Sangue, Mentiras & Esporas. Parte 3.

Um conto erótico de Lukinha
Categoria: Heterossexual
Contém 4917 palavras
Data: 02/07/2025 15:56:38
Última revisão: 02/07/2025 15:57:55

Aviso: É a mesma série que eu iniciei recentemente, apenas com mudança no título.

Continuando:

Fiquei andando sem rumo depois que saí da casa grande. Os pés me levaram, mas a cabeça estava em cacos. Nem sei por onde fui. Só sei que quando dei por mim, estava diante do portão enferrujado do antigo cemitério, nos fundos da igreja.

Ali, no canto mais esquecido, debaixo de um ipê torto, ficava o túmulo da minha mãe: Judite Oliveira, nascida e enterrada naquela terra que agora me doía mais do que nunca. Fiquei parado por um tempo, com as mãos na cintura e os olhos ardendo. O chão era seco, rachado. Igual minha fé naquele momento.

— Por que, mãe? — Falei, num sussurro, que nem o vento se dignou a levar. — Por que cê fez isso comigo?

Ajoelhei. Encostei a testa na pedra fria. Não chorei. Já estava seco por dentro.

— A vida toda eu acreditei em mentiras. Diziam que você era uma santa, calada, correta até demais … Diziam que era o seu jeito. Que você e o pai eram inseparáveis, mas agora … agora eu sei que nada é real. É pura covardia.

Engoli em seco, a voz arranhando por dentro.

— Como é que você teve coragem de trair o homem que é capaz de amar o fruto de outro homem? Como é que eu vou olhar para aquela família agora?

Me levantei devagar, os punhos cerrados.

— Eu cresci com vergonha … viviam dizendo que eu não era daquele mundo ... E eu não sou mesmo. Sou filho da mentira. Da vergonha. Filho da humilhação.

Olhei pra cruz de ferro no alto da lápide, o céu cinzento atrás.

— Me deixaram crescer chamando de pai o homem que te perdoou por fraqueza. Que te amou por cima da mágoa. Que me defendeu a vida toda, mesmo sabendo que eu não era dele.

A voz falhou.

— Ele é mais pai do que aquele patrão jamais seria.

Fiquei em silêncio, respirando forte. O vento soprou seco, levantando a poeira ao redor dos túmulos. Não pedi perdão. Não rezei. Só fiquei ali. E deixei a dor me invadir. Naquele dia, eu enterrei minha mãe de novo. Mas, daquela vez, junto, foi tudo que eu achava que sabia sobre mim.

Não lembro direito como cheguei até a casa da Luana. Só lembro da luz do poste batendo fraca na varanda, o cheiro de café velho vindo da cozinha e aquele silêncio da madrugada que parece guardar os segredos do mundo.

Bati de leve na porta. Ela demorou um pouco, apareceu com os olhos ainda sonolentos, o cabelo bagunçado e aquele roupão simples que só deixava ela mais bonita. Quando me viu, ficou séria. Mas não disse nada. Me olhou como quem já sabia que alguma coisa não estava certa.

— Me abraça. — Ela pediu, abrindo os braços devagar.

E eu fui. Precisava daquilo mais do que tudo no mundo. Me afundei no colo dela como se ali fosse o único pedaço de chão firme que me restava. Senti o cheiro do pescoço, o calor da pele, o bater calmo do coração.

A gente ficou assim um bom tempo, sentados no sofá, sem troca de palavra. Eu com os olhos presos no nada, ela com os dedos leves no meu cabelo. Um carinho simples, mas que valia mais do que qualquer reza naquela hora.

Luana, aos poucos, foi relaxando. A cabeça escorou no meu ombro, o corpo cedeu e logo o sono tomou conta. Dormiu ali, no meu colo, como se confiasse em mim mais do que eu mesmo confiava.

Olhei para ela por um tempo. A respiração leve, a boca entreaberta, o rosto sereno. Aquilo me deu um nó no peito. Porque eu sabia que um homem como eu, carregado de mentira e mágoa, talvez não fosse feito pra ter uma paz como aquela.

