Jonas:
(vídeo)
Cauê:
Uau. Que instrumento é esse?
Jonas:
Um instrumento que está morrendo de saudades de ti. Volta quando?
Cauê:
Terça, mas vamos ficar presos no ensaio.
Jonas:
Eu viajo para Manaus na quarta, ou seja, vamos ter que nos contentar com os vídeos.
Cauê:
(vídeo)
Tipo esse?
Jonas:
Tu me entende muito bem.
***
Dois meses haviam se passado desde que o mundo ao redor deles mudara. Desde que a notícia sobre o relacionamento entre Jonas e Cauê se espalhara pelos bastidores do Boi Caprichoso, um silêncio diferente pairava entre os colegas. Havia quem demonstrasse apoio com olhares cúmplices e palavras discretas, mas também quem preferisse manter a distância, como se o afeto entre dois homens fosse algo contagioso. Jonas não se deixava abalar. O trabalho falava mais alto — e naquele ano, ele era essencial.
Com Marcílio, formava a espinha dorsal do enredo artístico da associação. Juntos, estruturaram o tema escolhido pela diretoria, revirando livros, mergulhando em conversas com mestres da cultura e modelando uma narrativa que reverenciasse a ancestralidade amazônica com inovação. Cada símbolo escolhido, cada som que comporia a trilha sonora da entrada, levava a marca dos dois.
Mas enquanto Jonas se destacava no planejamento do espetáculo, vivia uma penitência particular. Desde que seu pai decidira integrá-lo a compromissos e viagens oficiais da agremiação, pouco tempo restava para o namoro com Cauê. Videochamadas se tornaram rotina. Riam, trocavam confidências, às vezes até discutiam por saudade. Mas nenhuma tela substituía o toque. A ausência virava um vazio palpável, um espaço que nem a dança nem a música conseguiriam preencher.
E foi nesse abismo de desejo e carência que os sonhos começaram.
Na primeira noite, o quarto de hotel cheirava a madeira encerada e ar-condicionado. Jonas adormeceu vestindo uma camiseta do Boi e acordou — em sonho — sob um som estrondoso de sirene. O céu alaranjado atrás de uma nuvem de fumaça. Um incêndio tomava conta de um galpão qualquer, mas tudo perdeu importância quando o bombeiro surgiu entre a fumaça. Era Cauê, suado, fardado, segurando uma mangueira de combate ao fogo com uma mão e tirando o capacete com a outra. Os olhos intensos. A boca firme. Jonas se aproximou, tocou o uniforme ainda quente. As palavras não vieram. Só o calor, os beijos, as mãos se perdendo nos limites entre realidade e desejo. A fumaça virou névoa. O galpão virou lençóis. E ele acordou ofegante, sozinho.
Dias depois, veio o sonho do cowboy.
Jonas estava em um campo aberto, ouvindo o som ritmado de cascos. O céu era de um azul que só se via em Parintins, e uma figura montava um cavalo negro com destreza. Cauê, desta vez com chapéu, camisa aberta e calça justa. Sorriu ao vê-lo, desmontando com um salto. O sotaque parecia mais carregado no sonho, mais arrastado e provocante.
— Perdeu alguma coisa por aqui, forasteiro? — Perguntou, encostando-se no cercado.
Jonas, sem resposta, se deixou levar pela cena. Um toque no pescoço, outro na cintura. O cheiro de couro misturado ao perfume do outro. As mãos de Cauê fortes, seguras. Um beijo roubado no meio do pasto. Quando o sol começou a se por, o toque virou pressa e o corpo de Jonas cedeu ao dele sob o chapéu caído, o som dos grilos por testemunha.
E então, como se a mente pedisse mais, veio o sonho do mecânico.
Era noite. A luz do poste piscava, e Jonas caminhava por uma rua deserta até encontrar uma pequena oficina aberta. Lá dentro, o som de ferramentas e uma música antiga saindo de um rádio de pilha. Cauê, de regata branca suja de graxa, encurvado sobre o capô de um carro, olhou por cima do ombro.
— Problema no motor? Ou no coração?
