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Duas longas voltas do calendário, dois meses inteiros de dedicação intensa. Valentim mergulhara nos livros, nos resumos e nas conversas com os colegas, tentando deixar para trás qualquer ruído emocional. Sabia que a próxima etapa da Gincana dos Quatro Elementos exigiria mais do que apenas conhecimento: seria preciso concentração absoluta. Era a prova de conhecimento geral — e ele estava determinado a brilhar.
Naquela manhã fria de junho, o Instituto Discere parecia aquecido não pelo clima, mas pelas cores que enfeitavam o saguão principal e os corredores: vermelhos, alaranjados, detalhes flamejantes que celebravam a reta final da etapa Fogo. O ambiente vibrava como um campo de batalha moderno, onde os guerreiros empunhavam teclados e não espadas.
As turmas estavam dispostas em fileiras, cada grupo numa estação equipada com computadores. As luzes do auditório tinham sido suavemente reduzidas, criando uma atmosfera tensa e silenciosa. Valentim se sentou, massageando as têmporas com os dedos trêmulos. Podia sentir o coração martelando contra o peito, mais pelo acúmulo de emoções do que pela competição em si. Ainda estava digerindo a separação de Karla, tentando entender o que havia entre ele e Noah, e enfrentando aquela bagunça interna que parecia ganhar volume nos momentos mais inoportunos.
— Bora, Valentim, foca! — Sussurrou Berenice ao seu lado, tocando o ombro dele com firmeza e carinho.
Noah estava na estação ao lado, concentrado como um atleta antes do salto. A testa franzida, os olhos fixos na tela, a respiração perfeitamente medida. Havia algo quase hipnótico em vê-lo assim — uma mistura de admiração e... algo que Valentim ainda não sabia nomear.
A professora Leda caminhou até o centro e ergueu a mão. Ao seu sinal, a primeira pergunta piscou nas telas. E, dali em diante, foi como assistir a uma dança frenética entre dedos e sinapses. As perguntas vinham em rajadas: literatura clássica, geopolítica, ciência moderna, cultura pop, atualidades. A pressão era enorme. Valentim tentava manter o ritmo, mas o nervosismo traiçoeiro fazia suas respostas saírem hesitantes, por vezes erradas.
Do lado, Noah parecia um autômato perfeito, cravando acertos quase no limite do cronômetro.
Foi quando uma voz se ergueu no meio do salão:
— Aquele não é o filho do Senador?
A pergunta ressoou como um trovão no auditório silencioso. Noah congelou por um segundo. Foi o bastante. O foco dele vacilou, e a sequência de acertos que vinha mantendo começou a ruir.
Valentim percebeu, mas não se sentiu vitorioso. Pelo contrário, sentiu um incômodo crescer no peito.
Os olhares dos dois se cruzaram entre uma pergunta e outra. Havia raiva ali, sim. Havia rivalidade. Mas, no fundo, havia algo mais — uma cumplicidade silenciosa que ambos fingiam não ver.
— Tá com dificuldade, velhinho? — Provocou Noah, tentando recuperar o controle da situação com a voz fria.
— Cala a boca, fedelho. — Respondeu Valentim num sussurro tenso, mordendo o lábio.
Mas ele sabia, mesmo que não admitisse: Noah era melhor. E aquilo doía como uma ferida aberta.
Quando o tempo expirou, a professora Leda anunciou os resultados com entusiasmo. A equipe de Noah havia vencido a etapa Fogo por uma diferença mínima: uma única resposta. O auditório explodiu em gritos e aplausos.
Valentim saiu da sala com o rosto em chamas. Não era vergonha. Era outra coisa. Algo mais íntimo, mais confuso, mais inquietante.
No corredor, Karla e Berenice o esperavam.
— Tá difícil, né? — Perguntou Karla, num tom suave, quase maternal.
— É... — Valentim respondeu, o olhar baixo. — Tá difícil manter o foco quando tudo dentro de mim parece uma bagunça.
Berenice, ao lado de Karla, sorriu com leveza.
— Talvez você precise parar de lutar sozinho.
