Sangue, Mentiras & Esporas. Parte 5.

Um conto erótico de Lukinha
Categoria: Heterossexual
Contém 3846 palavras
Data: 17/07/2025 14:14:49
Última revisão: 17/07/2025 15:14:57

O sol mal começava a riscar o céu, e eu já estava de pé, ajeitando a sela no cavalo de apoio e preparando o corpo pra mais um dia de treino. A rotina na Três Barras era puxada, e treinar para o rodeio era dobrar o esforço. Não bastava domar o touro, tinha que domar o próprio corpo.

— Atenção no equilíbrio, João. — A voz do Zeca Barreto cortava o ar como ordem de tropa. — A base da perna é tudo. Cê perde a perna, perde o equilíbrio.

Ele falava com firmeza, mas com um olhar que eu já reconhecia: de quem acreditava no meu potencial. A cada dia, ele apertava mais o passo. E eu correspondia.

A manhã começava como sempre, o cuidado com os animais. Mas com a preparação para o rodeio, o treinamento tomava a maior parte do dia. Aquecimento, alongamento, seguido por simulações de montaria num barril montado sobre molas, para treinar o movimento dos quadris e o tempo de reação. Depois, subíamos nos touros de treino, cada um com seu temperamento. Tinha o Furacão, que rodava seco e rápido, e o Chico Louco, que fazia questão de pular na diagonal.

— Não lute contra o bicho, João. — Zeca dizia, de braços cruzados. — Encaixa. Sente o movimento. É igual dançar, mas se tu tentar liderar, ela te joga no chão.

Eu levava cada palavra a sério. O corpo sentia. As mãos viviam calejadas, a coxa roxa, o pescoço duro. Mas bastava o fim do dia chegar que eu tomava um banho ligeiro, trocava a camisa e pegava a motoca rumo à casa da Luana.

Mesmo exausto, eu não deixava de aparecer. Ela me esperava na varanda, às vezes com um chá quente, outras com um sorriso que curava qualquer dor.

— Você precisa descansar, João ... — Ela dizia, enquanto me puxava pra dentro com cuidado. — Desse jeito, vai desmontar antes do touro te derrubar.

— Se eu não vier, cê acha que eu descanso? — Respondi, me sentando no sofá e a puxando para o meu colo. — Só sossego quando tô aqui contigo.

Ela passava os dedos nos meus cabelos, o olhar cheio de ternura.

— Você é doido. Mas é o meu doido.

— Doido e teimoso — Retruquei, beijando sua testa. — Mas cê vai ver, ainda vou te levar pra ver minha primeira vitória. Cê vai estar lá, gritando meu nome.

Ela sorriu, mas no fundo dos olhos eu via a preocupação escondida. A cada hematoma novo, a cada camisa suja de poeira e suor, Luana sentia medo, mas me deixava ser “eu mesmo”, cumprindo sua promessa.

Eu dividia meu tempo entre o trabalho, os treinos e os braços dela. Era como andar em dois mundos: um de força, outro de aconchego. E eu não queria abrir mão de nenhum dos dois.

A semana passava ligeira, e a tensão do rodeio se aproximava. Zeca apertava o treino, e Luana, com carinho, me apertava o coração. Eu estava me preparando para cair, mas também para me levantar, se fosse preciso. Entre o suor do treino e os beijos no sofá, eu sabia que estava vivendo a vida do meu jeito.

Mas, antes de qualquer coisa, havia o convite ao meu pai e já fazia dias que eu vinha matutando como ia ser aquele encontro. Estava na hora de juntar as duas pessoas mais importantes da minha vida: meu pai e minha noiva. Queria que fosse algo especial, mas sem exagero.

Naquela noite, enquanto a Luana ajeitava uns papéis do posto na mesa da sala, me aproximei e fui direto:

— Amor ... tava pensando aqui, que tal a gente marcar um jantar com meu pai?

Ela ergueu os olhos, na hora ficou meio tensa.

— Jantar? Você acha que ele vai gostar?

— Luana ... o pai é homem simples. Cresceu comendo arroz, feijão, carne e farinha grossa. Ele não liga para luxo.

— Mesmo assim, eu fico nervosa … — Ela respondeu, mordendo o canto da boca.

Me sentei ao lado dela e segurei sua mão.