Jonas não respondeu. O olhar bastava. Ele entrou na oficina como quem entra em um templo. Cauê veio até ele, as mãos manchadas de óleo acariciando seu rosto como se desenhassem algo sagrado. Se encostaram na parede. O calor do corpo, o cheiro de metal e suor, os gemidos abafados entre beijos famintos. Foi o mais curto e o mais intenso. Jonas acordou com os lençóis grudando ao corpo, o peito arfando, o nome de Cauê ainda preso na garganta.
A cada dia, mais difícil era manter o foco no trabalho. O corpo presente nas viagens e compromissos. Mas a mente? A mente ardia. E só havia um remédio possível: voltar. Ver Cauê. Sentir seu toque de novo, não em sonho, mas na carne. Porque o coração já não sabia mais fingir costume.
***
Enquanto Jonas se dividia entre alegorias e os compromissos do boi Caprichoso, Cauê vivia um martírio mais silencioso. A saudade latejava no peito como uma música que insistia em não se resolver. Cada acorde que tentava compor era atravessado pela lembrança do namorado — e pela pressão de transformar esse amor em melodia.
A música existia, sim, em sua cabeça. A melodia já estava pronta, delicada e sincera como ele desejava. Parte da letra também. Mas o medo travava suas mãos. E se Jonas não gostasse? E se todo mundo odiasse? Afinal, até então, suas canções autorais só haviam sido ouvidas por sua família — e ninguém ali tinha coragem de dizer que "Irmão Cricri", "Carequinha" ou "Meu querido, eu sou cantora" não seriam exatamente hits em Parintins.
Para piorar, os ensaios se intensificavam. O mês de junho era sinônimo de reta final, de correria, de noites mal dormidas. Criar, naquela rotina, parecia um luxo. Tudo o que Cauê queria era tempo para respirar — e ouvir a voz de Jonas no fim do dia. Entre uma viagem e outra para Manaus, sentia o cansaço colar no corpo como o calor úmido da floresta. Ao menos as últimas idas foram de avião. Uma hora de voo, uma eternidade de pensamentos.
Em um desses voos, sentado ao lado de William — um dos poucos músicos que sempre o tratava com respeito e empatia —, Cauê se pegou olhando o céu nublado pela janelinha da aeronave, antes de puxar a cortina e se afundar no assento.
— E como está a composição? — Perguntou William, com o tom calmo de quem sabia que essa pergunta carregava mais do que notas e versos.
— Está saindo. Ainda estou travado em algumas partes, mas a melodia está 100% pronta. — Respondeu Cauê, massageando as têmporas com os dedos. — Compor sempre foi um problema pra mim.
William cruzou os braços, pensativo, e então sorriu com gentileza.
— Aquele material que você me mostrou no barco, meses atrás, estava muito bom, Cauê. São poucos os músicos que têm essa sensibilidade. Não deixa esse dom escapar.
Cauê retribuiu com um sorriso tímido.
— Obrigado, Will. Você é quase um mestre Jedi da composição.
William riu, balançando a cabeça.
— Que a força esteja com o Garantido. — Disse, entrando na brincadeira. — E me conta, como está o namorado com o azuzinho?
Cauê se ajeitou na poltrona, aliviado pelo tom amigável da pergunta.
— Bem. Por causa dos ensaios técnicos, a gente tem se visto pouco, mas estamos levando. É estranho, a gente se ama, mas parece que tá sempre distante.
William assentiu, compreensivo.
— Os relacionamentos são complicados. Quando conheci a mãe do Jean, ela era dançarina do Caprichoso. Mas a gente era "orelha", ninguém se importava. Vocês são diferentes. Estão no palco, no centro das atenções. Mas continuem acreditando na verdade de vocês. A temporada dos bumbás vai acabar, e tudo fica mais tranquilo.
Antes que Cauê respondesse, uma voz se intrometeu de trás.
— Ei, Will, não coloca vinagre na cabeça do curumim!
Outro músico apareceu por cima do encosto da cadeira de Cauê, sorrindo com malícia.
— Verdade, Cauê. Meu primo Rogério é um gatinho e 100% gay. Além disso, é 100% Garantido.
William bufou, empurrando o colega de volta para o assento.
— Tu acha que só porque os dois são gays vão querer ficar juntos? Seu abestado! — Resmungou, arrancando gargalhadas dos demais. — Não escuta esses abestados, não. — Completou, olhando para Cauê com um meio sorriso.
