Eu sou Paulo, Paulinho para os íntimos, Amorzin para a Emilinha, pelo menos eu espero ser um dia. Sou filho do Ciro, que é filho do Tião Gumercindo, irmão do Zé Gumercindo da Venda Nova. Morei toda a vida em Passa-Vinte, no interiorzão de Minas Gerais. Começo estas linhas com o coração ainda inquieto, como se o rio que corta nossa cidadezinha tivesse resolvido correr dentro de mim e pior, estivesse tentando me afogar. Não sei se o que conto no canto do meu quarto neste conto aqui é verdade ou se meus olhos, traiçoeiros como são, pintaram cores que nunca existiram, mas conto no meu canto, porque contar é o único jeito de dar forma ao que me atormenta e se o leitor, ao fim, me julgar tolo ou ciumento demais, que seja. Talvez só o Bentinho, aquele mesmo que vocês conhecem tão bem, esse mesmo, talvez só ele me entenderia.
Passa-Vinte é um lugar onde o tempo parece ter preguiça. Ah, antes que vocês me perguntem por que “Passa-Vinte”, eu explico: certa vez, faz um tempão já, muito antes do meu vô Tião ter vindo para essas bandas, havia um valentão chamado Timóteo Tonico. Certa vez, a comunidade, cansada da valentia dele, contratou um outro valentão, chamado Paulão Sutileza. Vou resumir, contrataram o Paulão, de quem recebi o nome, para “convencer” o Timóteo a sumir. Acabou que os dois se uniram e acabaram enfiando toda a valentia na cara da comunidade. Qual solução eles adotaram para terem paz? Pagaram Vinte Contos de Réis para eles para se virem livres deles. Entenderam? Passa-Vinte...
Mas voltando a minha sina... Os morros daqui abraçam a cidade com um verde que não se cansa, inundados pelo cheirinho de café coado das cozinhas... Há! E o carro de boi então? Range como se tentasse cantar os hinos da igreja do Padre Genor. Foi aqui que cresci, ao lado de Emilinha, filha do Zé Maria, minha amiga de infância, minha companheira de correrias, de jogos de bola na rua de terra, de partidas de bolinha de gude (nunca ganhei da danada!), de risadas divididas sobre o pão de queijo na merenda da escola. Éramos crianças e o mundo era simples, mas agora, aos 18 anos, com o corpo mudado e o coração atabalhoado, eu via Emilinha com outros olhos. Nu! Ela ficou uma moça danada de bonita, com aqueles cabelos pretos que dançavam no vento e um sorriso que parecia acender fogueiras. Agora ela não era mais a menina de tranças, era mulher, e eu, uai, não sabia o que fazer com isso.
Nosso namoro, se é que posso chamá-lo assim, começou tímido, como tudo em Passa-Vinte. Passeios na praça, mãos dadas no coreto, beijos que mal duravam um suspiro. Eu queria mais, mas o que era esse “mais”? Nas noites quentes, deitado na cama do meu quarto, eu imaginava coisas que me faziam corar, mas não tinha coragem de dizer, muito menos de fazer. Emilinha, com seu jeito decidido, parecia esperar algo de mim, algo que eu não sabia dar. Foi por isso que procurei meu pai, Ciro, homem rústico, de poucas palavras, mas com olhos que pareciam enxergar além.
Lembro bem como se fosse hoje...
Era uma tarde de sol forte e meu pai estava lá no quintal de casa, martelando a cabeça de uma enxada com a força de quem doma a terra. Eu me aproximei, coçando a nuca, o rosto ardendo de vergonha e me sentei ao seu lado. Ele me olhou e nada disse, continuando seu “martelamento”. Depois de umas dez coçadas de cabeça ele me encarou e foi direto:
- Desembucha, menino!
- Pai, posso perguntar um trem procê? – Minha voz tremia mais que vara verde.
Ele cerrou os olhos já pensando que eu tivesse feito alguma besteira. Igual a mim, também coçou a cabeça e disse:
- Andou fazendo besteira, Paulinho?
- Ara! Não, pai. Claro que não, sô!
Ele então deu um meio sorriso, coisa rara em seu Ciro e disse:
- Fala, Paulinho. Que gastura é essa, menino?
Eu me ajeitei no toco de madeira onde estava sentado, mexendo os pés na terra e falei, gaguejei na verdade:
- É a Emilinha, pai. Eu... Eu... gosto dela... gosto muito, mas... Ara! Eu num sei como... como fazer ela gostar de mim... de verdade, sabe? Além de namorar.