— Acho que eu vou fazer uma reserva na churrascaria …

Ela me cortou com um sorrisinho já decidido:

— Se ele é simples, nada melhor do que a gente fazer aqui mesmo. Na minha cozinha. Casa pequena, coração grande. Eu cozinho.

— Se tem uma coisa que vai agradar o velho, é comida feita com amor. — Concordei. — E nisso você é craque.

— Então pronto, tá marcado. Me ajuda a escolher o cardápio depois. — Ela pediu.

— Se tiver sua farofa crocante, o velho vai amar. — Insinuei, piscando para ela.

Rimos juntos, abraçados, com aquele sentimento bom de quem sabe que está construindo uma história de verdade. E assim, entre riso, carinho e simplicidade, nasceu o plano do jantar.

A noite chegou com um ventinho bom soprando pela varanda da casa da Luana. A luz amarelada da cozinha deixava o ambiente ainda mais acolhedor, e o cheiro da comida fazia o estômago roncar antes mesmo do prato chegar à mesa.

Luana, animada, ajeitava os últimos detalhes da mesa quando a caminhonete do meu pai estacionou do lado de fora. Desci para recebê-lo. Ele veio com camisa de botão, calça social e aquele chapéu velho que ele nunca largava. Trazia nas mãos um bolo de fubá e uma garrafa de licor de jenipapo.

— Trouxe presente. — Ele disse, sorrindo. — Aquele bolo que a comadre Rosa ensinou. E esse licorzinho fraco, só pra adoçar a língua depois da janta.

— Vai entrando, pai. A Luana tá toda empolgada.

Ele passou pela porta e foi recebido com um abraço sincero.

— Boa noite, seu Antônio. Fico feliz que tenha vindo. — Ela disse, sorrindo.

— Agradeço o convite, minha filha. E pode tirar esse "seu" daí. Me chama só de Antônio mesmo, se não me sinto mais velho do que sou.

Rimos e nos sentamos à mesa. A comida estava simples e cheirosa: arroz fresquinho, feijão temperado com alho e louro, carne de panela macia, salada com coentro do quintal e a famosa farofa crocante. Típico jantar de interior, feito com carinho.

O clima, no começo, foi respeitoso. Mas logo, como é de costume em mesa boa, as histórias começaram a correr.

— E esse menino aí … — Começou meu pai, apontando para mim com o garfo — … uma vez quis domar um bezerro com corda de varal. Tinha uns dez anos. Acabou arrastado pelo pasto inteiro, ficou parecendo uma trouxinha de barro, todo ralado. Chorou o dia inteiro.

— Pai! — Reclamei, rindo de vergonha.

Luana gargalhou, quase se engasgando.

— Eu consigo imaginar! — Ela disse, limpando os olhos marejados de tanto rir.

— Teve outra vez que ele quis pular do telhado do galinheiro com um guarda-chuva, dizendo que era paraquedista. Adivinha? Quebrou o guarda-chuva, o galinheiro e quase as pernas.

— Agora chega, né? — Falei, tentando parecer bravo, mas era impossível segurar o riso.

Ver os dois assim, se dando bem, aquecia meu peito de um jeito que eu não sabia explicar.

Meu pai mostrava interesse genuíno em Luana.

— E você, minha filha, é de onde? E sua família?

Luana, mais quieta por um momento, abaixou um pouco o tom.

— Eu sou do estado vizinho, sogro. Eu não tenho mais família. Minha mãe se foi há alguns anos, sempre muito doente, e meu irmão mais novo logo depois. Fiz concurso e me mudei para cá. Tenho uma tia, e uns primos distantes, mas nunca mais tive contato.

Meu pai olhou para ela com carinho e falou com firmeza:

— Agora cê tem. Além do João, também a mim, se me permitir cuidar de vocês. Não tive filha mulher, mas posso aprender a lidar.

Luana sorriu emocionada, e eu segurei sua mão debaixo da mesa.

Depois do jantar, ainda à mesa, enquanto tomávamos um gole do licor, meu pai tirou um envelope do bolso e colocou sobre a toalha.

— Aqui tem um dinheirinho. É para vocês começarem a vida. Quero pagar pelo casamento também e dar entrada numa casinha. Um lugar pra vocês chamarem de lar.

— Não, pai … não precisa. — Tentei recusar de pronto.

— Ih, começou … — Ele disse, virando-se para Luana e a forçando a aceitar o envelope com um sorriso — Esse menino nunca ligou pra dinheiro. Acha que tudo se resolve com coragem e braço.

