A Ilha de Parintins não brincava quando o assunto era coincidência. Era como se o próprio destino — esse danado brincalhão — se divertisse tramando encontros improváveis, risos inesperados e situações que beiravam o surreal. E, naquela tarde quente, em meio ao cheiro de milho assado, pipoca e maresia, o destino caprichou.
Cauê, ainda ofegante, com a garganta arranhando e os olhos marejados, ergueu o olhar... e lá estava ele. Ninguém menos que Jonas Benevides, parado bem à sua frente, ostentando um sorriso enviesado que beirava o deboche. Os lábios, curvados em um traço presunçoso, quase zombeteiro, deixavam clara a satisfação que ele sentia. Seus olhos semicerrados cintilavam com uma mistura perfeita de autossatisfação e desafio. As sobrancelhas arqueadas reforçavam aquele ar de triunfo, como se sua simples presença ali fosse uma vitória pessoal. E, para completar, Jonas mantinha as mãos entrelaçadas diante do peito, em um gesto que parecia dizer: "É, meu chapa... fácil demais pra mim."
Cauê pigarreou, ajeitou a gola da camisa e tentou, inutilmente, disfarçar o desconforto que aquela expressão lhe causava.
— Por que tá me olhando assim? — _Perguntou, franzindo o cenho, numa tentativa meio desajeitada de soar firme.
— Sei lá, mano.— Respondeu Jonas, dando de ombros, mas sem perder aquele sorriso cheio de dentes. — Talvez porque eu acabei de salvar sua vida. — E, sem cerimônia, passou o braço por cima do pescoço de Cauê, puxando-o para si como se fossem velhos camaradas. — Todo mundo viu. Eu te salvei. Por isso, é importante que as pessoas aprendam a manobra de Heimlich.
Cauê bufou, tentando se desvencilhar daquele abraço meio sufocante, quando uma voz grave e bem-humorada interrompeu a cena.
— Deixe o rapaz em paz, cabra... — Pediu Vlavlau, se aproximando e afastando Jonas com um empurrão camarada. — Desculpe, moço. Esse desmiolado não sabe brincar.
Jonas, claro, não perdeu a pose. Recuou um passo, cruzou os braços e soltou mais um daqueles sorrisos que misturavam cara de pau e autoconfiança.
— Vlau... eu acabei de salvar esse rapaz. Acho que tenho o direito de me achar um pouco, né não?
Vlavlau arqueou uma sobrancelha, desconfiado.
— Isso é verdade?
— Eu... eu me engasguei... com uma pipoca. — Murmurou Cauê, ajeitando os óculos, ligeiramente sem graça.
Por alguns segundos, Vlavlau sustentou aquele silêncio carregado de julgamento, até que não aguentou e explodiu em uma risada.
— Olha só... depois de fazer uma porrada de besteira, finalmente deu uma dentro, hein, Jonas! — Alfinetou, dando um tapinha nas costas do amigo.
Jonas ergueu as mãos, como quem aceita a provocação, mas fez questão de manter o sorriso vitorioso.
— Ei, tô brocado. — Disse, mudando de assunto e esfregando a barriga. — Bora comer alguma coisa? Eu pago.
— Eu topo! — Exclamou Vlavlau, abrindo um sorriso largo que, instantaneamente, fez Cauê se sentir mais à vontade, contagiado pela espontaneidade daquele cara.
— Perfeito! — Completou Jonas, já puxando Cauê pelo braço. — Vamos comer um X-Pio.
Cauê piscou, confuso.
— X o quê?
— X-Pio. — Reforçou Vlavlau, balançando a cabeça como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.
No caminho, Vlavlau se encarregou de explicar. O tal do X-Pio era um verdadeiro monumento gastronômico de Parintins: pão bola, queijo, presunto, alface, tomate, pepino, repolho, batata palha e, no papel principal, um ovo bem generoso, dourado na chapa. Era mais que um lanche — era quase um patrimônio afetivo da cidade. Todo mundo comia, todo mundo amava.