Meu pai parou o martelo no ar, com uma ironia no olhar que me fez sentir menor:
- Uai, menino, tá com... Peraí! Deixa eu ver se entendi. Cê tá querendo levar a moça pro mato e fazer o que eu tô pensando?
Fiquei roxo e a gagueira aumentou. Pigarreei, reunindo forças ancestrais e disse:
- Né nada disso não, pai. Ô! Quer dizer, não é isso... ainda. É que num sei como é essas coisa de homem e mulher. Ela é tão... tão formosa, tão decidida... tô com medo de fazer besteira.
Ele riu, coisa ainda mais rara em se tratando de seu Ciro, mas era uma risada seca que ecoou no terreiro. Senti então um tapa em minhas pernas:
- Tu é jovem, Paulinho, mas num é bobo não. Essas coisa é natural, mas tem que ter jeito, ter respeito. A Emilinha é moça direita, filha do Zé Maria. Tu acha que ela vai se jogar nos teus braço sem tu mostrar que é homem de valor?
- E como que eu faço isso, pai? – Insisti, com o coração apertado só de pensar que ela poderia não querer ficar comigo: - Tu já passou por isso, né, pai? Como o senhor fez com a mãe?
Ciro limpou as mãos na calça de brim, os olhos fitando um morro distante enquanto um discretíssimo sorriso, meio entristecido é verdade, surgia em seus lábios, como se as lembranças de um passado gostoso ainda doessem:
- Tua mãe, a Rosinha, era um trem danado de bão, fio, mas não foi fácil. Eu levava flor, contava história, fazia ela rir. - Calou-se por um instante, introspectivo em si: - E, ó, menino, às vezes é no jeito que tu olha, no jeito que tu toca a mão dela, que ela sente o que tu carrega. Só que tem que ser sem pressa, que mulher é como café: tem que ir devagar, pelas beiradas, pra ficar bão.
Suas palavras mais me confundiram do que orientaram. Será que a Emilinha esperava isso de mim? Ou será que, no fundo, ela ria da minha inexperiência, como minha mãe riu do meu pai?
- E se ela num me quisé, pai? E se ela achar que sou um bobo? - Perguntei.
Ciro me deu um tapa no ombro, com um olhar que misturava pena, mas o olhar, este sim parecia me desafiar a tentar algo que eu mesmo não sabia o quê:
- Uai! Se ela não quisé, tem quem queira. - Deu uma risada curta, pigarreou e se corrigiu: - Brincadeira, menino. Se ocê qué, batalha que ela também vai querer. Tu é quem vai ter que aprender, Paulinho. Homem de verdade num é só o que sonha, é o que fala, o que promete, o que faz. Qué saber? Vamo lá na venda do Seu Zé tomar um refresco que eu vou te contá uma história de quando eu tinha a tua idade, mas ó, prestenção, que eu num sô homem de repeti.
A venda do Seu Zé Formoso era um lugar simples, onde o povo se juntava pra tomar pinga e jogar conversa fora. Nos fundos, tinha um rancho onde Seu Zé aprumou uma pista de bocha e onde algumas mesas serviam para a jogatina dos mais velhos, absorvidos em rodadas de truco e dominó. Assim que entramos, foi impossível não reconhecer “Vaca Estrela e Boi Fubá”, uma moda de viola das boas entoada por Pena Branca e Xavantinho. O cheiro de linguiça de porco caseira, sendo fritada na banha pela Dona Maria, esposa do Seu Zé, já subia pelas ventas. Apesar de ser seu sobrenome, Seu Zé nunca gostou que a gente a chamasse pelo nome dela com o sobrenome dele. Ele dizia que era falta de respeito chamá-la de Dona Maria Formosa, apesar de que não era mentira, porque ela era bonita que só.
Sentamos num banco de madeira e Seu Zé já trouxe uma branquinha que ele escondia a sete chaves para servir ao meu pai. Depois, voltou com dois guaranás para a gente e uma porção de mortadela fatiada, estes a pedido do meu pai. Assim que ele se afastou, o velho Ciro começou a falar. Contou da primeira festa de São João em que ele se decidiu que queria mais do que a amizade da minha mãe, da fogueira que iluminava o rosto dela, deixando-o com nuances de vermelho que ele não sabia se era do fogo ou da vergonha quando ele se declarou, do primeiro beijo atrás da sacristia da igreja, flagrado pelo padre Bento que lhe custou quinze Ave-Marias e dez Padre-Nossos:
- Foi um trem danado de bão, fio. Nu! Vou esquecer nunca… - Disse ele, com um brilho saudoso nos olhos.
