Seis meses. Cento e oitenta dias. Quase duzentas manhãs acordando ao som do salto de alguma delas batendo no piso. Seis meses sem ver a rua, sem um “bom dia”, sem nome. Ali, eu era apenas função. Acordava, limpava a casa, lavava roupas, preparava cafés, alisava lençóis, aquecia banhos, escovava cabelos, depilava virilhas, pintava unhas. E, entre cada tarefa, havia alguma boca pra servir, algum pé pra lamber, algum cu pra limpar com a língua.
Às vezes, era simples. Camila me usava como apoio de pé enquanto assistia vídeos no celular. Outras vezes, Isabela me enfiava embaixo da cama, apenas pra segurar suas sandálias sujas com a boca. Sabrina me obrigava a escovar seus tênis com a língua enquanto recitava regras de postura. Giovana gostava de cuspir no meu prato antes de eu comer.
Mas um dia, elas criaram um jogo novo.
Me deixaram ajoelhado no centro da sala, vendado e amordaçado. À minha frente, dispostas em um semicírculo, estavam todas. Helena observava em silêncio, como juíza de um ritual.
— Hoje vamos testar tua verdadeira utilidade — disse Valentina. — Se é mesmo propriedade... então já deveria reconhecer cada uma de nós. Pelo cheiro. Pelo gosto.
Começaram com os pés. Um por um foi colocado na minha cara. A cada toque, eu tinha que adivinhar.
A primeira sola era lisa, com um cheiro leve de couro e talco. Um toque de vinagre, fraco, e a unha do segundo dedo arranhando minha língua.
— Valentina — murmurei. Acertado.
A segunda tinha os dedos pequenos, mas um chulé doce, forte, que grudava nas narinas. A sola era suada, mas com traços de perfume vencido.
— Camila. — Outra acerto.
Depois, vieram calcinhas. Molhadas, secas, usadas por horas ou recém-trocadas. Tive que farejar, chupar, lamber, identificar o gosto de cada uma.
— Essa tem fundo metálico... é Letícia. Essa aqui tem ranço de perfume e gozo seco... Isabela. Essa é Sabrina. Sem cheiro, mas com sal na borda. Essa é Giovana... gosto forte, quase amargo.
A cada acerto, um riso. A cada erro, um tapa ou cuspida. Mas errei poucas vezes.
Por fim, vieram as bocas. Cada uma me cuspia na língua. Eu tinha que dizer: quem era aquela saliva?
Guloseima salina de Valentina. Gosto de cigarro de Isabela. Frescor mentolado de Sabrina. Calor úmido de Helena — única que cuspia devagar, direto no fundo da garganta, olhando nos meus olhos como se me imprimisse um comando.
Acabei o teste ajoelhado, cuspido, com cheiro de seis bocetas e cinco cus diferentes impregnados no corpo.
— Você passou — disse Helena, seca. — Já reconhece suas donas como se fossem impressas no seu paladar. Agora você serve com instinto.
Um dia, Letícia jogou um chinelo branco no chão, coberto de manchas escuras, com a sola marcada pelas ondulações da planta do pé. O cheiro subiu na hora: podre, ácido, rançoso.
— Tem três horas pra limpar isso com a língua. Não pode usar pano. Nem cuspe. Só saliva e obediência.
As marcas estavam fundas. Os vincos de seus dedos estavam desenhados na borracha. Cada dobra acumulava sujeira de semanas. O gosto era terrível — como lambuzar a boca de graxa misturada com queijo podre.
Quando o tempo acabou, ainda havia resíduos na borda do calcanhar. Ela viu. Mostrou pras outras. Riu.
— Então vem o castigo.
Fui deitado no chão. Camila me deu três palmadas com a sola da sandália molhada. Sabrina me pisou na costela com o coturno. E Giovana cuspiu na minha cara.
— Isso é pra lembrar que até sujeira tem prazo.
Outro dia, o desafio foi ainda mais absurdo. Helena trouxe uma bacia com seis meias — todas usadas, suadas, emboladas. Ordenou:
— Você vai cheirar, apenas respirar, sem tocar, e me dizer qual calçado cada uma usou. Bota, tênis, rasteira, salto, pantufa, sapato fechado.