— Pai … — Protestei.

— João, cê sabe qual é meu cargo na Santa Gertrudes, não sabe?

Fiquei em silêncio. Eu sabia muito bem.

— Sou um dos encarregados gerais. — Ele continuou. — Faço parte da administração da fazenda, e ganho muito mais do que gasto. Sempre tive casa, comida, roupa lavada, tudo de graça. Juntei tudo que pude, pensando no dia em que meu filho quisesse estudar, ou formar uma família.

Ele conseguiu fazer Luana aceitar o envelope.

— Não é caridade. É amor. É meu jeito de dizer que tô com vocês, que me preocupo. E quero ver vocês felizes.

Luana se inclinou e abraçou meu pai.

— Muito obrigada, sogro. De verdade. Esse gesto … significa muito.

Foi então que ele perguntou:

— E você, minha filha, como sonha com esse casamento?

Luana respirou fundo, com aquele jeitinho simples e doce.

— Eu nunca sonhei com festa grande, vestido caro … nada dessas coisas. Com a vida que tive, o que sempre quis foi alguém que me amasse de verdade. Sempre imaginei um casamento no cartório. Rápido, prático. Só para oficializar o que já tá no coração.

Meu pai sorriu, tocou na mão dela e respondeu:

— Então vai ser do jeitinho que você quiser. E que Deus abençoe cada passo. Mas um churrasquinho, uma coisa mais simples, não faz mal a ninguém …

Naquela noite, enquanto acompanhava meu pai até a porta, e nos despedíamos com um abraço apertado, senti que algo tinha mudado dentro de mim. Era como se as feridas estivessem começando a cicatrizar completamente.

A família que eu nunca imaginei que tanto precisava, agora, era real. E ali, naquela mesa simples, entre histórias engraçadas, um envelope amassado e olhares de carinho, nasceu um novo capítulo da minha vida.

A semana passou num piscar de olhos. O corpo estava firme, mas a cabeça fervia. Zeca Barreto, meu treinador, me chamou no fim do treino de quinta-feira e deu o recado:

— Tá pronto, João? Amanhã, estrada. A gente parte cedo para Santa Vitória. Também vamos cuidar do transporte dos touros e dos cavalos. Vê se dorme cedo.

Eu ri, meio sem graça.

— Pronto eu não sei se tô, treinador, mas vamos assim mesmo.

Ele me deu um tapa nas minhas costas, daqueles que empurra a alma para frente.

— Rodeio não é pra quem tá pronto, João. É pra quem tem coragem de montar mesmo com medo.

Naquela noite, foi difícil fechar os olhos. Ainda mais sem ver a Luana. Já tínhamos nos despedido na noite anterior e eu estava muito ansioso.

O sol ainda bocejava no céu quando a gente partiu. Três caminhonetes, e dois caminhões reboques carregando os melhores bichos da Três Barras. Cavalos de raça, touros bravos, famosos na região, adversários temidos pelos peões. No banco da frente, Zeca Barreto mexia no rádio, procurando um sertanejo raiz. No banco de trás, eu encostei a cabeça na janela e tentei acalmar o peito.

Santa Vitória não era longe, mas parecia outro mundo. Cidade maior, arena enorme, arquibancada cheia e placas com nomes de patrocinadores por todo lado. Quando a gente chegou, o movimento já era intenso. A feira agropecuária começava naquele dia. Os caminhões grandes descarregavam equipamentos, animais e os gritos ecoavam entre os corredores de terra batida e lona.

Quando descemos, fui andando meio abobalhado, olhando tudo. E aí, vi ele: Mateus Mello. Camisa xadrez, calça justa e chapéu bem ajustado na cabeça. Campeão de várias etapas nacionais e internacionais. Um monstro da arena, meu ídolo. Eu congelei por um segundo.

— Vai lá, João. — Zeca Barreto, me cutucou. — Agora é a hora de parar de ser só fã. Vai aprender com quem vive disso. Pega umas dicas.

Me aproximei. A mão suava, o coração tamborilava nas costelas.

— Senhor Mello … desculpa incomodar. Meu nome é João, sou da Três Barras. Vou montar pela primeira vez amanhã.

Ele sorriu, gentil.

— Nada de senhor, rapaz. Me chama de Mateus. A primeira vez a gente nunca esquece. O frio na barriga é o que faz a gente lembrar que tá vivo.