Enquanto eu ouvia suas histórias, encantado por um sentimento que meu pai nunca demonstrara antes, eu me perguntava: “Será que Emilinha sentiria o mesmo por mim? Ou será que seus olhos, tão cheios de mistério, guardavam outros sonhos, talvez outros olhares?”
Do outro lado da cidade, Emilinha estava na varanda da casa dos seus pais, onde o Seu Zé Maria, descascava milho verde com a mãe dela, Dona Clara. Eu não estava lá, claro, mas imaginava ela, com aqueles cabelos pretos caindo em ondas, os olhos que pareciam esconder um segredo. Será que ela falava de mim? Será que ria do meu jeito atrapalhado? Dona Clara, com sua sabedoria indígena que vinha do sangue de sua mãe, talvez estivesse lhe dizendo algo sobre homens jovens, sobre paciência, sobre o valor de uma moça direita, mas Emilinha, com seu riso fácil e seu jeito decidido, o que estaria pensando? Eu nunca saberia e isso me roía como cupim em madeira velha.
Na noite do arraial de São Pedro, a praça da igrejinha estava viva, com bandeirinhas coloridas, barracas de canjica, quebra-queixo, doces diversos, quentão e vinho quente. Além disso, Seu Alaor fazia um acordeão chorar modas da mais pura poesia do interior, o que duraria até o padre dormir, quando um forró dos bão faria a poeira subir. Eu, todo arrumado com uma camisa xadrez e besuntado num perfume forte do meu pai, estava com o coração na boca. Emilinha chegou com um vestido florido que abraçava suas curvas, o cabelo solto brilhando sob as lanternas. Senti como se os olhos de todos a admirasse quando chegou, mas quando me viu, foi para mim que ela sorriu, com um brilho nos olhos que era ao mesmo tempo convite e desafio:
- Uai, Paulinho! Tu tá bonito, sô? - Disse ela, com um tom que me fez corar.
Mas havia algo naquele tom, uma ironia leve, como se ela soubesse do meu nervosismo e se divertisse com ele:
- Tu que tá, Emilinha. - Respondi, a voz falhando: - Parece uma flor que Deus caprichou e vô te dizê, se ele fez uma mais bonita, guardou lá no céu para ele.
Ela riu, chegando mais perto, o perfume de jasmim me envolvendo como uma brisa quente:
- Ara! Para de falar besteira e vem dançar comigo, ou cê vai ficar só me olhando a noite inteira com essa cara de bobo?
Deixei ela me puxar pra pista, onde o povo já rodopiava ao som de uma quadrilha, ainda sob os atentos olhos do Padre Cláudio. Cada giro trazia ela mais perto, o roçar do vestido dela contra mim, o calor da mão dela na minha. Mas, enquanto dançávamos, eu me perguntava: “era amor aquele brilho nos olhos dela, ou apenas o reflexo da fogueira? Será que ela dançava comigo porque queria, ou porque eu era o único ali, mesmo não sendo?”
Dançamos até a garganta secar. Depois, sentamos perto da fogueira. Ela estava tão perto que eu podia sentir o calor do ombro dela contra o meu. Não sei até hoje de onde tirei coragem:
- Emilinha, tu gosta de mim de verdade?
Ela me encarou com olhos arregalados ainda com um pé de moleque na boca. Depois, mastigou-o em silêncio, ainda me encarando, esfregou os lábios um no outro e esse gesto me fez tremer, mais ainda depois da resposta:
- Gostar eu gosto, Paulinho, mas ó só, tu tem que mostrar que é mais que o menino que corria comigo no quintal. Quero um homem que me faça sentir... que sou única. Além do mais, cê sabe como é meu pai… Tu tem que mostrar que vai conseguir cuidar de mim, senão…
Sua voz tinha um peso, uma promessa, mas também uma sombra. “Única pra quem? Pra mim?”, pensei, encarando-a, enquanto engolia a seco, mas foi esse “senão” que quase me derrubou, afinal, então havia a possibilidade de outro ocupar um lugar em seu coração. E se havia, quem seria?
Os dias passaram e eu tentava ser o homem que ela queria e que o pai dela aceitaria. Levava flores, ajudava o Seu Zé Maria na roça, arriscava versos tortos que faziam ela rir. Tudo parecia ir bem conosco, nossa proximidade se tornando mais próxima a cada dia. Mas então chegou a tempestade e ela tinha nome: Léo, melhor dizer Leonardo porque nunca quis intimidade com ele, o primo de Emilinha, e com ele a dúvida que me arrancou o sossego.