Valentim não respondeu. Apenas ergueu o rosto para o céu cinza que cobria o Instituto Discere, e seus pensamentos inevitavelmente voltaram a Noah. O que era aquilo que sentia? E por que, entre tantas derrotas e inseguranças, era justamente ele quem mais ocupava sua mente?
— Amigo, o placar geral empatou, mas ainda temos outras provas. — Disse Berenice, tentando animá-lo.
— Sabe, Berê... Eu adoro o teu otimismo. — Valentim sorriu de canto, um sorriso cansado, mas verdadeiro.
Naquele instante, Noah se aproximou. Estava mais calmo, mas ainda com o ar altivo de quem acabara de sair de uma batalha vitoriosa.
— Oi, meninas. — Cumprimentou, encarando Karla e Berenice com educação.
— Com licença. — Pediu Valentim, quase automático, enquanto se afastava com passos apressados.
Tentou parecer tranquilo, mas sua atuação foi péssima. Porque a verdade é que ele estava confuso, ferido... e cada vez mais envolvido por aquilo que não conseguia entender — o efeito de Noah sobre ele.
***
A biblioteca do Instituto Discere havia se tornado um refúgio silencioso para Valentim. Durante o dia, o prédio fervilhava com as atividades escolares, mas à noite, os corredores se esvaziavam e o ambiente mudava. Além das aulas regulares, o Instituto oferecia cursos profissionalizantes, e por isso, a biblioteca permanecia aberta até mais tarde. Era nesse espaço que Valentim encontrava paz.
Ali, ele desligava o celular, o tablet, qualquer coisa que pudesse levá-lo ao mundo exterior. Naquele silêncio quase sagrado, existiam apenas ele e o livro. Com as telas fora de vista, Valentim se sentia mais presente, mais inteiro. Os dias eram intensos, e ele precisava de algo que o ancorasse.
Tão absorto estava na leitura que sequer notou quando Noah chegou, sentando ao seu lado e, vencido pelo cansaço, adormeceu.
A biblioteca estava vazia. Nenhum ruído, exceto pela música suave que escapava discretamente dos fones de Noah. Valentim só se deu conta da presença dele quando virou a página e ouviu um leve suspiro. Ao olhar para o lado, seu coração disparou.
Noah dormia com o semblante sereno, mas havia algo de profundamente exausto em seu rosto. A boca entreaberta, os cabelos castanhos levemente desgrenhados, como se tivessem sido bagunçados por um vento rebelde. Havia um charme natural naquele estado de descuido — uma beleza despreocupada que fazia Valentim prender a respiração.
Num impulso tímido, quase inocente, Valentim estendeu a mão e tocou uma mecha do cabelo de Noah. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. O coração batia como um tambor em seu peito, acelerado, confuso, vivo.
Mas a sensação foi... boa. Boa demais. Sua mão, antes hesitante, agora se movia com mais liberdade. Como se estivesse navegando por um oceano castanho e macio, seus dedos deslizaram entre os fios, sentindo o calor, o cheiro, a textura.
Foi então que a realidade o atingiu como um raio. O que ele estava fazendo?
Assustado com aquela nova e incontrolável onda de sensações, Valentim se afastou abruptamente. Recolheu os cadernos, a mochila e saiu da biblioteca em passos rápidos, o rosto em chamas. Aquilo não podia estar certo. Ele gostava de garotas. Sempre gostou.
Noah abriu os olhos pouco depois, como se instintivamente soubesse que algo havia acontecido. Levou a mão aos próprios cabelos e fechou os olhos novamente, como quem deseja reter a memória de um toque.
Gostou.
Mas dentro dele também havia tempestade. Primeiro, a queda pública de seu pai. Agora... um crush?
No caminho de volta para casa, Valentim enviou uma mensagem para Sofia, colega de turma conhecida por seu jeito extrovertido e presença constante nas redes sociais. Marcaram algo para o fim de semana. Talvez, com a cabeça ocupada, ele conseguisse tirar Noah dos pensamentos. Já estava retomando o foco nos estudos, não precisava de outro problema em sua vida.
***
O encontro aconteceu em um sábado à noite. Sofia era deslumbrante — cabelos lisos e dourados, maquiagem impecável, um vestido que parecia saído de uma revista. Ela era presença constante nos concursos de beleza regionais e tinha milhares de seguidores. A mãe, uma influenciadora famosa, estava moldando a filha para seguir o mesmo caminho.