Ele me deu um aperto de mão firme e puxou uma caneta do bolso. Pegou a aba do meu chapéu, assinou ali mesmo.

— Aqui ó. Um autógrafo e um conselho: sente o bicho. Touro ou cavalo, ele fala com o corpo. Se tu entrar querendo dominar, vai pro chão. Mas se entrar pra entender, tem mais chance de ficar os oito segundos.

— Obrigado … de coração. — Falei, ainda sem acreditar.

À noite, dormi mal. Cada vez que fechava os olhos, sonhava com a arena. O grito do juiz, o sino tocando, o bicho pulando e eu tentando não cair. Acordei antes do sol, coração acelerado. Me vesti devagar, concentrado. Calça justa, fivela, camisa da Três Barras com meu nome nas costas. No espelho da caminhonete, ajeitei o chapéu autografado.

Cuidei dos bichos, pois mesmo como competidor, o trabalho não parava. Passeei pelos stands, conheci pessoas … Quando cheguei na arena, à noite, o lugar já pulsava. As arquibancadas enchendo, a narração animada no sistema de som, cheiro de churrasco e adrenalina.

A música tocava alto, ecoando por todo lugar:

“Em festa de rodeio

Não dá pra ficar parado

Tem cowboy e boiadeiro

E mulher pra todo lado

Em festa de rodeio

Coração atravessado

Eu sou um peão no meio

Desse povo apaixonado

Hey, hey, hey, companheiro

Quem quiser ser o primeiro

Tem que ter o braço forte …”

E então, olhei pra cima. Ali, no meio da arquibancada de madeira, vi eles: Luana, sorrindo e com os olhos marejados. Seu Antônio, com a camisa bem passada e chapéu novo. E mais gente da Santa Gertrudes. A Dona Nilda cozinheira, mãe da Silvinha, o Zé Balaio, e até o Lequinho, que vivia enchendo o saco quando eu era moleque. Estavam todos ali. Por mim.

Meu peito encheu. Não era só minha estreia. Era meu momento. E eu não ia desperdiçar.

— João, tá chegando a sua vez. — Disse Zeca Barreto, se aproximando com a prancheta na mão. — Já vão sortear os cavalos. Xucros primeiro, touros fecham o evento.

Assenti com a cabeça, o coração já ensaiando os oito segundos. Eu estava ali. De corpo, alma e coragem. E quando olhei mais uma vez pra arquibancada, Luana colocou as mãos na boca e gritou:

— Vai com tudo, meu amor!

Sorri e fui. Porque não era mais só um sonho de moleque. Era realidade. E estava só começando. O coração batia no compasso da bota que batia no chão. Era o grande dia. Ou melhor, a grande noite.

— JOÃO GABRIEL, DA FAZENDA TRÊS BARRAS ... VAI MONTAR O VENDAVAL! — Anunciou o locutor com aquele vozeirão, animado.

Ouvi alguns assovios da arquibancada. Vendaval era conhecido na região. Cavalo tinhoso, daqueles que parece sentir prazer em derrubar peão. Minha garganta secou.

Tomei minha posição no brete, me ajeitando no lombo do Vendaval, respirando fundo. Montei com o que restava de calma. A contagem começou.

— Três, dois, um ... porta!

O bicho saiu feito um raio. Deu dois trancos e eu voei feito boneco de pano. Nem vi de onde veio o chão. A areia me engoliu, o sino nem teve tempo de ecoar direito. Me levantei cuspindo poeira, com o orgulho ferido. Tirei o chapéu e joguei no chão com raiva. A frustração maior era na alma.

Assisti os outros dois peões da Três Barras fazerem bonito, aplaudidos, bem avaliados, saindo debaixo de gritos e assovios animados. O treinador Zeca Barreto apenas me lançou um olhar sério, mas respeitoso. Não veio cobrar. Sabia que eu já estava me cobrando demais.

Mais tarde, me juntei a Luana e ao meu pai, que estavam sentados num canto da arquibancada. Luana me olhou com ternura e passou a mão no meu rosto.

— Foi só uma queda, João. Acontece com os melhores.

Meu pai completou:

— Se fosse fácil, qualquer um faria, filho. É caindo que o peão aprende onde pisa.

Assenti, mas sem conseguir esconder o gosto amargo da derrota. Passei mais um tempo com eles, me recuperei com café e conversa boa. Mas logo tive que voltar para o alojamento. No mundo do rodeio, descanso é parte do preparo.