Leonardo chegou da cidade grande num jipe reluzente. Tinha 22 anos, alto, forte, cabelo penteado com gel pra trás, camisa chique que parecia gritar “sou de Beagá”. Tinha um sorriso de quem sabia que chamava a atenção, um charme que beirava a arrogância. Quando abraçou Emilinha, com um “Prima, tu tá cada dia mais bonita!”, vi nos olhos dela um brilho que me furou a alma como um punhal. Era admiração? Era saudade do que ela nunca conheceu? Ou era algo mais, algo que eu, com meu jeito simples, nunca poderia dar?
- E aí, Paulo!? Então, tu é o namorado da minha prima? - Perguntou o talzinho, apertando minha mão com força e o sorriso dizendo “sou melhor que tu”.
Me senti um parvo e murmurei algo, tentando parecer firme, mas me sentia pequeno, quase como um passarinho diante de um gavião. Emilinha tentou me acalmar dizendo que ele ficaria só uns dias, “tinha vindo de férias, descansar”, mas nada me acalmava. Só de tá perto dele me dava uma gastura, principalmente porque ele não desgrudava da Emilinha.
Os dias seguintes foram um tormento. O tal do “Léo” ou “Léozinho” estava em todo lugar: contando histórias de BH que faziam Emilinha rir, ensinando ela a dançar um tal de “sertanejo universitário” sem desgrudar da cintura dela, ajudando na roça com uma energia que o Seu Zé Maria desconfiou no começou, mas depois passou a elogiar. Eu, de longe, via tudo e o ciúme me comia vivo, fazendo sangrar pelos olhos. Será que Emilinha olhava pra ele como olhava pra mim? Será que, naquelas risadas, havia um desejo que ela não confessava?
Numa tarde, na venda do Seu Zé, desabafei com meu pai:
- Pai, esse Léo tá me tirando do sério. Ele fica grudado na Emilinha, falando besteira, fazendo ela rir e… e se ela gostar dele? Ele é da cidade grande, tem carro, sabe falar bonito... Eu num sou nada disso!
Seu Ciro, meu pai riu, com aquela ironia que parecia me desmontar:
- Uai, Paulinho, tu tá parecendo cachorro que late pra sombra! A Emilinha gosta de tu, menino, ou tu acha que ela é moça de se jogar no primeiro metido que aparece? Vai lá e mostra quem tu é, sô! Ciúme é veneno: na dose certa, esquenta; mas se for demais, mata.
Numa noite em que o Padre Cláudio teve que ir até a diocese na longínqua Pouso Verde de Cima, Seu Alaor anunciou um forró fora de época. Nessa noite, com a praça iluminada e cheia de vida, Emilinha estava com um vestido azul que parecia feito pra me torturar. Leonardo, claro, também estava lá, sussurrando algo no ouvido dela enquanto dançavam. Meu sangue ferveu. Lembrei das palavras do meu pai e caminhei até eles, com o coração batendo como tambor:
- Com licença, Léo, mas essa dança é minha… - Falei, tentando soar firme, mas com a voz levemente trêmula: - E a namorada também!
Leonardo levantou uma sobrancelha, com aquele sorriso de quem se diverte com o jogo:
- Relaxa, Paulinho, é só uma dança. A prima não vai fugir “docê”. - Retrucou num tom que para mim foi pura caçoada.
Emilinha olhou para ele e depois para mim, depois novamente para ele, com um meio sorriso que eu não entendi direito:
- Deixa, Léo, o Paulo tem razão.
Ela então se soltou dos braços dele, mesmo ele tentando ainda segurá-la, e veio pra mim. Passamos a dançar e eu tentei porque tentei olhar nos olhos dela a verdade. Mas o que vi? Não sei! Só sei que tinha algo, mas não sabia se era amor ou apenas pena do pobre menino ciumento da roça?
Depois, num canto perto da igreja, eu a beijei, com a urgência de quem queria apagar o Léo da memória. O beijo dela era quente, mas havia algo que escapava, como se uma parte dela não estivesse ali:
- Tu tá aprendendo, Paulinho, tá ficando quase bom.
Uai! E como ela saberia que o meu beijo está ficando “quase bom” se ela não havia beijado outro, ou havia? Pronto! Ó o Leonardo aparecendo para me ferver as ideias de novo.
Léo foi embora dias depois, com uma desculpa qualquer sobre um trabalho e a tal faculdade em BH. O povo de Passa-Vinte riu do “moço da capital” que não aguentou o sossego do interior. Eu não. Estranhamente, o que eu sentia não era alívio, mas um vazio, um pressentimento que me roía como cupim em madeira velha. Emilinha, desde aquele forró, estava diferente. O riso dela, antes tão fácil, agora vinha com um atraso, como se carregasse um peso.