Com cuidado, levantei. A peguei nos braços e levei até a cama. Coloquei devagar, ajeitei o travesseiro e puxei o lençol por cima do corpo. Antes de sair, abaixei, beijando sua testa com todo o carinho que eu tinha guardado.

— Obrigado … por ser meu abrigo hoje. — Sussurrei.

Fechei a porta sem fazer barulho. O céu já clareava. Os primeiros raios do dia nasciam no horizonte, lavando a cidade com uma luz nova. Mas dentro de mim, a noite ainda era densa.

Voltei à fazenda com o peito pesado. Cada passo era um lembrete daquilo que eu agora sabia e não podia mais dessaber. Quando cheguei perto da porteira, vi meu pai parado, não sei se me esperando, com os braços cruzados, o chapéu baixo na testa.

E eu não sabia se queria encarar, confrontar, ou só continuar andando. Então, não disse nada. Passei reto. Com cara de poucos amigos e o peito lotado de coisas que não cabiam em palavras. Ele abriu a boca pra dizer alguma coisa, mas só respirou fundo. Eu continuei andando.

Fui cuidar da lida como se nada tivesse acontecido, mas por dentro, o sangue borbulhava. A cada balde carregado, cada porteira fechada, cada vaca empurrada no tronco, era como se eu dissesse pra mim mesmo: “Eu não sou filho de ninguém. Sou da vida e da força do meu braço”.

Durante aquela manhã, ele tentou me chamar umas três vezes. Uma perto da cerca, outra perto do bebedouro. Na terceira, encostou na sombra e ficou me olhando de longe. Mas eu não dei abertura. Não queria falar. Não sabia o que dizer.

Na hora do almoço, comi sozinho, num canto afastado. O pessoal fez piada, comentou da minha cara fechada. Silvinha até soltou uma:

— Que foi, João? A enfermeirinha te deu um chá de sumiço?

Fingi que não ouvi. Nem ergui os olhos do prato. Se ela soubesse o que estava passando dentro de mim, ia pensar duas vezes antes de abrir a boca.

Quando terminei de comer, sem dizer nada a ninguém, fui até o galpão, peguei a velha motoca e saí estrada afora. Não era fuga. Era direção. Eu sabia muito bem para onde estava indo.

A estrada de terra levava a uma fazenda que eu conhecia de nome desde moleque: Fazenda Três Barras, famosa por treinar os melhores cavalos e touros de rodeio da região. Era outro mundo. Um mundo que sempre me chamou, mas que meu pai nunca deixou eu me aproximar.

— Rodeio é suicídio, João. Não se joga a vida fora em cima de um bicho bravo. — Ele dizia.

Mas ali, naquela tarde, com a poeira subindo atrás da moto e o coração quebrado, era a primeira vez que eu decidia por mim mesmo.

Parei na porteira da fazenda. A entrada larga, com a marca das Três Barras gravada no tronco, me fez engolir em seco. Do lado de dentro, vi um grupo treinando no curral redondo. O berrante soava longe, e um rapaz voava no ar, agarrado num touro nervoso como se a vida dependesse daquilo. E talvez dependesse mesmo.

Estacionei a motoca, olhando tudo em volta. Sentindo uma mistura de medo e desejo.

— Vai entrar ou vai só ficar parado aí, caboclo? — Gritou um dos peões, rindo, ao me ver parado no canto.

Sorri timidamente.

— Só vim dar uma olhada. Tudo bem?

O homem cruzou os braços e olhou para mim com desconfiança, mas também com curiosidade.

— Nome?

— João Gabriel.

— Filho do Antônio da Santa Gertrudes? — Ele me reconheceu.

Engoli seco.

— Filho do tempo, da lida e de mim mesmo. Isso serve?

Ele riu.

— Serve demais.

E foi assim que eu dei meu primeiro passo para longe da sombra dos outros e comecei a construir quem eu queria ser.

A Fazenda Três Barras era outro mundo. Tudo ali respirava desafio. O som das esporas, o grito dos peões, o cheiro de poeira misturada com suor e couro. O tipo de lugar onde um homem vira lenda ou se despedaça tentando.