A noite foi pior do que a montaria. Revivia cada segundo da queda, cada sacolejo, cada torção do Vendaval. Me levantei várias vezes, fui tomar água, caminhei pelo pátio da arena iluminada por refletores já apagados. O silêncio pesava. O fracasso martelava na mente.

No dia seguinte, acordei cedo. Zeca Barreto já me esperava encostado na cerca do curral dos touros, braço cruzado, olhar firme.

— Dormiu mal, né?

— Nem me fala, seu Zeca.

Ele me olhou de cima a baixo, depois apontou com a cabeça para os animais que a gente precisava cuidar.

— Bora trabalhar. Esses bichos não sabem o que é vitória ou derrota. Só conhecem rotina.

Tratei dos touros e dos cavalos, escovei pelagem, limpei bebedouro, ajeitei sela e arreio. Cuidar dos animais sempre me trazia um tipo diferente de paz. Era como se eu voltasse a mim mesmo. Entre um serviço e outro, almocei com Luana e meu pai. Ela me pegou pela mão por baixo da mesa, sorriu e disse:

— Tô contigo, amor. Independente do resultado. Eu acredito em você, é só o seu primeiro rodeio.

Respirei fundo. Aquela mulher era o meu porto seguro. Não ficamos juntos por muito tempo, pois o segundo dia do evento estava prestes a começar.

O sol começou a cair, a sombra das arquibancadas se alongando, e o clima da arena mudando de novo. Mais um dia de lotação total. Era a vez dos touros. O sorteio começou e eu fui um dos últimos a ser chamado.

— JOÃO GABRIEL, DA FAZENDA TRÊS BARRAS ... MONTARIA NO REDEMOINHO! BOA SORTE, GAROTO! — O vozeirão do locutor anunciou o resultado do sorteio.

Outra vez, ouvi reação da plateia. Redemoinho era bicho velho de arena. Pula alto, roda rápido e nunca repete movimento. Até os peões experientes suavam com ele.

Olhei pro Zeca.

— Tô começando a achar que o sorteio me odeia ...

Ele deu uma risada curta e respondeu:

— O sorteio é justo, João. Mas Deus escolhe quem tá pronto para encarar.

Eu apenas respirei fundo, cocei o queixo e fui até a baia do Redemoinho. Aquele seria o meu duelo.

Fiz minha oração e olhei uma última vez para Luana na multidão. Redemoinho já estava no brete quebrando tudo: cabeça batendo na madeira, respiração forte, as ventas abrindo e fechando como fole. Só de chegar perto eu sentia o chão vibrar.

Zeca Barreto veio atrás de mim, mão firme no meu ombro.

— Respira. Aperta a corda e lembra: perna fechada, calcanhar embaixo, peito pra frente. Se ele rodar, vai com ele. Não trava o quadril. Ontem já é passado. Só você pode escrever sua história, João. Vai com tudo.

Assenti. Ajeitei a luva, bati a poeira do jeans, pulei pra cima da cerca e entrei.

No lombo do Redemoinho, o mundo encolheu. Só existia couro, corda, mão presa, mão livre, e o barulho do próprio sangue no ouvido.

— Quer mais resina? — Perguntou o rapaz da equipe de arena.

— Assim tá bom. — Respondi, enrolando a corda no punho, buscando meu ponto. Ajustei o assento. Senti o animal respirar. Ele vibrou. Eu também.

Inclinei a cabeça para o porteiro: Tô pronto. Lá em cima, o locutor soltou a voz:

— ATENÇÃO ARENA DE SANTA VITÓRIA! VEM AÍ O ESTREANTE DA FAZENDA TRÊS BARRAS … JOÃO GABRIEL! PRIMEIRA PARTICIPAÇÃO EM MONTARIA DE TOUROS! E NÃO É QUALQUER BICHO, MEU POVO … É O REDEMOINHO!!! SEGURA O CHAPÉU!

— 3 … 2 … 1 … PORTA!

O brete abriu num coice de trovão. Redemoinho explodiu para a frente, subiu alto e já desceu rodando para a esquerda. Eu afundei no assento, apertei a perna na paleta, queixo no peito. Ele bateu o lombo, pulou de novo, jogando a garupa para cima.

Um segundo, dois segundos … Minha mão livre desenhou o ar, equilibrando, o chapéu já tinha voado. Ouvi a arquibancada em coro, longe.