Cauê riu também. Era bom rir. Era bom estar ali, mesmo com a pressão, mesmo com a saudade. Havia música em tudo — até na bagunça dos bastidores.
***
Milena estava se sentindo sufocada. A pressão em torno do Festival de Parintins se intensificava a cada dia, e, apesar de sua voz estar mais afinada do que nunca, o clima tenso nos bastidores começava a corroer sua motivação. A cantora sabia que aquela era sua grande chance de brilhar, de conquistar seu espaço definitivo no Garantido — e não permitiria que nada estragasse isso. Por isso, se entregava de corpo e alma aos ensaios, dia após dia, madrugada adentro.
No estúdio, quase dez mil páginas de planejamento passavam por suas mãos e olhos atentos. Era um trabalho coletivo, mas exigente. Cada toada, cada verso, cada passo da apresentação precisava estar cravado na alma dos artistas. No Bumbódromo, o papel de cada um era fundamental: o apresentador funcionava como um guia para o público, enquanto o levantador de toadas e o amo do boi conduziam a emoção e o espetáculo. Gabriel Pontes, o amo do boi Garantido, assumia o posto com entusiasmo. Entre versos e provocações, ele se divertia atacando o time adversário com ironias criativas e insinuações afiadas.
— Atenção, galera encarnada! Chegou fofoca apurada. Do lado vermelho é só gostosura, tem sabor que é formosura! Até o filho do contrário caiu na tentação. Aqui a fruta é das boas... faz azulzinho perder a razão! — Entoou Gabriel, riscando ideias no papel com um sorriso travesso no rosto.
Milena, ao ouvir aquilo, parou de cantar e levantou a mão.
— Espera, gente. — Disse ela, a voz trêmula de incômodo. — Isso é necessário?
Patrick, o apresentador do Garantido, virou-se surpreso.
— O verso?
— Sim. Usar o nome do meu filho desse jeito...
Gabriel levantou o olhar, sem perder a calma.
— Milena, pode ter certeza de que o Pedro, o Amo do contrário, vai fazer dez vezes pior. Aquele homem é baixo. — Ele tirou o celular do bolso e mostrou um vídeo onde Pedro fazia uma piada de gosto duvidoso sobre o namoro de Cauê e Jonas.
— Estou sendo respeitoso com o seu filho e com o sentimento dele, por mais que a situação seja delicada.
Patrick se aproximou, pousando uma mão firme no ombro da colega.
— Infelizmente, é uma guerra, Milena. Eles vão avacalhar conosco este ano, mas temos nossas armas contra aqueles abestados.
Milena assentiu levemente, mas seu olhar permanecia sombrio. Por dentro, lutava contra o sentimento de impotência. Era mãe, antes de ser artista. Ver a intimidade de seu filho sendo exposta naquele jogo de provocações a incomodava mais do que queria admitir.
Enquanto isso, no lado azul do Bumbódromo, tudo parecia seguir um compasso perfeito. Otaviano liderava sua equipe com a precisão de um maestro. Faltavam menos de 25 dias para o Festival, e os prazos estavam rigorosamente em dia. Todas as semanas, ele reunia os chefes de setor para alinhamentos gerais. Nada era deixado ao acaso.
Naquela tarde abafada, Pedro Oliveira, o Amo do boi Caprichoso, adentrou o escritório com uma pilha de anotações e a revista de apresentação nas mãos.
— Chefe, boa tarde.
Otaviano ergueu os olhos, enxugando o suor com um lenço azul, já acostumado com o calor e o peso do comando.
Pedro abriu a revista e apontou algumas ideias de versos. Todos voltados a cutucar, com sutileza e crueldade, o relacionamento de Cauê e Jonas. Otaviano bufou, contrariado. Não queria trazer aquela situação para o centro da arena, mas também não podia ignorar a guerra simbólica travada entre os bois.
— Pode avacalhar, Pedro. O Jonas que procurou sarna pra se coçar. — Ordenou, seco.
— Claro que vou, chefe. Já tenho diversas ideias para acabar com o Tido. — Respondeu Pedro, saindo com um brilho perverso nos olhos.
Otaviano voltou a se recostar na cadeira, encarando o ventilador de teto girando preguiçoso.