Fiquei um tempo só observando, encostado numa cerca de tronco grosso, vendo os peões treinarem os cavalos e os touros. Era como se cada movimento deles puxasse alguma coisa dentro de mim. Um chamado antigo, que eu sempre tentei abafar por respeito ao meu pai, mas que agora gritava mais alto que tudo.

Foi então que um dos peões, sujeito marrento, chapéu torto e sorriso malicioso, me olhou de cima a baixo.

— E aí, cabra … vai ficar de bobeira ou tem coragem pra montar?

Ergui o olhar devagar. Senti o sangue esquentar.

— Eu posso?

Ele apontou para um cavalo nervoso, recém-chegado. Estava no curral, trotando de um lado pro outro, batendo os cascos com impaciência.

— Esse aí é o Relâmpago. Ainda é potro. Se tu aguentar por uns segundos, já ganha nosso respeito. Fica tranquilo, ele é nível iniciante.

Respirei fundo e me decidi:

— Pode selar.

Montei com calma, como quem conversa com o bicho só pelo toque das pernas. Recebi orientação cuidadosa, me encaixei firme, ajustei o chapéu e esperei. Quando a porteira abriu, o cavalo voou.

Saltava alto, rodava seco, tentando me arrancar feito galho no vendaval. Mas eu me mantive. Sentia o pulso do bicho e o ritmo da terra, deixava meu corpo acompanhar, como se fôssemos dois dançarinos em uma dança violenta.

Durou pouco, mas foi o suficiente. Fui jogado ao chão em menos de cinco segundos. Quando me levantei, o Relâmpago parou e me olhou em desafio, como se dissesse: “E aí? Acha que isso é vida pra você?”.

Foi aí que Zeca Barreto, um dos treinadores mais respeitados dali se aproximou. Homem seco, barba grisalha, olhos apertados de quem vê além.

— Ei, moleque … você é filho do Antônio da Santa Gertrudes, né?

Confirmei com um aceno de cabeça ainda respirando pesado.

— Sim, senhor.

Ele deu uma risadinha discreta.

— Vamos ver se tem coragem mesmo.

Ele me levou até outro curral. Dessa vez, era um touro. Não dos maiores, mas já bravo o suficiente pra testar peão novo. Nome do bicho: Carretel.

Me explicaram novamente o básico, amarraram a corda e me deram o sinal. Quando a porteira abriu, foi poeira e potência. Carretel girava em fúria, saltava alto, tentava me jogar longe. Mas eu me mantive ali, firme, grudado, me segurando com as pernas, os braços latejando, gritando por dentro, até não dar mais.

Quando caí, rolei no chão, levantei e dei um tapa no chapéu, sorrindo abobado. Zeca se aproximou, sério, pensativo.

— Cê tem talento, rapaz. Mão firme, perna forte, e o principal: não tem medo. Isso a gente não ensina.

Ele cuspiu no chão e continuou:

— Seguinte: aqui a gente sempre precisa de braço. Se quiser, pode ficar. Trabalha cuidando dos bichos: alimentação, limpeza, treinamento. Em troca, além do salário, a gente te treina. Cê vai aprendendo, ganhando chão e quando tiver pronto, entra pra valer no circuito.

Fiquei um tempo em silêncio, sentindo o coração bater diferente.

— E aí? Topa? — Ele insistiu.

Olhei para o céu, onde o sol começava a se esconder atrás das árvores.

— Topo.

Ali, naquele pedaço de terra batida, dei meu primeiro passo rumo ao que eu sempre quis. O futuro era meu. Minha escolha.

Voltei para casa no fim do dia, o sol se escondendo devagar atrás da serra, como se quisesse evitar o que estava por vir. Entrei quieto. A porta rangeu. Meu pai estava sentado na cadeira de madeira de sempre, afiando a velha faca, como se o mundo ainda fosse simples.