As meias estavam saturadas. Os cheiros confundiam. Uma tinha cheiro de couro abafado, outra trazia o doce de sandália plástica suada. Algumas tinham o sal do suor ácido, outras o ranço de tecido sintético acumulado por dias. Errei duas.
— Então vai limpar as duas com o nariz. Só o nariz. Vai esfregar até sair o cheiro. E sem fazer barulho.
Fiquei de quatro por horas, raspando o rosto contra as meias como um cão doente.
Certa noite, Sabrina se sentou sobre meu peito com uma rasteira imunda nos pés e disse:
— Hoje quero que tire o cheiro do meu chulé apenas respirando. Nada de lamber. Nada de tocar. Só respira fundo, cada vez mais, até o cheiro sair sozinho.
Fiquei inalando por quase uma hora. Os olhos lacrimejando. A mente girando com o ranço doce e enjoado da pele dela impregnando minhas narinas. Quando ela achou que estava satisfeito, tirou a rasteira e colocou o pé direto na minha cara.
— Vê se agora aprendeu a adorar até o que é invisível.
Esses testes, absurdos e sádicos, se tornaram parte da rotina. Nada era gratuito. Cada riso escondia uma punição. Cada ordem absurda, um propósito cruel.
Era uma manhã como qualquer outra. Eu lavava os tapetes da varanda com a língua, como mandado. O gosto de poeira e solado nem me incomodava mais. Fazia parte da rotina. Parte de mim. Como respirar.
Foi então que ouvi a voz. Firme. Implacável. Familiar.
— Ele ainda funciona?
Levantei os olhos e ali estava Renata. Impecável, como sempre. Mesmo depois de anos, ela não havia mudado: postura ereta, olhar de aço, a mesma calma cruel de quem nunca precisou gritar pra controlar.
Helena saiu da casa com uma taça de vinho na mão. Sorriu ao vê-la.
— Claro que funciona. Está melhor do que nunca. É mais útil que água quente.
Renata caminhou até mim, deu a volta devagar, e tirou algo da bolsa: uma pasta transparente com documentos, fotos antigas... e no topo, dobrado com cuidado, estava meu caderno de anotações. Aquele que levei comigo na viagem, anos atrás. Que pensava ter perdido para sempre.
— Eu estudei sua mochila. Entre os panos, os trapos e os restos de identidade... havia equações. Cálculos. Teorias. Você era físico, Galileu. Um acadêmico. Um construtor. Você desenvolvia o modelo daquilo que, hoje, chamamos de ruptura temporal. A máquina que te trouxe até aqui.
Não reagi. Não entendi. Ou talvez apenas não quisesse entender. Fiquei de joelhos, com os olhos baixos, esperando o comando seguinte.
— Ele já não pensa mais, Renata — disse Helena com desdém satisfeito. — Virou exatamente o que prometi: uma extensão do nosso desejo. O cérebro dele? É só reflexo condicionado.
Renata se agachou diante de mim, levantou meu queixo com dois dedos.
— Mas talvez... talvez ainda saiba somar. Talvez, entre um cu lambido e um pé sugado, reste algo útil nesse crânio.
Se virou para Helena.
— Posso levá-lo por um tempo? Quero tentar extrair algo. Não sei se vai conseguir lembrar, mas posso colocar sua obediência ao serviço da ciência.
Helena deu um gole no vinho, depois assentiu com um sorriso de canto de boca.
— Está emprestado. Mas trate de devolvê-lo. A casa fica tão limpa com ele aqui...
E assim, fui levado de novo. Pelas mãos de quem me havia quebrado no início. Não como homem. Não como rebelde. Mas como o que restava de um físico — agora, um instrumento de carne, esperando ordens. Até para reconstruir aquilo que me destruiu.
Os dois meses seguintes se passaram dentro de uma sede isolada do Partido de Gaia, onde o projeto experimental de engenharia temporal era mantido em segredo. Eu estava lá como uma peça viva do laboratório — mas não como pesquisador. Aquilo havia morrido com meu nome. Agora, me chamavam apenas de "o recurso".