Logo nos primeiros minutos, Valentim percebeu que aquele encontro seria um desastre.
Sofia era simpática, mas tudo parecia performático. Ela gravou partes do jantar para seus stories, fez boomerangs das taças de vinho sem álcool, registrou o prato principal. Valentim mal conseguia manter o olhar na moça enquanto ela falava sobre engajamento, parcerias e os planos para se tornar embaixadora de uma marca de shampoo.
Ele sorria, mas por dentro, estava distante.
Com Karla, tudo havia acontecido com leveza. As coisas simplesmente fluíram. Já com Sofia, era como estar em um palco, interpretando um papel mal ensaiado.
Depois do jantar no D.O.M., os dois seguiram para uma festa na Tokyo SP. O ambiente era vibrante, as luzes dançavam no ritmo da música, e vários colegas estavam por lá. Muitos estranharam a presença de Valentim com Sofia.
— Ué, ele não namorava a Karla? — Alguém cochichou.
Mais uma vez, Valentim havia metido os pés pelas mãos. Na segunda-feira, o assunto era esse. Quer dizer... até que uma notícia mais impactante tomou o topo das conversas: o pai de Noah havia sido afastado do cargo de senador por conta de uma investigação federal.
O escândalo caiu como uma bomba.
Noah, como sempre, vestiu sua máscara de indiferença. A expressão era fria, o olhar distante. Era como estar de volta a Brasília. A mãe até sugeriu que ele faltasse às aulas naquela semana, mas as férias estavam próximas, e ele só precisava resistir mais alguns dias.
***
Noah assistiu aos stories de Sofia e sentiu algo se contorcer dentro do peito. Valentim parecia tão... confortável ao lado dela. Ciúmes. Era isso?
Na escola, cochichos percorriam os corredores. Valentim não aguentou e perguntou:
— O que está acontecendo?
Karla, que observava de longe, se aproximou com um sorriso sarcástico.
— Tava ocupado demais metendo a língua na boca da Sofia? — Perguntou, fazendo uma careta debochada.
Valentim suspirou, inclinou-se e sussurrou no ouvido da ex-namorada:
— Estou solteiro.
Karla ergueu as sobrancelhas, mas antes que pudesse responder, um colega interrompeu:
— Enfim... o Jornal de Domingo mostrou uma reportagem sobre o pai do Noah. Foi afastado do Senado por causa de uma investigação.
— O Seu Raphael? Caramba... — Nurmurou Valentim, surpreso. — O Noah deve estar morrendo de vergonha.
— Nem parece. Ele passou aqui super de boa. Mas vou lá ficar com ele. Depois a gente se fala — respondeu Karla, já se afastando.
Valentim ficou parado no corredor, a observando. No fundo, não sabia se estava mais confuso com a atitude de Noah... ou com a própria.
Para Noah, os corredores do Discere estavam mais barulhentos que o normal.. O ar parecia carregado de algo invisível, como uma tempestade prestes a desabar. Risos abafados, celulares em punho, sussurros que se multiplicavam nas esquinas da escola. Os olhos que antes passavam por Noah sem peso agora o seguiam como lâminas afiadas.
Ele caminhava com passos firmes, mas não confiantes. O capuz puxado sobre a cabeça, os fones de ouvido no volume máximo, como se pudesse afogar o mundo em batidas graves. Fingir era necessário. Fingir que não ouvia, que não via, que não sentia. Mas por dentro, o coração batia forte e descompassado, como se tentasse escapar do peito.
Quando passou em frente à sala dos terceiros anos, ouviu um sussurro mais alto:
— É o filho do Senador, né? Aquele do escândalo...
Outro riu.
— Aposto que ele também é sujo. Tal pai, tal filho.
Noah engoliu seco, sem alterar o passo. Não dava para encarar ninguém. Não hoje. Não agora. A respiração ficou curta. O corredor parecia se estreitar, as vozes se misturando num zunido ensurdecedor.