Não disse nada. Só passei por ele e fui direto para o quarto. Comecei a dobrar minhas roupas, as poucas que tinha, e jogá-las em cima do lençol. Ia fazer uma trouxa. Simples, do jeito que sempre foi minha vida.

Ouvi os passos dele vindo do corredor.

— Vai sair sem dizer nada? — A voz veio baixa, contida, mas com aquele tom que eu já conhecia.

Continuei em silêncio. Amarrei o lençol com firmeza, o nó do pano tão apertado quanto o do meu peito.

— João … fala comigo, rapaz. Que bicho te mordeu?

Virei devagar. Encarando seus olhos. Os mesmos olhos que me ensinaram a não baixar a cabeça para ninguém.

— Eu vi. — Falei. — Tudo. Você e a dona Helena ontem. Eu estava lá. Escutei cada palavra. E o que aconteceu depois.

O rosto dele travou. O corpo endureceu.

— João …

— Não precisa dizer nada. — Interrompi, a voz saindo mais firme do que eu esperava. — Vocês mentiram para mim a vida toda. Você me fez acreditar que era meu pai, quando na verdade, eu era só o fardo que cê resolveu carregar. Por culpa? Ou sei lá o que …

Ele deu um passo, depois outro. Queria se aproximar, mas ficou ali, preso na culpa.

— Eu não menti por mal, filho … eu te amo, João. Desde o primeiro dia. Não interessa o sangue, interessa o que a gente vive. E eu vivi pra você.

— E por que não contou? — Perguntei, já com os olhos ardendo. — Por que me fez acreditar que eu era menos do que os outros?

Ele baixou a cabeça.

— Porque eu tive medo … medo de te perder. Medo de você me olhar como tá me olhando agora.

Me aproximei, já com a trouxa no ombro.

— Eu sou grato, sim. Por tudo. Por cada prato de comida, por cada tapa quando eu precisei, por cada palavra que me pôs no eixo. E eu te amo, Seu Antônio. Você foi mais pai do que qualquer outro teria sido. Mas eu preciso ir.

— Filho …

— Não me chama assim. Não por enquanto. — Interrompi, engolindo a emoção. — Eu não sei mais quem eu sou. Aqui dentro dessa casa, dessa fazenda … tá tudo sujo. Tudo errado. E se eu ficar, eu apodreço também.

Ele respirou fundo. Veio até mim, como se quisesse me segurar. Mas não segurou. Só estendeu a mão, que parou no ar.

— A gente pode resolver isso … juntos.

— Eu não confio em ninguém aqui, pai. Nem em você, nem nela … não por mal, mas porque eu preciso de tempo. Talvez um dia … talvez eu perdoe. Mas agora, se eu não for, eu me quebro mais ainda por dentro.

Meus olhos encontraram os dele, mais uma vez.

— Me deixa ir. Não vou sumir. Só preciso digerir e entender.

Ele assentiu devagar, com os olhos cheios d’água. Não chorou. Não suplicou. Só deu um passo pra trás. E foi aí que eu entendi: ele já sabia que esse dia ia chegar. Só não queria admitir.

Atravessei o terreiro com a noite caindo ao redor. Cada passo doía mais do que o anterior. Mas era isso. Era preciso sair, antes de me perder. Subi na velha motoca, dei partida e acelerei.

E foi assim que deixei para trás o homem que me criou e fui atrás do homem que eu precisava ser.

Bati na porta da casa da Luana ainda com a trouxa no ombro e a alma pendurada nos olhos. A rua estava silenciosa e o céu já começava a apagar as estrelas. Esperei. Respirei fundo. Quando ela abriu a porta e me viu, demorou um segundo para reagir.

— João … o que houve?

— Preciso conversar. — falei, com a voz baixa. — Dessa vez … eu preciso falar.

Ela me deu passagem. Entramos. Sentei no sofá, a trouxa ainda nos pés, como um lembrete de que eu não tinha mais casa. Fiquei em silêncio por um instante, até que ela se sentou ao meu lado e segurou minha mão.

— Eu vi. — Comecei. — Vi com meus próprios olhos. Escutei cada palavra.