Andava sempre nu. Não por punição, mas por protocolo. A pele exposta era parte da uniformidade exigida para meu tipo: submissão total. O corpo deveria estar acessível, visível, lembrado. Às vezes, enfiavam uma calcinha suja no meu rosto durante horas, como mordaça simbólica. Às vezes, me deixavam com meias molhadas na boca, respirando o suor de alguma técnica que passava os dias entre telas, fórmulas e protocolos.
Mesmo enquanto rabiscava fórmulas no chão com giz, ou organizava dados sob supervisão, estava de joelhos. Sempre. Nunca sentado. As outras cientistas, todas mulheres, sabiam disso — e usavam. Não apenas o cérebro. Mas a boca. O corpo. A vergonha.
Dra. Taís, especialista em fusão temporal, gostava de me montar como banco de apoio enquanto revisava códigos — pernas abertas, buceta colada no topo da minha cabeça, me obrigando a ficar imóvel por horas, sentindo o calor da pele dela escorrer pela minha nuca.
Eng. Clara, responsável pela parte estrutural, me usava como apoio de pé sob a mesa. E quando seus sapatos ficavam muito suados, mandava que eu os limpasse com a língua no intervalo entre cálculos.
Dra. Renata era a única que mantinha um distanciamento cruel. Observava. Fazia anotações. Às vezes me perguntava algo técnico — e se eu respondesse com precisão, apenas dizia “bom cão” e me deixava lamber os restos de gozo de alguma colega na bancada.
Durante uma das sessões de testes com a nova bobina de campo, fui forçado a trabalhar com uma camisola suja de uma das pesquisadoras cobrindo meu rosto. A transparência do tecido me cegava parcialmente. Mas os comandos ainda vinham claros: resolver, programar, limpar o chão com a língua no fim do turno.
Não me chamavam mais de físico. Nem de homem. Só de “Recurso 07”. Um corpo nu que pensava. Um cérebro que lambia pés.
A máquina estava pronta.
Foram dias de ajustes, cálculos, testes com objetos inanimados. As técnicas estavam exultantes, confiantes. Renata apenas observava. Mas na madrugada anterior ao primeiro transporte humano — o meu — algo dentro de mim se acendeu. Um lampejo que não era esperança, nem coragem. Apenas... clareza.
Naquela noite, entre fios expostos e comandos abertos, fui deixado sozinho na sala de propulsão. Presumiram que um corpo nu, com o rosto sujo de saliva e porra, preso a uma coleira de comando remoto, não representaria ameaça.
Mas minhas mãos ainda sabiam programar.
Rastejei até o console. Digitei sem fazer som. Desativei os rastros. Reescrevi a coordenada temporal. Em vez de enviar meu corpo para o "Ponto Sombra" — o local desconhecido que elas haviam definido — reconfigurei o destino: minha casa, centenas de anos atrás. Antes de tudo. Antes de Renata. Antes do regime, antes até mesmo do Partido Gaia ter alguma notoriedade
E mais: inseri uma função de autodestruição irreversível, que apagaria todos os registros da máquina após o transporte.
O campo se acendeu. Vibração. Estalos. O ar ficou denso. O corpo todo doía.
E então, escuridão.
Quando abri os olhos, estava ali. No chão da sala. Nu. Suado. Sozinho.
Minha casa. Meu tempo.
Me levantei devagar, cambaleando. O chão frio. As paredes familiares. Tudo parecia menor. Silencioso.
Minha imagem no espelho... irreconhecível. Magro. Marcado. Cabelos crescidos. Pele encardida.
Ainda sentado no chão da sala, com o corpo nu e os pensamentos girando entre o que era real e o que havia sido vivido, Galileu ouviu a campainha.
Trêmulo, se levantou. O chão parecia mais frio do que lembrava. Cada passo até a porta ecoava como um eco do passado — ou do futuro que havia escapado por segundos.
Girou a maçaneta com mãos que ainda carregavam calos e marcas de um tempo que nunca deveria ter existido.