Entrou no banheiro sem pensar, empurrando a porta com força. Se trancou no último box e se apoiou contra a parede fria. Os fones ainda tocavam, mas agora já não serviam de escudo. O estômago revirou. A náusea veio como uma onda cruel, inevitável. Vomitou, os joelhos tremendo. Era como se o corpo inteiro rejeitasse o que ele não conseguia nomear: vergonha, medo, raiva.
Ficou ali por alguns minutos, tentando controlar o tremor das mãos. Respirou fundo, lavou o rosto com água gelada. Quando se olhou no espelho, viu um reflexo desconhecido: o mesmo olhar determinado de sempre, mas apagado por uma sombra que insistia em crescer.
À tarde, ao chegar em casa, Noah já pressentia que algo não ia bem. Havia uma movimentação estranha na frente do prédio — câmeras, microfones, repórteres que falavam com entusiasmo fabricado diante de lentes e luzes.
Ele subiu às pressas, ignorando os olhares e os flashes. A porta de casa estava entreaberta, e, de dentro, a voz do pai soava com firmeza:
— O vídeo é uma farsa! Foi manipulado digitalmente. Se trata de um deepfake. Estamos diante de um crime, de uma tentativa de destruição de reputação!
Noah entrou devagar, o coração acelerado. Viu o pai sentado na sala, entre os repórteres, olhos cansados, mas postura erguida. Raphael retornara de Brasília às pressas. Agora, diante das câmeras, tentava limpar o nome que o país inteiro julgava sujo.
— Esse vídeo surgiu justamente agora, quando eu estava prestes a apresentar um projeto que traria benefícios reais aos trabalhadores deste país. Coincidência? Não acredito em coincidências nesse meio. — Declarou, a voz embargada por uma raiva contida. — Mesmo sendo mentira, mesmo sendo forjado, minha carreira foi atingida. E os responsáveis por isso... vão pagar.
Noah recuou silenciosamente, fechando a porta do quarto com cuidado. Do outro lado do corredor, a mãe lhe lançou um sorriso tenso, tentando passar tranquilidade. Mas ele viu no olhar dela o mesmo medo que sentia no próprio corpo.
Sentou na beira da cama, deixando a mochila escorregar dos ombros. O quarto, antes um espaço de descanso, agora parecia um lugar estranho, pesado. O peito apertava, como se não houvesse espaço suficiente para tudo o que sentia.
Lembrava dos últimos meses, da rotina que começava a fazer sentido, da leveza que ensaiava sentir. Tudo desmoronara num fim de semana. E o pior era saber que, mesmo inocente, seu pai agora era um nome marcado. E ele também.
Na manhã seguinte, a escola já não parecia a mesma. Os olhares se tornaram mais densos. Não eram apenas curiosos — eram julgadores. Muitos cochichavam, alguns evitavam cruzar caminho com ele. Outros apenas olhavam, esperando que ele caísse, que gritasse, que chorasse.
Mas Noah permanecia de pé, mesmo que por dentro só quisesse calar o mundo.
***
O céu estava nublado quando Valentim deixou a sala de atendimento do Dr. Luiz Carlos. Os corredores do Instituto Discere estavam silenciosos, quase como se refletissem o estado confuso de sua mente. A porta ainda nem havia se fechado por completo atrás dele quando, ao virar o corredor, esbarrou com alguém.
Noah.
O impacto foi leve, mas suficiente para os dois se encararem por um segundo. Valentim sentiu o coração acelerar, mas Noah apenas desviou o olhar e seguiu seu caminho em silêncio, com o capuz cinza do moletom puxado até quase cobrir os olhos. Nada da típica provocação, nenhum comentário ácido — só silêncio. Aquilo doeu mais do que qualquer palavra.
Foi então que duas vozes surgiram como facas no ambiente:
— Olha ali, Heitor, o filhinho do político corrupto. — disparou James, do terceiro ano, com um sorriso torto.
— Bando de safado. Usam o nosso dinheiro pra mandar os filhos pras melhores escolas. — completou Heitor, cruzando os braços.
Valentim parou no meio do corredor, assistindo à cena. Noah continuou andando, fingindo não ouvir, mas o passo mais apressado e os punhos cerrados denunciavam o contrário.
— Ei. O Noah não tem nada a ver com o pai dele. — Valentim se intrometeu, com a voz firme.