Ela franziu a testa.

— Do que você tá falando?

— Do meu pai … da minha mãe … da dona Helena. Da mentira que me foi contada minha vida inteira.

Contei tudo. Baixei as defesas e falei sem esconder nada: o caso da minha mãe com o patrão, a verdade sobre minha origem, o silêncio do meu pai, a vingança escondida no corpo da dona Helena. Falei da conversa que escutei, da dor que ainda queimava no estômago. E quando terminei, Luana tinha os olhos cheios.

— Meu Deus, João … — Ela disse, puxando minha mão com força. — Isso é pesado demais. Agora eu entendo por que você chegou daquele jeito ontem. Você estava desmoronando por dentro.

Deixei que ela me abraçasse e me aninhei naquele abraço.

— Agora eu preciso me refazer. Mudar. Do meu jeito.

Ela respirou fundo.

— O que você tá tentando dizer? O que você quer mudar?

— Tudo. O rumo da minha vida. Tô largando a Santa Gertrudes, indo pra Fazenda Três Barras. Me deram uma chance de trabalhar com eles e … treinar. Para ser peão de rodeio.

O silêncio dela foi diferente. Não era compaixão. Era resistência.

— João … Por favor, não …

— É meu sonho, Luana. — Disse, a atropelando. — Desde moleque. Sempre amei aquilo. Meu pai nunca deixou, dizia que era suicídio, mas agora é minha hora. Eu sinto.

Ela afastou um pouco o corpo e cruzou os braços.

— Você sabe quantos peões vão parar no hospital machucados, João? Eu vejo, é do lado do posto. As outras enfermeiras mostram as fotos … costurando cara aberta por chifre. Coluna quebrada por coice, pisoteados … menino novo entrando de maca e não voltando mais a andar. Você sabe o que é ver isso dia após dia?

Eu entendia o lado dela, não era fácil. Mas precisava me defender.

— Eu sei que é perigoso, eu não sou burro. Mas também sei o que é viver a vida toda sendo podado, preso, com medo de querer alguma coisa. Rodeio pode machucar, sim. Mas ficar parado também mata, Luana. Só que por dentro.

— E eu? — Ela perguntou, quase histérica. — Eu sou o quê nisso tudo?

Fiquei em silêncio.

— Porque se você for se entrar nesse mundo. — Ela continuou. — Sou eu que vou estar sempre aqui, esperando a próxima queda, a próxima notícia ruim. Eu te amo, João. Mas não sei se consigo amar um homem que se joga no perigo sabendo que pode não voltar.

— Eu não tô pedindo pra você aceitar tudo agora. Só queria que entendesse … — Falei, a voz embargada. — Que esse é o único caminho que faz sentido pra mim no momento.

Ela ficou quieta por um tempo. Depois se levantou, com os olhos marejados.

— Eu entendo sua dor. Mas não posso te aplaudir enquanto você caminha pro que parece ser a beira do abismo.

— Então … — Me levantei também, devagar. — A gente tá em lados diferentes agora?

Ela hesitou. Depois respondeu, magoada.

— Talvez. Só espero que você repense essa decisão.

Dei um passo até ela. Toquei seu rosto com a ponta dos dedos, suave, como se me despedisse de um sonho.

— Eu não vou te cobrar que me espere, Luana. Mas também não vou abrir mão de mim para ser o que os outros querem. Eu preciso ser quem eu sou.

Luana limpou as lágrimas que escorriam por sua bochecha e caminhou até a porta. Ela me encarou uma última vez, mas sem dizer nada. Ela apenas girou a maçaneta, abriu a porta e eu entendi o recado. Saí com o coração apertado e a garganta travada. João Gabriel escolhia seu próprio caminho. E, provavelmente, sozinho.

Fui bem recebido na Três Barras. Acordava antes do sol, com o canto das saracuras rasgando o silêncio e o cheiro de curral molhado tomando conta do ar. A vida era dura, mas justa. Ninguém ali estava brincando de viver. E era disso que eu precisava.