Sem nem perceber, os três já estavam acomodados em um triciclo colorido, daqueles que começaram como transporte de carga, mas que, com o tempo, se tornaram uma das atrações turísticas mais disputadas da ilha. O triciclo seguia serpenteando pelas ruas, ladeado por bandeirinhas, música, cheiro de comida e aquele calor úmido que só Parintins sabia oferecer.
E, enquanto o triciclo balançava pelas ladeiras, Cauê olhava de soslaio para Jonas e pensava, meio divertido, meio desconfiado: "Parintins realmente não brinca em serviço"
Jonas adorava aquela sensação. O vento no rosto, o balanço suave e o som cadenciado das rodas do triciclo evocavam lembranças antigas, memórias de uma infância marcada por tardes inteiras acompanhando o pai, que, naqueles tempos, era dono de uma frota inteira de triciclos. Era quase como voltar no tempo, como se cada pedalada ecoasse histórias guardadas no fundo da memória.
Sentados no banco traseiro, Jonas, Cauê e Vlavlau observavam a movimentação que tomava conta da avenida. Bandeirinhas coloridas tremulavam presas entre os postes, desenhando no céu uma festa de cores que dançava ao sabor da brisa. Outros triciclos, igualmente enfeitados com fitas, chapéus de palha e pequenas bandeiras, cruzavam o caminho, formando uma espécie de cortejo informal que celebrava, à sua maneira, a vida e as tradições daquele lugar.
O tricicleiro, com passos firmes e ritmados, conduzia-os com maestria pela avenida principal, ladeada por grandes árvores que, generosas, ofereciam sombras frescas e acolhedoras. A cada pedalada, o cheiro da cidade se fazia mais presente — uma mistura deliciosa de churrasquinhos recém-assados, milho quente na brasa e aquele aroma inconfundível de hambúrguer artesanal vindo do X-Pio, que já parecia estar logo ali, à espera.
Cauê, sempre curioso, não conseguia esconder o encantamento. Seus olhos percorriam atentos os detalhes dos enfeites, das fachadas iluminadas, das pessoas que iam e vinham carregando balões, sacolas e sorrisos. Jonas, por sua vez, comentava entre risos sobre os sabores que já conseguia imaginar, antecipando mentalmente o gosto do pão macio, do queijo derretendo e da carne suculenta. Vlavlau, mais relaxado, se deixava levar pela brisa morna que suavizava o calor, sorrindo ao ver a cidade viva, emanando energia, cultura e tradição.
O triciclo fez uma curva suave, deslizou por uma calçada pintada de branco e vermelho e, então, surgiu à frente o letreiro que eles tanto esperavam. Luzes simples, mas acolhedoras, destacavam o nome que parecia brilhar mais do que qualquer estrela naquela esquina: "X-Pio". O tricicleiro estacionou com um leve balanço e, enquanto Jonas pagava a corrida, Cauê o observava em silêncio, sentindo, sem entender muito bem, uma revolução acontecer dentro do próprio peito.
A lanchonete se erguia na esquina como um farol gastronômico, com sua fachada pintada em um amarelo vibrante que parecia querer disputar atenção com o próprio luar. Acima da entrada, um letreiro ousado, em letras pretas e firmes, anunciava sem modéstia: "Rei do X-Pio", como se naquele pedaço de mundo não houvesse espaço para qualquer dúvida sobre quem comandava o reinado dos sanduíches.
O toldo vermelho, estampado de ponta a ponta com o logo clássico da Coca-Cola, percorria toda a extensão da cobertura, oferecendo não só sombra durante o dia, mas também, agora, sob a luz quente dos postes, um charme quase nostálgico, que fazia qualquer um se sentir, de alguma forma, em casa. Por dentro, o ambiente era de uma simplicidade acolhedora — paredes decoradas com bandeirinhas, artesanato regional e pequenos detalhes que mesclavam o rústico com o popular, criando uma estética que só fazia sentido ali, naquele lugar, naquele contexto.