James arqueou uma sobrancelha.
— Vai defender o ladrãozinho, Valentim? Fora que ele tá te dando uma surra na Gincana. O melhor pra todos é esse otário sair daqui.
— Não. — Respondeu prontamente. Só depois percebeu o que havia dito. — O melhor é vocês dois calarem a boca pra evitar problemas.
Os dois colegas se entreolharam, confusos.
— Qual é, Val? Tá estranhando a gente? — Perguntou James, com um tom mais contido.
— A sucessão de derrotas deve ter fritado o miolo dele. Vamos, eu não quero me atrasar pra festa no iate. — Disse Heitor, dando um tapinha no ombro do outro enquanto se afastavam, ainda lançando olhares curiosos para trás.
Valentim ficou ali, parado. O coração pulsava forte, as palavras ainda ecoando em sua cabeça. Sem pensar, girou nos calcanhares e voltou correndo para a sala do psicólogo.
— Valentim? — Estranhou Dr. Luiz Carlos, que já organizava os papéis da próxima sessão. — Esqueceu alguma coisa?
Valentim entrou e começou a andar de um lado para o outro, falando sem parar, quase atropelando as próprias palavras. O psicólogo o observava com atenção, até erguer a mão pedindo silêncio.
— Você falou e não disse nada, Valentim. — Comentou, lançando um olhar ao relógio. — Sente-se. Ainda tenho dez minutos.
Valentim sentou, respirou fundo e olhou fixamente para o homem à sua frente.
— Então, doutor Luiz... um amigo meu...
— Amigo?
— Isso. — Respondeu rapidamente, num tom quase desesperado. — Desculpa, mas esse amigo meu tinha uma namorada. O sexo era bom, mas ele sentia falta de algo. Aí chegou um novo aluno na escola e esse meu amigo tá sentindo coisas. Coisas que não são certas. Coisas confusas.
O psicólogo se ajeitou na cadeira.
— Valentim, pra começar, não existem sentimentos errados. Cada um tem o seu valor. E outra coisa: aqui é um ambiente seguro. Nada do que você me disser vai sair daqui. Não será julgado. Nem comentado.
Valentim desabou na cadeira, exausto de segurar tanto dentro de si.
— Eu não sei o que fazer... Cada vez que eu olho pra ele parece que meu coração vai derreter. Eu sinto vontade de conversar, de conhecer, de proteger.
— E o sentimento é recíproco?
Valentim hesitou por um instante.
— Ele é meio babaca comigo... mas sinto que é só fachada. Existe mais ali. Ele tenta esconder... mas eu vejo.
Dr. Luiz Carlos sorriu suavemente.
— Então tenta uma conversa. Seja você o primeiro a tirar essa fachada. Talvez, mostrando seus sentimentos sinceros, você encontre as respostas que procura.
Valentim assentiu, sentindo o peso no peito diminuir um pouco.
— Pode ser. Obrigado, doutor.
— Você pode respirar, Valentim. — Pediu o psicólogo. — Você pode escolher se aproximar ou simplesmente estar presente.
***
A vida acadêmica no Instituto Discere não era para os fracos. Ali, cada professor parecia obstinado em espremer o máximo de seus alunos. Não bastava decorar fórmulas ou entender datas históricas — era preciso pensar como um futuro líder, como alguém capaz de transformar o mundo. E, para isso, o ritmo era intenso.
Valentim, desde que ingressara ali, vinha travando uma batalha silenciosa com as disciplinas exatas. Seu desempenho havia melhorado, é verdade, mas ainda estava longe do ideal. No primeiro bimestre, quase zerou em matemática, química e física. O boletim vermelho parecia um alerta: sem uma reviravolta, a reprovação era uma certeza. Precisaria de um milagre — ou, no mínimo, de muito esforço.
Decidido a mudar, Valentim fez o impensável: excluiu suas redes sociais, silenciou os grupos de conversa, limitou ao máximo qualquer distração. Nas horas vagas, que antes seriam consumidas por vídeos curtos e mensagens aleatórias, ele mergulhava nos livros, tentava resolver exercícios antigos e até cogitava conseguir um tutor para ajudá-lo nas matérias mais desafiadoras.