Comecei limpando cocheira, carregando fardo de ração, lavando bebedouro e aprendendo, com cada tarefa, que a mudança também ensina. Não reclamei de nada. O suor escorria pelo rosto, o corpo doía, e a mente, muito agitada, ainda não seguia a nova rotina. Apesar de tudo, principalmente da falta da Luana, eu sentia que estava onde deveria estar.

Os peões me olhavam com desconfiança, no início. Um ou outro soltava piada, testava meu jeito. Mas fui respondendo com trabalho, não com palavra. E logo eles começaram a me incluir. Sentava com eles na hora do café, ouvia as histórias, os causos, as verdades cruas do mundo do rodeio.

Foi ali que conheci Adriano, peão antigo da casa, veterano do circuito. Colecionava cicatrizes no rosto e no peito, mas também uma sabedoria que vinha do chão batido e do lombo da montaria.

— Rodeio não é sobre quem aguenta mais dor, João — Ele me disse, numa tarde em que a gente ensaiava o laço. — É sobre saber cair também. Saber a hora de parar. Porque se você só pensa em ficar em cima do bicho, uma hora a vida te joga de cara no chão.

Eu escutava tudo, guardava. Cada conselho era como se fosse ouro escondido entre a palha.

Treinava sempre no fim da tarde, quando o serviço do dia terminava. Primeiro os cavalos, onde aprendi a ler o temperamento de cada um, a reconhecer o momento certo de montar, o jeito de respirar junto com o bicho. Depois vieram os touros mais leves, de treino. A cada montaria, eu sentia o corpo e a mente se alinhando.

Zeca Barreto, o treinador, observava em silêncio. De vez em quando me chamava no canto, corrigia uma postura, uma pegada, dava instrução firme.

— Tu tem talento, João. Mas talento sem disciplina vira acidente. E o rodeio não perdoa os distraídos.

— Eu tô focado. — Eu respondia. — É a única coisa que eu tenho agora.

Os dias viraram semanas. A barba crescia sem pressa, a mão ficava mais calejada, o corpo mais firme. E, aos poucos, eu me sentia parte daquilo. Um dos peões. Um deles. Evitava sair da fazenda, o peito chegava a doer de saudade da Luana. Ela também não me procurava.

Meu pai, Silvinha e, até mesmo dona Helena, vieram algumas vezes tentar falar comigo, mas eu pedia para não me chamarem. Não estava pronto para falar com ninguém. Não precisava do drama.

Mas a vida, como todos sabem, não dá nada de mão beijada. Certa tarde, durante um treino, um dos rapazes — o Beto, novo, afoito, com mais coragem que juízo — insistiu em montar num touro que não era para ele ainda. Ninguém conseguiu segurar.

O sol ainda queimava quando o Beto subiu no “Esmeril”, um touro nervoso que até os mais experientes tratavam com cuidado. Era dia de treino, nada oficial, mas ele estava afoito, querendo provar pra todo mundo, ou talvez pra si mesmo, que já era homem para encarar o bicho.

Zeca gritou de longe:

— Beto! Esse não é pra você, rapaz. Espera mais! Cê ainda tá verde.

Mas o menino já estava agarrado à corda, com os olhos acesos demais. Ninguém percebeu, ocupados com seus próprios afazeres. Quando a porteira abriu, o mundo virou um caos. O touro pulou alto, girou seco e, no segundo salto Beto voou como boneco. Caiu de mal jeito, de costas e antes que pudesse levantar, o touro voltou e pisou. Não uma. Não duas. Mas três vezes. Um estalo abafado. Grito de agonia. E depois, silêncio.

Corremos. Eu fui o primeiro a chegar. O corpo dele tremia, a boca sangrava, e ele nem conseguia gritar direito. Os olhos vidrados de dor.

— Chama o carro! Chama agora! — Berrei.

Após os primeiros socorros, feitos por um veterinário mesmo, levamos ele às pressas. Eu sentei no banco de trás da caminhonete, com ele deitado nas minhas pernas, o corpo mole, a camiseta manchada de vermelho. Pressionei o pano para estancar o sangue, assim como me foi ordenado, falava com ele o tempo todo, tentando mantê-lo acordado.