— OLHA AÍ, OLHA AÍ! O MENINO NÃO VEM PASSEAR NÃO! — Gritou o locutor. — REDEMOINHO RODANDO CURTO, MUITO CURTO! O BICHO É BRAVO”.

Três segundos … no terceiro salto ele trocou o giro, da esquerda para a direita sem aviso. Quase me arrancou. Senti o corpo esticar, rangi os dentes, recuperei com a perna de dentro.

— Encaixa, João. Vai com ele, não contra. — Zeca Barreto nunca saia do seu papel.

Quatro segundos … cinco segundos … o tempo derretendo. O touro deu um pulo seco, bateu com as patas dianteiras, afundou e saiu em linha reta antes de rodar novamente. Colei. Respiração curta.

— TEM PEÃO! TEM PEÃO! SEGURA ESSE MENINO QUE ELE QUER FICAR! REDEMOINHO ESTÁ FURIOSO. — Eu ouvia a locução, mas conseguia me manter concentrado.

Seis segundos … sete segundos … o mundo virou luz e poeira. Meu braço queimava, a corda mordendo a luva. Eu gritei. Nem sei se para o Redemoinho, para mim mesmo, ou para Deus.

O sino tocou. Oito segundos.

Soltei. Saltei para o lado, os salva-vidas da arena já desviando o touro. Rolei, me levantei inteiro. A arena veio abaixo.

— JOÃO … JOÃO … JOÃO …

Joguei o punho para o alto. Peguei o chapéu no chão, bati a poeira, e antes de qualquer coisa procurei a arquibancada. Luana estava de pé, chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Meu pai aplaudia com o chapéu na mão.

Corri para a cerca. Luana se inclinou. Eu a abracei por cima, a esmagando contra as tábuas, rindo feito doido.

— Eu consegui, amor! — Falei no ouvido dela.

— Você conseguiu! — Ela chorou, beijo rápido na boca, depois outro, mais demorado. — Eu sabia! Meu campeão!

— Isso é por você. Por nós.

Meu pai encostou do lado.

— Oito segundos valendo uma vida inteira, filho. Orgulho danado de você.

Me recompus e voltei para o centro, aguardando minha nota. Os juízes demoraram com as placas. Quando saiu o resultado, o locutor anunciou:

— NOTA PARA JOÃO GABRIEL, PEÃO DA FAZENDA TRÊS BARRAS … OITENTA E DOIS PONTOS E MEIOOO!

Fiquei em quarto na classificação final da montaria em touros do evento amador preliminar. O segundo e terceiro foram meus companheiros da Três Barras e o campeão, como todos esperavam, foi um peão local, o favorito para o torneio. Para mim, de qualquer forma, parecia título mundial.

Mais tarde, já perto dos bretes, alguém me tocou nas costas. Me virei e era o Mateus Mello.

— Bom trabalho, garoto. — Disse ele, com um sorriso sincero e aquele tapa no ombro que pesa feito medalha. — Redemoinho não dá mole pra ninguém. Você tem talento pra coisa. Segue firme.

— Obrigado, Mateus. De verdade.

Ele apontou para minha mão.

— E solta mais tarde no próximo. Tu ainda tinha giro pra aproveitar. Mas pra primeira, foi bonito de ver.

Eu sorri. Guardaria aquilo comigo pra sempre.

Naquela noite, após comemorar com o pessoal da Três Barras, depois de ter jantado com Luana e meu pai, quando me deitei no catre improvisado do alojamento, o corpo doía em tudo quanto é lugar. Mas dentro do peito, só ardia a alegria. Eu não era mais o filho do capataz que vivia na sombra dos outros. Agora, a arena sabia meu nome. E o mundo do rodeio, pelo menos ali na nossa região, tinha acabado de me conhecer.

Revisão e consultoria: Id@

Continua ...

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Comentários

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Parabéns mais um capítulo rico em emoção esperando ancioso pelo próximo.

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História rica e envolvente !! Parabéns, 3 estrelas merecidas !!

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Meu caro... serie interessante, mas ainda não chegou aquele ápice de tensão característicos que gera todo enredo da série. Será que João vai perder o amor de sua vida? Vem por ai perda, vingança e redenção? Ansioso aqui.

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Mais um excelente capítulo emocionante

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Ótimo capitulo! O João tá começando a fazer seu nome nos Rodeios.

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