Um ventilador antigo girava lentamente no teto, produzindo um som quase hipnótico, enquanto penduricalhos coloridos balançavam suavemente, embalados pela mesma brisa que antes soprava lá fora. As mesas de madeira, dispostas de forma despretensiosa, estavam ocupadas por grupos de amigos, casais e famílias inteiras, todos envolvidos em conversas animadas, regadas a risos e olhares cúmplices.
O som da televisão, pendurada em uma das paredes, se misturava às vozes — ora transmitindo um jogo qualquer, ora um programa que ninguém realmente prestava atenção. Afinal, o verdadeiro espetáculo estava em outro lugar: no cheiro inebriante que dominava o ambiente. Um perfume irresistível de carne grelhada, queijo derretendo, pão aquecido na chapa... uma combinação capaz de despertar o apetite até dos mais distraídos.
O trio escolheu uma mesa estrategicamente posicionada, na esperança de que ao menos algumas rajadas de vento os alcançassem.
Pouco depois, uma atendente de pele morena, sorriso fácil e olhos brilhantes se aproximou com o bloquinho em mãos. Havia algo de simpático e acolhedor na maneira como ela se apresentava.
— Boa noite, rapazes. Vão querer o de sempre? — Perguntou, olhando primeiro para Jonas, que logo assentiu com naturalidade.
— Três X-Pios. — Respondeu ele, dando uma pausa breve antes de lançar um olhar cúmplice para Cauê. — Capricha no dele, tá? É a primeira vez que experimenta.
A moça se voltou para Cauê com um sorriso ainda mais aberto, o avaliando de cima a baixo, como quem percebe algo raro e interessante. Os olhos dela cintilaram.
— Pode deixar que vou pedir pra capricharem no seu, moço. — Respondeu, encerrando com uma piscadela atrevida que deixou Cauê completamente sem reação.
O rosto dele corou imediatamente, e ele desviou o olhar, meio sem saber onde enfiar as mãos.
— Eita, que esse aí já tá fazendo sucesso, Jonas! — Soltou Vlavlau, segurando o riso.
— Para com isso, cara. Ela só foi gentil. — Desconversou Cauê, ajeitando os óculos no rosto, claramente desconfortável com a situação.
Jonas cruzou os braços, sorrindo de canto. — Deixa ele, Vlau. O senhor Engasgão aqui leva jeito com as gatinhas, hein?
Cauê bufou, balançando a cabeça, mas no fundo se divertia com aquela situação inesperada.
Alguns minutos depois, os lanches chegaram. E não eram qualquer lanche. Assim que a bandeja pousou na mesa, os olhos de Cauê se arregalaram. Diante dele estava uma verdadeira obra-prima gastronômica. O sanduíche era tão grande que parecia desafiar as leis da gravidade: camadas generosas de queijo derretido, presunto, alface crocante, rodelas fartas de tomate, pepino, repolho, batata palha e, no topo, um ovo perfeitamente frito, com a gema levemente escorrendo.
Na primeira mordida, Cauê sentiu uma verdadeira explosão de sabores. O equilíbrio entre o salgado do queijo, o frescor dos vegetais e a crocância da batata palha era simplesmente perfeito. Ele mastigava lentamente, apreciando cada segundo. E, naquele instante, teve certeza: ia trazer toda a família para conhecer aquela lanchonete.
Depois de devorarem os sanduíches e rirem de assuntos aleatórios, Cauê se despediu. Estava exausto. Trocara telefones com Jonas, mas, enquanto caminhava pelas ruas tranquilas da cidade, sua cabeça parecia mais confusa do que nunca. Afinal, Jonas era filho do presidente do Caprichoso, e ele agora fazia parte dos músicos do Garantido. Como poderia surgir qualquer tipo de amizade — ou algo além disso — entre eles? A rivalidade dos bois era praticamente uma muralha entre os dois mundos.