A estrada até a cidade era curta, mas naquele momento parecia infinita. Quando chegamos, já era fim de tarde e o pátio estava cheio. Enquanto os enfermeiros corriam com a maca, saí da caminhonete, ofegante, com as mãos e a camisa marcadas de sangue.

Foi quando ouvi a voz:

— João?!

Virei. Luana estava na porta do posto, de jaleco, com os olhos arregalados. O olhar desceu para minha roupa e ela cambaleou um passo.

— João, pelo amor de Deus!

Ela correu até mim, já com a mão trêmula no meu peito, procurando ferimento, apertando os ombros.

— Onde foi? Onde você tá machucado?

— Ei, calma … calma, Luana … — Segurei os pulsos dela. — Não é meu, tá? O sangue não é meu.

Ela parou, mas os olhos ainda tremiam.

— Então, de quem é? — Perguntou quase sem voz.

— Do Beto. Um menino da fazenda. O touro pisou nele. Ajudei a trazer. Ele tá lá dentro agora.

Ela olhou para a entrada do hospital, depois de novo pra mim. E as lágrimas começaram a descer.

— Tá vendo? É isso que eu falo! É isso! Hoje é o Beto. Amanhã pode ser você, João! E aí? Vai ser eu te puxando de cima de uma maca, em desespero? — Ela socava o meu peito, em desespero.

— Eu sei que é perigoso … já falamos sobre isso …

— Não, você não sabe. — Ela me interrompeu, furiosa. — Você sente, mas não entende. Quem entende sou eu. Eu vejo o que sobra depois do tombo. Os que ficam … os que não voltam a andar. Os que não reconhecem mais o próprio nome.

Fiquei em silêncio. O cansaço pesando no corpo e nas palavras.

— Eu não tô brincando de ser peão — Falei. — É a única coisa que me faz sentir inteiro agora. E eu entendo sua dor, mas se você me amar mesmo … vai ter que entender a minha dor também.

Ela olhou para mim com os olhos cheios de tudo: amor, raiva, desespero.

— Eu te amo, João. Por isso tenho medo. Medo de você se tornar só mais um rosto que eu me lembro com dor.

Fiquei ali parado, vendo-a voltar para o posto, levando o medo dela junto. E eu fiquei com o meu.

A vida de peão é feita de oito segundos e decisões que duram pra sempre.

Ela voltou minutos depois, com o passo firme, mas os olhos ainda molhados. Me encontrou parado na calçada, o corpo sujo de sangue alheio, a alma mais cansada do que qualquer músculo. Luana veio direto, sem pedir licença, e pegou minha mão com força.

— Vem comigo.

— Luana … — Comecei, mas ela me cortou, sem encarar.

— Não quero ouvir. Só vem. Agora!

Não discuti. Me deixei ser puxado, como quem finalmente entrega as armas. Caminhamos em silêncio até a casa dela. Entrei com a mesma roupa do acidente, mas ela não pareceu se importar. Trancou a porta, virou pra mim, respirou fundo … e ali, sem forças para discutir, me olhou nos olhos com ternura e dor misturadas.

— Eu sei que você não vai desistir. — Disse, num sussurro cansado. — Eu entendi isso hoje. Você é assim. Vai até o fim, mesmo sangrando.

Tentei abrir a boca, mas ela levantou a mão.

— Só fica quieto, João. Pelo menos hoje. Não fala de rodeio, de peão, de perigo. Não fala nada. Eu não quero sua promessa. Não quero sua explicação.

Dei um passo à frente, e ela veio junto.

— Eu só quero você aqui. — Ela continuou, a voz embargando. — Faz um mês que a gente não se vê. Um mês de saudade apertando, de medo rondando. E hoje … vendo você ali, sujo de sangue, foi como se o mundo tivesse me avisado que eu não aguentaria te perder.

Senti o peito arder. Me aproximei mais e segurei o rosto dela entre as mãos.

