia. Mamãe não saiu do meu lado e me mantinha ocupada com as tarefas da casa, como se o trabalho pudesse limpar minha alma. Mas ocupar a cabeça era a coisa certa a fazer, afinal “mente vazia, é oficina do diabo.” Papai ficava só calado, me observando de longe, e eu sentia em seus silêncios uma decepção que doía mais que qualquer palavra. Mas o que mais me atormentava era ter que falar para Paulinho que eu não o queria mais, mas... se eu não o queria, por que me doía tanto? Se não sentia amor por ele, sentia o quê então?
Na manhã do terceiro dia, decidi que não podia mais esperar. A culpa me consumia e eu precisava, pelo menos, tentar reparar o que havia quebrado. Vesti meu vestido de chita azul, aquele que Paulinho dizia combinar com meus olhos, e fui até a cozinha tomar um café. Meus pais estavam sentados à mesa e ao me virem, entenderam que a hora havia chegado. Depois do café, caminhei com eles até a casa de Paulinho, a poucos quarteirões da minha. O sol estava alto, e o calor fazia o ar tremular, como se o próprio mundo estivesse febril. Meu coração batia descompassado, e eu ensaiava mentalmente as palavras que diria, sabendo que nenhuma seria suficiente.
Ao chegar à casa dele, uma construção simples de tijolos aparentes, com um quintal onde galinhas ciscavam preguiçosamente, encontramos Seu Ciro, o pai dele, sentado num toco dentro de sua varandinha, descascando uma laranja com uma faca pequena. Ele ergueu os olhos ao me ver, e seu rosto marcado pelo tempo e pelo sol forte, endureceu:
- Bão, cumpadi? – Cumprimentou meu pai.
- Bão. E ocês? Bão tamém? – Retrucou, Seu Ciro.
- Vamo levano como Deus qué, né, cumpadi... – Resmungou minha mãe.
Deus... Certamente Deus não queria aquela cena, aquela dor, aquela decepção que doía mais que uma faca em brasa na pele seca. Ele me encarou com mágoa nos olhos:
- Emilinha... - Disse ele, a voz seca, sem nenhum calor mais: - O que cê quer aqui?
Engoli em seco, as mãos suadas apertando a barra do vestido:
- Seu Ciro, eu... eu vim falar com o Paulinho. Preciso explicar, pedir desculpas...
Ele, que já havia parado de descascar a laranja, a faca balançando nos dedos, prensou os olhos em mim com um olhar que parecia atravessar minha alma:
- Paulinho não tá aqui, menina. Ele foi-se embora.
As palavras me atingiram como um soco:
- Embora!? - Repeti, atônita, sentindo o chão tremer sob meus pés: - Como... Como assim, embora? Pra onde, Seu Ciro? Quando?
Ele suspirou, largando a laranja sobre outro banquinho ao seu lado:
- Foi pra Goiás, Emilinha. Há uns dias. Um parente nosso veio aqui e levou ele, prometendo emprego, casa, uma vida nova. Paulinho se foi, disse que não tinha mais motivo pra ficar em Passa-Vinte, não depois do que cê fez. Mas é bão, lá ele vai ter a chance de crescer e virar um homem direito. Barnabé há de fazê-lo crescer, há se há... E lá ele há de encontrar alguém tamém, uma moça boa, direita, que mereça receber a aliança que ele...
Cada palavra de Seu Ciro era como uma pedrada. Paulinho, o homem que me amava com uma devoção que eu não merecia, havia partido por minha causa:
- Eu... Eu não sabia... - Murmurei, a voz embargada: - Eu juro, Seu Ciro, eu não sabia que o Paulinho queria...
- Casar!? Ocê achou que ocês tavam fazeno o quê, brincano de casinha? – Ele me interrompeu, a mágoa transbordando em sua palavras: - Ele sonhava co’cê, com uma vida do’cês dois, juntos. Ele estava juntando dinheiro, fazeno economia, havia comprado até um par de aliança. Mas pra quê, né? Cês tinham terminado...
Uma lágrima escapou rápida, sem que eu pudesse evitar:
- Juro por Deus que eu não queria magoá-lo, Seu Ciro...
- Não queria!? Nu! Imagina se quisesse... - Ele pegou a faca e se levantou, apontando-a para mim, não com ameaça, mas com a indignação de um pai ferido: - Cê enganou ele, Emilinha, esse tempo todo. Mentiu pra tua família, fugiu pra Beagá e agora vem dizer que não queria? Mas Deus conserta tudo. Agora ele tá lá, debaixo das mão do Pai, tentando esquecer o que cê fez, e vai. Fica tranquila. Vai embora, menina, aqui não tem mais nada pro’cê.