Ao mesmo tempo, em outra parte da cidade, Jonas seguia para casa com um nó apertado no peito. Ele não gostou nem um pouco do jeito como a atendente olhou para Cauê. Tentou se convencer de que estava exagerando, que era coisa da sua cabeça. Mas, no fundo, sabia que não era só isso. Dentro dele, tudo estava uma bagunça.
Deitado na cama, deixou o celular rolando em vídeos antigos. Ali estavam ele e Rafael, rindo, dançando, ensinando coreografias para o canal que os dois criaram juntos, tempos atrás. Rafael. O melhor amigo, confidente, amante e coreógrafo brilhante do Caprichoso. Era ele quem inventava quase todos os passos que os dançarinos levavam para a arena, arrancando aplausos e suspiros da galera azul e branca.
Assistindo àqueles vídeos, Jonas sentiu um vazio difícil de explicar. A alegria vibrante dos registros contrastava com a confusão que tomava conta do seu peito naquele momento.
E, talvez, fosse ali, entre lembranças, saudade e incertezas, que ele adormeceu.
***
O som dos tambores ecoava pelas ruas de Parintins, se misturando aos acordes vibrantes de guitarras, sopros e às batidas marcadas do samba. Era impossível caminhar pela cidade sem se deixar envolver pela energia contagiante do Carnailha — o maior Carnaval do interior do Amazonas e, sem dúvidas, o segundo maior evento do calendário cultural parintinense. Ali, tradição e festa se entrelaçavam de forma única, unindo o boi-bumbá, o samba e os ritmos que atravessavam gerações.
Para o povo de Parintins, o Carnailha não era apenas folia. Era o marco que dava início à temporada bovina, aquele momento em que as atenções começavam a se voltar para os ensaios, preparativos e toda a mística que cercava os bumbás Caprichoso e Garantido. A cidade respirava cultura, suor e paixão.
No meio dessa efervescência, Cauê e Milena mergulhavam de cabeça no universo encarnado do Garantido. Aprenderam cada verso das toadas, cada batida dos rituais, e decoraram, com uma mistura de empolgação e reverência, os gritos de guerra da torcida vermelha e branca. As horas pareciam escorrer entre os dedos, divididas entre ensaios, reuniões, apresentações e, em meio a tudo isso, até uma viagem para Manaus para cumprir uma agenda de shows que parecia não ter fim. Viver como artista em Parintins, eles logo perceberam, era aceitar uma vida intensa, dedicada e, muitas vezes, exaustiva.
Os dias avançavam em ritmo acelerado, e, com eles, crescia a expectativa pela estreia de Milena como Levantadora de Toadas do Garantido. A notícia já corria solta pelos quatro cantos da ilha, estampava capas de jornais, era assunto nos programas de rádio e ocupava espaço em reportagens televisivas. Era impossível não se emocionar ao ver Milena Alencar dar entrevistas cheias de orgulho, falando sobre sua trajetória que, em breve, subiria ao palco carregando um dos maiores símbolos culturais do Amazonas.
As redes sociais do Garantido também faziam sua parte. Produziram vídeos especiais, resgataram memórias, contaram histórias e, em cada postagem, apresentavam Milena não apenas como artista, mas como filha da terra, uma mulher que carregava no peito o amor pelo boi e a força da cultura parintinense.
Por trás das câmeras e dos microfones, havia muito mais acontecendo. Milena passava por uma verdadeira transformação estética. A diretoria do Garantido, sempre atenta aos mínimos detalhes, havia contratado uma personal stylist de renome na região. Tecidos, penas, brilhos e paletas de vermelho e branco se espalhavam pelo ateliê improvisado. Entre um café e outro, Joana discutia com a profissional qual seria o figurino perfeito para a estreia da filha no Carnailha. Tudo precisava ser impecável, tanto na voz quanto na imagem.