— Esse moleque enxerido me coloca em cada situação. — Pensou alto, desejando, nem que fosse por um instante, que aquela temporada fosse diferente. Mas sabia: Parintins nunca foi terreno para calmarias.
***
Faltando apenas duas semanas para o início do Festival de Parintins, a rotina de Jonas havia se transformado em um turbilhão sem pausa. Reuniões, encontros, entrevistas, ensaios, tudo se empilhava em sua agenda como peças de um quebra-cabeça urgente e barulhento. Aquele que, no passado, se dedicava exclusivamente à dança, agora organizava cada minuto do espetáculo. Era ele quem marcava os ensaios, reunia as equipes e revisava exaustivamente todos os protocolos de segurança.
— Será que o meu acidente foi uma intervenção divina? — Pensava Jonas, caminhando para a sétima reunião do dia, já com os ombros pesados pelo cansaço.
O Festival, em sua visão, era como um grande lego coletivo, montado peça por peça pelos cidadãos de Parintins. Cada ala, cada momento da apresentação, era construída por uma equipe diferente — cenografia, coreografia, alegorias, tribos, figurinos, músicas, segurança — e só se encontravam nos ensaios técnicos no Bumbódromo. Três ensaios. Três grandes testes para uma única chance de emocionar.
Jonas sabia que o sucesso do espetáculo dependia do cuidado com cada detalhe: alimentação, hidratação, transporte, horários, descanso das equipes, e principalmente, o cumprimento de cada função com perfeição. Era um exército artístico em marcha.
Na volta para casa, já noite adentro, ele dividia o carro com seu pai. O silêncio entre eles era interrompido apenas pelos soluços discretos do ar-condicionado e pelo leve ronco de Jonas, que dormia com a cabeça apoiada no ombro do banco, a boca entreaberta. Otaviano olhou para o filho e sorriu com ternura.
— É, garoto enxerido, dos meus catorze, tu foi o único que ficou. — Murmurou, quase como um segredo que não queria acordar o rapaz.
Ele sabia que os outros filhos viriam ao Festival como espectadores, turistas emocionados. Mas Jonas, Jonas era parte da engrenagem. Mergulhou no trabalho, abraçou responsabilidades, sujou as mãos com tinta, suor e sonho.
— O senhor sabe que tem sorte, né? — Afirmou Josué, o motorista, quebrando o silêncio enquanto encarava Otaviano pelo retrovisor.
— Sei sim, Josué. Muita sorte. — Respondeu o presidente com um suspiro. — Ele me dá dor de cabeça, mas me enche de orgulho.
Josué riu baixo antes de compartilhar sua história.
— Graças ao Jonas, o meu filho criou coragem e assumiu o namoro com uma perreche da baixa. — Disse, ainda com os olhos na estrada. — O senhor ainda está bravo?
Otaviano hesitou. Encarou a noite pela janela como se procurasse a resposta nas luzes da cidade.
— Bravo? Não sei se é essa a palavra. — Respondeu. — Eu fiquei preocupado, Josue. Em época de Festival, qualquer coisa vira um robô maceta de problema. — Coçou o queixo. — Se eu faço gosto? Não. Mas o coração é dele, né?
Foi então que, sem abrir os olhos, Jonas interrompeu a conversa:
— Velho enxerido. — Balbuciou. — Posso chamar o Cauê pra almoçar lá em casa? Ele quer provar o vatapá da Rosa faz tempo.
Otaviano virou o rosto devagar para o filho, que agora o encarava com um olho meio aberto, fingindo continuar dormindo. Pensou por alguns segundos, ponderando todas as consequências e provocações envolvidas. Mas a decisão veio rápida.
— Tu vai levar esse moleque de qualquer jeito, né? Tudo bem. A gente pode fazer isso no sábado.
Jonas se animou, mas antes que dissesse algo, Otaviano completou:
— Sábado? É quando os teus irmãos chegam pro Festival...
— Exatamente. — Afirmou Jonas, já prevendo a confusão.
— E isso vai deixar tudo mais interessante. — Concluiu o pai, soltando uma risada quase maligna, que terminou numa tosse seca.
Otaviano e Josué riram juntos. Jonas apenas fechou os olhos de novo, sorrindo de canto. O Festival se aproximava, mas aquela família — entre tensões, afetos e tradições — já estava em pleno espetáculo.