Lá fora, sorrindo com doçura quase ingênua, estava uma jovem. Tinha cabelos azuis, presos em duas tranças frouxas. Usava aparelho nos dentes, uma camiseta branca sob um macacão jeans largo, e segurava um tablet com uma tela colorida.
— Bom dia, senhor — disse com voz firme e educada. — Gostaria de ouvir um pouco sobre nossa iniciativa? O Partido Gaia?
Por um instante, o tempo congelou.
O mundo ao redor dele tremeu, sem som. Um filme se passou em sua mente, quadro a quadro. A cela. Os gritos. O gosto de suor e mijo. As vozes. Os pés. Renata. Helena. As filhas. As sissies. A coleira. A máquina. O cheiro.
Galileu engoliu em seco. O corpo tremia.
Galileu engoliu em seco. O corpo tremia.
Pensou em responder. A palavra “não” formava-se na garganta, empurrando com esforço, quase partindo os dentes.
Mas então o CCE-7, o cinto de castidade eletrônico ainda preso ao seu corpo mesmo após o salto temporal, emitiu um pulso agudo e invisível. Não era dor — era condicionamento. Um comando elétrico direto nos nervos, que acionava reflexos mais profundos que a vontade.
E sem controle, caiu de joelhos.
As mãos se esticaram para frente. O tronco desceu ao chão. A testa encostou na soleira da própria porta. Postura de balasana: total rendição.
A garota à sua frente recuou um passo, surpresa.
Mas então… parou.
Observou. Arqueou uma sobrancelha. Sorriu com leveza — curiosa, intrigada.
A visão de um homem nu, silencioso, se prostrando em total submissão diante dela sem que tivesse pedido nada... havia algo nisso que tocava instintos antigos. Uma beleza na rendição. Um potencial.
— Bom... — disse ela, inclinando levemente a cabeça com um brilho novo no olhar — eu acho que você pode sim estar interessado no Partido Gaia.
A garota observou por alguns segundos, os olhos curiosos dançando entre o corpo ajoelhado e a própria reação. Sem dizer nada, levantou o pé direito e tirou o All-Star, deixando-o cair ao lado de Galileu com um leve thump de borracha contra o piso.
O sapato, quente de uso recente, ainda exalava um cheiro abafado e doce de suor leve e pano molhado, misturado ao tecido interno desgastado.
Sem pensar, sem comando, Galileu enfiou o rosto dentro do calçado. Enfiou mesmo. Pressionou o nariz até o fundo da palmilha, respirando fundo, absorvendo aquele cheiro feminino como um cão condicionado. O fôlego pesado vibrava no interior do tênis, como se estivesse cheirando algo sagrado.
Ela, em choque por um segundo, logo deu uma risadinha de espanto. Então, com calma quase experimental, apoiou o pé descalço sobre a nuca dele, sentindo o calor da pele submissa sob sua planta.
— Nossa... — murmurou, mais para si mesma. — Que interessante... posso entrar? Quero saber mais sobre você.
Galileu ergueu o rosto lentamente, os olhos ainda meio baixos. Sem hesitar, respondeu com um tom suave, automático — estranho para aquele momento, mas carregado de hábito.
— Sim, senhora.
Ela piscou. O tom não parecia forçado. Não parecia fingido. Apenas... programado.
Entrou, olhando ao redor com cautela. Sentou-se no sofá, ajeitando o macacão com um leve puxão nas pernas. Cruzou os braços. Galileu, sem ser convidado, se sentou ao lado dela, com as mãos sobre os joelhos, cabeça um pouco abaixada. Calado. Imóvel.
— Tá... isso foi meio estranho lá fora. Você... é algum tipo de fetichista? É isso? — ela perguntou, mantendo o olhar firme, mas com a expressão curiosa. — Tem tesão em ser pisado por meninas ou coisa assim?
— Não, senhora — respondeu ele, com serenidade. — Não é tesão. Eu sou obrigado. Fui... condicionado. Sou programado para obedecer. Se uma mulher me dá uma ordem, eu não tenho escolha. Meu corpo responde.