Enquanto mãe se perdia entre croquis e acessórios, Cauê encontrava refúgio na companhia de Jonas. O acaso — ou talvez o próprio boi, como diriam os mais supersticiosos — havia cruzado os caminhos dos dois. E, desde então, havia algo no ar. Uma conexão que nenhum dos dois sabia exatamente como definir. Era sutil, mas ao mesmo tempo intensa, feita de olhares demorados, silêncios cheios de significado e mensagens que começavam cedo e, muitas vezes, terminavam só de madrugada.
Jonas, no entanto, carregava o peso de seu sobrenome. Benevides. Um nome que, na Ilha, não passava despercebido. Cauê sabia que se envolver com Jonas não seria simples. Carregava consigo histórias, rivalidades e uma série de complicações não ditas. Do outro lado, Jonas ainda sentia as marcas de um passado recente, de um ex que, embora não fizesse mais parte da sua vida, vez ou outra ocupava seus pensamentos.
Mas havia algo novo, algo que não cabia nas velhas dores nem nas antigas certezas. Porque, todos os dias, a primeira notificação que Jonas buscava no celular era sempre a mesma: uma mensagem de Cauê.
O céu começava a ganhar tons alaranjados quando Jonas recebeu a mensagem de Cauê.
***
— O que vai fazer no fim de semana? — Perguntou ele, curioso.
— Não sei. Algum plano? — Respondeu Cauê, sem muita expectativa.
— Nós vamos no Cantagalo. — Anunciou Jonas, como quem revela uma surpresa bem guardada.
— Cantagalo? — A palavra soou estranha na boca de Cauê.
— É um balneário. Você vai gostar. Semana que vem é o Carnailha, então temos que aproveitar esse momento raro de paz. A cidade vai ficar cada dia mais lotada. — Explicou Jonas, com aquele tom pragmático que, aos poucos, se tornara comum nele.
— Entendi. — Respondeu Cauê, num misto de curiosidade e preguiça.
— Te pego na Catedral amanhã às sete da manhã.
— Sete? Não pode ser no horário de pessoas normais? — Rebateu, rindo.
— Não somos normais, caro amigo. — Disse Jonas, encerrando o assunto com um sorriso enviesado.
***
O último ano transformou Jonas de um jeito que até ele demorava a reconhecer. Aquele rapaz antes expansivo, cheio de vida, parecia agora mais contido, quase uma sombra do que foi. Nem mesmo Otaviano, seu pai, escondia a preocupação. E, verdade seja dita, Jonas já não se entregava como antes à direção do Caprichoso, especialmente depois do acidente que mudara tudo.
Naquela tarde, após mais um dia de visitas, reuniões e vistorias nos galpões dos bumbás, Jonas decidiu fazer algo simples, mas que, de certa forma, lhe devolvia uma sensação de controle: cortar o cabelo. Queria estar bem, bonito talvez, para encontrar Cauê no dia seguinte.
Empurrou a porta de vidro da Barbearia VIP do Caprichoso e, de imediato, foi abraçado por um ambiente vibrante, carregado de identidade e orgulho. O som constante das máquinas de cortar cabelo se misturava às conversas descontraídas e às gargalhadas que ecoavam pelos cantos. O cheiro forte de loções, pomadas e álcool pairava no ar, trazendo uma estranha combinação de nostalgia e pertencimento.
O piso quadriculado, azul e branco, refletia a luz intensa dos refletores alinhados sobre os espelhos. As paredes eram um mural vivo: dezenas de fotos exibiam cortes modernos, clássicos, ousados — um convite para quem quisesse ousar ou simplesmente manter a tradição. Acima dos espelhos, um letreiro imponente, com letras prateadas e reluzentes, proclamava: "BARBEARIA VIP". Cada detalhe parecia cuidadosamente pensado para exaltar as cores, os símbolos e o orgulho de ser Caprichoso.