Era quase um monge, imune ao caos ao redor. Quase.
Havia uma distração que ele ainda não sabia como lidar. Um ruído que nenhum fone ou técnica de concentração era capaz de silenciar: Noah.
Naquela noite fria, a biblioteca do Instituto estava quase vazia, com exceção de alguns estudantes que, como ele, se agarravam às últimas horas de funcionamento. Entre prateleiras altas e o zumbido suave da iluminação fluorescente, Valentim se concentrava em um caderno cheio de anotações e rabiscos.
Até que a porta se abriu. E lá estava Noah.
Ele entrou sem pressa, com o capuz jogado sobre a cabeça e os olhos pesando mais do que seu corpo deixava mostrar. Pegou um livro qualquer — talvez nem soubesse o que tinha nas mãos — e se jogou numa poltrona próxima, folheando as páginas sem realmente ler.
Era fácil perceber que Noah só queria um minuto de paz. Valentim o observou discretamente. Sabia, por conversas nos corredores, que a casa dele estava um caos — advogados, repórteres, assessores... todo mundo queria um pedaço da verdade. Mas Noah parecia exausto demais para lutar.
Valentim tentou seguir com os estudos, mas a linha de raciocínio se partia cada vez que ouvia o virar de uma página mal-humorada. Lembrou então do que o Dr. Luiz Carlos havia dito nas sessões: "Você pode respirar, Valentim. Você pode escolher se aproximar ou simplesmente estar presente."
Estava prestes a tentar uma aproximação quando o celular de Noah tocou. A tela se acendeu, exibindo um nome que Valentim não conseguiu ver, mas o efeito foi imediato. A expressão de Noah se fechou, os olhos brilharam em raiva contida. Sem hesitar, lançou o aparelho longe. O baque do telefone contra o chão ecoou pela biblioteca silenciosa.
Valentim se encolheu, olhando ao redor. A bibliotecária, num canto distante, levantou os olhos apenas para pedir silêncio com um gesto.
Respirando fundo, ele se levantou, caminhou até o celular estilhaçado e o recolheu com cuidado. Depois voltou-se para Noah, que mantinha o olhar fixo em algum ponto do vazio.
— Tá tudo bem? — Perguntou baixinho, o puxando de leve para um canto mais reservado entre as estantes.
— Me deixa em paz. — Respondeu Noah, sem olhar para ele.
— Ei... não é todo mundo que é teu inimigo, ok? — Insistiu Valentim, com a voz serena. — Eu tô preocupado.
Por um instante, Noah hesitou. Os lábios tremeram levemente antes de se curvarem em um meio sorriso triste, como quem já não tinha forças para manter as defesas de pé.
— Meu pai... ele não fez isso. — disse, num sussurro abafado. — Mas ninguém quer ouvir.
Valentim não sabia o que dizer. Também não sabia o que fazer. Mas estendeu a mão, pousando-a sobre o ombro do outro rapaz. Às vezes, a presença era tudo que alguém precisava.
— Você não tá sozinho, não.
Foi então que Noah ergueu os olhos. Pela primeira vez naquela noite — talvez em dias — ele olhou realmente para Valentim. Os olhos escuros, normalmente carregados de ironia, agora brilhavam com algo mais puro: gratidão.
— Vale... obrigado.
Simples. Direto. Mas profundo o suficiente para aquecer até o mais gelado dos invernos.
Depois daquela noite, algo mudou. Noah passou a andar pelos corredores com menos energia. Estava mais calado, mais avoado. A gincana, que antes o empolgava, parecia ter perdido o brilho. Mas, ao mesmo tempo, ele e Valentim começaram a se cruzar com mais frequência — e, com o tempo, a se procurar.
A rivalidade entre eles continuava nas aparências, mas por trás de cada olhar, cada troca de palavras rápida demais, havia algo novo florescendo. Valentim percebia isso com um misto de surpresa e medo. Sentia dentro de si um impulso de cuidar de Noah. De estar por perto. De ser a ponte que ele precisava para não desmoronar de vez.
Sem querer, Noah já ocupava um espaço maior em seu coração do que Valentim estava preparado para admitir.