Ela franziu o cenho. Riu de leve, um pouco nervosa.
— Hã... certo. Tá. Isso é... intenso.
Puxou da mochila um pequeno taser portátil e o manteve em mãos, visível, mas sem ativá-lo.
— Olha, eu não sei qual é sua, mas se isso for um teatrinho pra me atacar, você tá muito enganado. Eu sei me defender. Você entendeu? (a garota afirma enquanto segura um taser)
Galileu apenas assentiu. Não se moveu.
Ela ficou observando por alguns segundos. E então, como quem resolve testar a própria curiosidade — ou poder, ordenou:
— Tira a roupa. Agora. Fica nu.
— Sim, senhora.
E começou a se despir, peça por peça, com calma e precisão. Não havia provocação, nem hesitação. Apenas obediência.
Galileu retirou a última peça de roupa, ficando nu diante da garota. Ela observava em silêncio, ainda com o taser em mãos. Mas o que chamou sua atenção não foi o corpo — e sim o dispositivo metálico preso ao pênis dele.
Era compacto, justo, com um painel mínimo no topo e um leve brilho pulsando em azul. Um anel de base, um corpo central reforçado e dois conectores laterais envolviam completamente o sexo de Galileu, mantendo-o contido, inativo, protegido... ou aprisionado.
Ela arregalou os olhos, inclinando-se pra frente no sofá.
— Que... merda é essa?
Puxou imediatamente a mochila, abrindo o zíper maior com pressa. Retirou um caderninho espiralado, cheio de rascunhos e esquemas técnicos desenhados à mão. As folhas estavam marcadas com lápis de cor, canetas pretas, anotações rasuradas.
Virou algumas páginas e parou. Os traços eram similares. Versões rudimentares. Protótipos de algo que se parecia, e muito, com o CCE-7.
— Isso... parece com o que estava projetando — murmurou, comparando com os esboços. — Era só um conceito. Uma ideia de contenção eletrônica de testosterona. Um símbolo de obediência masculina. Mas isso aqui...
Ela se aproximou, ainda com o caderninho em mãos, e apontou pro dispositivo no corpo de Galileu.
— Me diz. O que é isso? Como funciona? Quem colocou isso em você?
Galileu manteve os olhos baixos, sem tocar no aparelho.
— É o CCE-7... Cinto de Castidade Eletrônico, modelo sete. Ativado por comando remoto, com sensores de ereção e estímulo punitivo. Pode gerar choque, vibração, ou retração térmica. Serve pra manter o macho em estado de neutralidade. E de obediência.
Ela ficou muda por alguns segundos, olhando da página para o aparelho. Depois para os olhos dele.
— Isso é real? Isso existe? Isso... foi usado em você?
— Ainda está ativo, senhora.
Ela engoliu em seco. Largou o caderno no colo. O olhar agora era outro: não mais de receio. Era fascínio puro. Instintivo. E, talvez... uma centelha de desejo de controle.
Ela não respondeu de imediato. Seus olhos estavam fixos no CCE-7, como se estivesse diante de algo sagrado — ou impossível.
Levantou-se lentamente do sofá, o caderno ainda aberto em mãos, tremendo levemente. Os traços que ela havia rabiscado semanas atrás — formato ovalado, base anelar, sensores frontais e lacre térmico — estavam ali. Exatamente como desenhara. Até mesmo os pontos de pressão. Os fios internos. As luzes-padrão.
— Isso... isso não pode ser real — sussurrou, sem tirar os olhos do aparelho. — Eu... eu imaginei isso. Esse projeto... esse desenho... ele tá na minha cabeça há meses. Só existe aqui — disse, batendo de leve nos próprios dedos. — Nem protótipo eu tenho ainda. Nem CAD. Nada. Era só teoria.
Galileu permaneceu imóvel. O peso das palavras dela se infiltrava devagar. Uma sensação conhecida. O mesmo ciclo recomeçando.
— Mas aí... você aparece. Você. Com isso preso no pau... exatamente como eu imaginei.