Os barbeiros, alinhados em suas camisas azuis impecáveis e máscaras brancas, executavam seus trabalhos com a precisão de artistas. As mãos firmes deslizavam entre máquinas, tesouras e navalhas como se dançassem uma coreografia invisível, onde cada gesto era meticulosamente calculado.
Jonas se acomodou na cadeira giratória, vestindo uma capa preta salpicada de pequenas estrelas brancas. No reflexo, viu seu próprio rosto ladeado por outros clientes, cada um imerso em seu ritual particular. À sua direita, um garoto sorria tímido, coberto por uma capa azul decorada com estrelas, enquanto o barbeiro, com extrema paciência, desenhava o degradê na lateral de sua cabeça.
O motor da máquina ronronou perto de sua nuca, e Jonas, num gesto quase automático, fechou os olhos. O zumbido das máquinas de cortar cabelo foi, de repente, engolido pela voz da repórter que ecoou da televisão pendurada no canto da barbearia. O som estava baixo, mas, naquele instante, parecia ser o único ruído no ambiente.
— E além de Milena Alencar, — Dizia ela, ostentando um sorriso largo, meio ensaiado, daqueles que misturam empolgação e sensacionalismo. — o jovem Cauê Alencar também vai integrar a banda do Garantido. Parece que o talento é mesmo de família.
A tela, que até então exibia apenas cortes rápidos de bastidores, subitamente foi tomada por imagens de Cauê. Lá estava ele, sorrindo, descontraído, enquanto dedilhava seu instrumento com uma naturalidade quase hipnótica. A câmera se aproximava, destacando seus traços, o jeito concentrado e, ao mesmo tempo, leve de quem parecia ter nascido para aquilo.
Jonas levou um susto. Seu corpo reagiu antes que sua mente processasse qualquer coisa. Num salto quase automático, se levantou da cadeira, assustando o barbeiro que, no reflexo, deu um passo para trás com a máquina ainda ligada na mão.
— Puta que pariu. — Escapou, mais baixo do que gostaria, mas alto o suficiente para ser ouvido por quem estava por perto.
O coração disparou. Uma sequência de batidas tão fortes que ele quase podia ouvir dentro do próprio peito, como se cada pulsar tentasse romper a barreira da pele. A respiração ficou curta, desconcertada. Jonas encarava aquela imagem como quem vê algo que não deveria, algo que muda tudo, que desloca o chão sob os pés.
Ele não sabia dizer se o que o deixava mais nervoso era o sorriso de Cauê, tão bonito, tão cativante, irradiando aquela energia fácil de quem acende qualquer ambiente... ou se era o peso do sobrenome. Alencar.
Filho de Milena Alencar.
A Levantadora de Toadas do Garantido.
O choque atravessava sua mente como um raio, embaralhando tudo: sentimentos, memórias, rivalidades, desejos, medos. Era como se, de repente, todas as fronteiras que ele conhecia — entre os bois, entre os mundos, entre eles — simplesmente desabassem.
O barbeiro pigarreou, meio desconcertado.
— E aí, parceiro, tudo certo? Tá passando bem? — Perguntou, tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
Jonas não respondeu de imediato. Continuava com os olhos grudados na televisão, que agora mostrava cenas da Milena no ensaio do Garantido, sua voz poderosa enchendo o galpão vermelho e branco. Era impossível ignorar aquilo. O sangue de Jonas parecia esquentar, não de raiva... mas de algo mais confuso, mais complexo, que ele ainda não sabia nomear.
Por alguns segundos, ele só ficou ali, parado, respirando fundo, tentando reorganizar seus próprios pensamentos. Quando voltou a se sentar, encarou seu reflexo no espelho. O rosto estava mais pálido, as pupilas dilatadas, como se estivesse diante de uma revelação que mudava tudo — e, de certa forma, realmente mudava.
— Pode continuar. — Pediu, por fim, com a voz mais baixa, quase rouca.
Mas, dentro dele, nada parecia continuar do mesmo jeito.