Os olhos dela, que outrora me acendiam fogueiras, agora pareciam guardar um segredo que eu não ousava questionar. Será que Léo, com seu jeito de cidade grande, tinha deixado mais que histórias e risadas? Será que, naquelas noites em que eu não estava, sob o pretexto de conversas na varanda, algo mais havia acontecido entre eles? Eu me perguntava isso, mas a coragem de perguntar a quem realmente eu precisava, me faltava.
Moça direita, filha do Zé Maria e dona Clara, Emilinha era um espelho de virtude em Passa-Vinte. Aqui, onde as mulheres se guardam com o zelo de quem protege a própria alma, um passo em falso, tal como um beijo roubado, um toque proibido, ou, Deus me livre, algo que só se entrega ao amor verdadeiro, seria um fardo pesado demais. E, agora, no entanto, havia algo no jeito dela, na forma como desviava o olhar quando eu falava de nós, que me fazia imaginar o impensável. Teria ela, por um instante de fraqueza, cedido ao charme daquele talzinho? Ou seriam só meus ciúmes, traiçoeiros como meus olhos, que pintavam sombras onde só havia saudade? E por que haver saudade de alguém que conheceu tão pouco?
Na noite de sábado, seguinte a fuga do tal Léo, sob uma lua cheia que parecia zombar da minha inquietação, fomos à beira do rio, como tantas vezes. Emilinha estava linda, com um vestido leve que a brisa fazia dançar, o perfume de jasmim me envolvendo como uma promessa que eu temia quebrada. Havia uma urgência nos gestos dela, um tremor na mão que segurava a minha, como se quisesse apagar um erro ou se agarrar a algo. Quando me beijou, o ardor dos seus lábios me envolveu, mas também trouxe um traço de dúvida: amor ou súplica?
- O amor é um trem danado de complicado, né, Paulinho? - Disse ela, a voz baixa, os olhos fixos no rio, como se a água pudesse carregar o que ela não dizia.
Seus dedos apertavam os meus, mas logo afrouxaram, como se hesitassem:
- É!? - Perguntei, com o coração na garganta. - Num sei. Por que tá dizendo isso, Emilinha? Aconteceu alguma coisa?
Ela hesitou, o olhar caindo pro chão, as mãos brincando com a ponta do vestido, como se buscasse palavras que não vinham. Por um instante, tive a impressão de que ela ensaiou me dizer algo, talvez um segredo que me partiria o coração:
- Eu... É que... - Começou, mas parou, dando uma risada baixa e quase chateada: - Uai, Paulinho, tu vê mistério em tudo. Só tô pensando alto, só isso.
O dito ficou pelo não dito. Não olhou pra mim talvez para não fraquejar. Apenas ficou encarando a água e o silêncio que veio depois se tornou mais pesado que qualquer palavra. Era remorso, eu sabia. Ou será que eu só achava? Ou era apenas o reflexo da lua, brincando com os meus medos? As promessas entre nós, naquela noite, foram frágeis, como a brisa que soprava o vestido dela. E eu, pobre tolo, não sabia se o amor que ela dizia sentir era meu ou do fujão da capital.
Será que Léo, naquele abraço de “prima, tu tá cada dia mais bonita”, tinha roubado algo que era meu? Ou seria eu, com meu ciúme, que construía um rival onde só havia um primo falante? Bentinho, lá nas páginas de um tal Machado, talvez risse da minha sina, ou talvez me oferecesse um ombro, pois ele, mais que ninguém, sabia o que é amar sob a sombra da dúvida.
Na manhã seguinte, meu pai, afiando a enxada no quintal, me viu passar com o olhar perdido e não resistiu à sua ironia:
- Tá virando homem, Paulinho? Ou ainda tá correndo atrás do vento?
- Tô tentando, pai. - Respondi, com um sorriso torto: - Mas a Emilinha é um mistério que tá me deixando louco.
Ciro riu, com aquele jeito que parecia enxergar além dos morros:
- Mulher é rio, menino. Tu acha que conhece, mas o fundo? O fundo ninguém vê e às vezes, Paulinho, nem elas mesmas sabem como chegar lá.
Agora, olhando pros morros de Passa-Vinte, me perguntava: Emilinha era minha ou seu coração já pertencia a outro? O ciúme que Léo trouxe agora gritava mais alto, e eu já não sabia se amava, se temia saber que não sou amado, ou saber que sou amado, mas já fui passado pra trás por um espertalhão da cidade grande. Teve um homem que certa vez disse um negócio bonito demais: ser ou não ser, eis a questão? Então, a minha é mais ou menos nesse mesmo rumo: ficar ou não ficar? Eis a minha questão...
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