— Luana …

— Shhhh… — ela interrompeu, encostando a testa na minha. — Só fica. Só me abraça.

E foi o que eu fiz. A envolvi com força, com todo o sentimento que não sabia dizer em palavras. Apertei ela contra o peito como quem segura o próprio coração com os braços. O silêncio entre nós era um abrigo. Não era reconciliação. Não era despedida. Era necessidade.

Aquela noite não precisava de respostas. Só precisava de presença. E eu estava ali. Inteiro de corpo, mas a alma em pedaços. Ferido, mas vivo. Nos braços dela, por um instante, o mundo deixou de doer.

O silêncio entre nós era quente, denso, cheio de coisa não dita. Depois daquele abraço longo, Luana se afastou só o bastante pra me olhar de novo, com os olhos mais calmos, mas ainda carregados de algo que nem ela sabia nomear.

— Vem … vamos tirar essa roupa. — Disse, num tom baixo, quase um carinho sussurrado.

Ela pegou na barra da minha camisa manchada de sangue seco e começou a puxar com cuidado. O pano desgrudava da pele devagar, como se ela quisesse tirar mais do que sujeira. Como se quisesse arrancar o susto, a tensão, a dor.

Quando a camisa saiu, ela passou os dedos de leve pelo meu ombro, depois desceu pela cicatriz antiga no meu peito. Me olhava com delicadeza, como se cada marca contasse uma história que ela queria ouvir com os olhos.

Ela se ajoelhou para soltar os cadarços das botas, depois desabotoou minha calça sem pressa. Eu sentia o coração bater forte, mas era diferente, não era só desejo. Era necessidade de pertencimento, de contato, de vida pulsando no meio do caos.

Fiquei ali, quase nu, exposto, mas não vulnerável. Só entregue. Ela tirou minha cueca e admirou meu corpo por alguns segundos.

— Vem. Vai te fazer bem.

Ela me fez entrar no box e abriu o chuveiro. A água morna começou a cair, preenchendo o espaço com vapor. Eu entrei, sentindo cada gota bater na pele como uma espécie de batismo.

Ela ficou um tempo parada na porta, só me olhando. E então, se despiu completamente, revelando cada detalhe daquele corpo sensual, incrivelmente belo e harmonioso.

— Eu tô aqui, João. Mesmo com medo … ainda tô aqui.

Ela me abraçou, deixando a água morna lavar a tensão. Foi impossível conter a ereção, e o pau cresceu rápido, se acomodando entre as pernas dela, fazendo ponte para a xoxota.

— Hummm … Você promete que vai ser carinhoso comigo? — Ela pediu.

Eu não estava acreditando que aquilo acontecia.

— Mas você disse … que só se entregaria ao seu marido …

Ela me beijou, calma e decidida, e então disse:

— É só você me fazer sua esposa, ué …

Continua …

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Comentários

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Ainda bem que voltou, meu caro. Mais um excelente capítulo, to bem apegado a essa história já hahaha

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Quase um mês pra postar a continuação,já tinha esquecido boa parte da história. Não sei se irei continuar,li esse capítulo voando sobre os acontecimentos passados.

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Owww meu amigo, que top... Bom demais

Eu como sou um grande apreciador de dramas, estou me deliciando.

Esse capitulo em especial achei o máximo.

A parte de cemitério me doeu na alma.

Claro que estamos lendo "contos eróticos" e sempre esperamos por transas deliciosas, mas nesse capitulo não fez falta alguma, acho até que ficaria estranho, então o corte no banho foi providencial.

Parabéns pela história e Claro super ansioso pela continuação.

Grande abraço

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Mais uma vez parabéns capítulo muito bom, esperando ancioso pelo próximo capítulo.

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Excelente capitulo emocionante historia promete muitas emoções

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Bruto, mas com suavidade intrínseca, aventureiro, mas com reconforto fraternal, lúdico, mas com aura sensual, leitura fluída, mas com vislumbre poético. Só me resta parabenizar.

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Eeeeee João!!! Tomando jeito! Muito bom!

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