Durante toda a conversa, meus pais permaneceram lá comigo, mas em silêncio, testemunhas de um crime que eu havia cometido, sem forças ou argumentos para me defenderem. Sem forças para falar mais nada, dei meia-volta e só então minha mãe me abraçou. Ouvi meu pai se desculpar novamente com o Seu Ciro, desejando boa sorte e fortuna para Paulinho. Caminhamos de volta para casa, as lágrimas embaçando a minha visão, o coração apertado como se uma mão invisível o esmagasse. Passa-Vinte, que antes me parecia pequena e sufocante, agora parecia imensa, um deserto onde eu estava perdida sem Paulinho. Mas se eu amava Léo, por que a falta de Paulinho me sufocava tanto? Será que eu o amava mesmo ou será que fora apenas uma paixão.
Os dias que se seguiram foram um tormento silencioso. Mamãe e papai não tocaram no assunto, mas seus olhares diziam tudo. Eu me afundava nas tarefas da casa, tentando encontrar na rotina um refúgio para a dor, mas ela estava em tudo: no tanque de roupas onde Léo me beijara na primeira vez, na varanda onde Leonardo me seduzira, na praça onde Paulinho e eu trocáramos juras de amor. Cada canto de Passa-Vinte era um espelho que refletia minha culpa.
Uma semana após minha volta, recebi uma carta. O envelope, simples, sem remetente, tinha a caligrafia inconfundível de Leo. Meu coração deu um salto, mas não de alegria, era medo, raiva, confusão. Abri a carta com as mãos trêmulas, sentada na varanda, enquanto o sol se punha, tingindo o céu de vermelho.
“Emilinha, minha querida,
Não sei se vais ler esta carta, mas precisava escrever. Soube pelo meu primo que Paulinho foi embora, e imagino o que deves estar sentindo. Não vou mentir: uma parte de mim se alegra, porque agora, quem sabe, possas olhar para mim sem culpa. Mas outra parte, a que ainda tem um pingo de decência, sabe que causei estrago. Não era minha intenção, juro. Queria te dar o mundo, mas talvez o mundo que te prometi fosse grande demais para ti. Volta pra Beagá, Emilinha. Aqui é teu lugar, ao meu lado. Podemos recomeçar, sem mentiras, sem segredos.
Com carinho,
Leonardo”
Li e reli a carta, sentindo um misto de raiva e saudade. Leo, com suas palavras doces e seu jeito de cidade grande, ainda tinha o poder de me abalar, mas agora eu via com clareza o que antes era apenas uma sombra: ele era o brilho que ofusca, mas não aquece. Rasguei a carta em pedaços pequenos, jogando-os ao vento, que os levou para longe, como se pudesse levar também minha confusão.
Naquela noite, deitada na cama, olhando a teia de aranha no teto, tomei uma decisão. Não voltaria para Belo Horizonte, não por Leo, nem por ninguém. Passa-Vinte, com seus morros, seu rio, sua simplicidade, era meu lugar, pelo menos por enquanto. Eu precisava me encontrar, não na cidade grande, não nos braços de um homem, mas em mim mesma. Paulinho, onde quer que estivesse, merecia mais do que uma mulher dividida, e eu precisava aprender a ser essa mulher, não a Emilinha de chita, não a Emilinha do Leo, mas a Emilinha que ainda não conhecia.
Os meses que se seguiram foram de reconstrução. Comecei a ajudar na escola da vila, ensinando as crianças a ler e escrever, algo que me dava um propósito que eu nunca imaginara. Mamãe e papai, aos poucos, voltaram a me olhar com carinho, embora a sombra da decepção nunca tenha desaparecido por completo. E eu, dia após dia, aprendia a carregar minha culpa sem deixar que ela me definisse.
Numa tarde de primavera, enquanto varria o quintal, vi um vulto ao longe, na estrada que levava à Passa-Vinte. Era um homem, carregando uma mochila, o passo cansado, mas firme. Meu coração disparou, mas não era Paulinho. Era apenas um viajante, um estranho que pedia água e seguia seu caminho. Mas, naquele momento, percebi que, mesmo sem ele, eu ainda o esperava. Talvez sempre esperasse.
E assim, entre os morros de Passa-Vinte, sob o céu que ora brilhava, ora se nublava, eu continuava, uma mulher em busca de si mesma, carregando no peito o vazio de um coração que não usava mais, mas cujo peso jamais me deixaria.
OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.
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