Ela se ajoelhou devagar à frente dele. Aproximou o rosto. Olhou de perto. Chegou a passar os dedos ao redor do anel metálico, como quem toca um artefato de ficção científica.
— Isso é o CCE — murmurou, os olhos arregalados. — Não um brinquedo. Não uma cópia. Não uma fantasia. É o CCE. A versão completa. A que eu imaginaria daqui a anos. E você...
Olhou pra ele, com o olhar agora carregado de outra coisa. Pressentimento. Um destino cruzado. Uma faísca de domínio inevitável.
— Quem... ou o que é você?
Galileu não hesitou. Assim como fizera meses — ou anos — atrás, diante de Dra. Helena, ele abaixou levemente a cabeça, manteve as mãos repousando sobre as coxas e falou com aquela voz calma, treinada. Quase... vazia.
— Eu sou escravo. Não sou mais homem. Fui treinado para servir. Posso limpar, cozinhar, pintar unhas, fazer massagem, escovar cabelos, depilar virilhas. Sei lamber, sei chupar, sei obedecer. Sei calar. E se a senhora quiser, posso ser o seu banco, seu espelho, seu tapete.
Ela ouviu sem interromper. O taser havia sumido de sua mão — agora substituído pelo brilho tenso nos olhos. Observava o CCE como quem encara um portal entre realidades. Seus dedos ainda pairavam próximos ao encaixe do dispositivo, sem tocá-lo diretamente.
— Se eu estiver correta, eu sei como isso sai — sussurrou, mais para si do que para ele.
E então... seu corpo se moveu. Como se algo dentro dela já soubesse.
Com uma precisão silenciosa, apertou dois pontos no anel de base, empurrou para cima o sensor central, e deslizou a lateral do lacre com a unha. Um clique seco ecoou no ar. O painel piscou três vezes... e o CCE-7 se soltou com facilidade, sem choque, sem resistência.
Galileu respirou fundo, mas não reagiu. Não se mexeu. Não comemorou.
Ela segurou o aparelho nas mãos, sentindo o peso real daquilo que, até então, era só um rabisco.
— Isso... é exatamente como eu imaginaria que funcionaria. Até os sensores de pressão... o modo de encaixe... o código de vibração. Eu criei isso na minha cabeça. E agora... agora tá aqui.
Ela ergueu os olhos pra ele. A respiração dela estava acelerada. O pensamento corria rápido, mas os olhos... os olhos já carregavam autoridade.
— E você... é a prova de que eu consigo criar mais.
Joane ainda segurava o CCE nas mãos, os olhos brilhando entre fascínio técnico e algo novo, instintivo — domínio puro, recém-nascido e já natural.
Sem tirar os olhos do aparelho, deu uma ordem simples, quase casual:
— Tira minhas meias. E beija meus pés. Sem parar. Até eu mandar.
— Sim, senhora.
Galileu se moveu imediatamente. Se ajoelhou aos pés dela, puxou a barra do macacão com cuidado e deslizou as meias até os tornozelos. A pele dos pés estava quente, levemente úmida, marcada pelo dia de uso. Um chulé leve e doce escapava da sola, com traços de borracha, pano velho e pele suada.
Ele encostou os lábios na base dos dedos e começou a beijar, em sequência, ritmado, quase ofegante. Beijos curtos, molhados, reverentes. O som abafado dos lábios colando e soltando fazia eco pelo ambiente.
Joane riu baixo. Um som curto, controlado.
— Bom... acho que agora você é meu.
Ela cruzou as pernas, apoiando o tornozelo no joelho, deixando o outro pé no rosto dele. Os beijos não pararam. Ele obedecia sem pensar. Sem resistir. Cada novo beijo era mais fundo, mais quente, mais desesperado.
Enquanto isso, ela girava o CCE nas mãos, observando cada detalhe, cada conector, cada ponto de pressão. Seus olhos captavam tudo — não como se fosse novo, mas como se finalmente tivesse em mãos aquilo que estava destinada a criar.
Antes de se levantar, olhou para ele com um sorriso contido, mas firme. A voz suave, direta.
— A propósito... meu nome é Joane.