O Festival Folclórico de Parintins havia seguido conforme o previsto: três noites de embate entre os bois-bumbás mais icônicos do Brasil, com um único acidente que, ironicamente, revelou a verdadeira força do evento — a união entre as equipes, mesmo em meio à rivalidade ferrenha.
Na terceira noite, enquanto os paikicés do Caprichoso organizavam a entrada das alegorias no Bumbódromo, uma das estruturas, o módulo da Iara, pegou fogo de forma repentina. Chamas se alastraram por parte da escultura cenográfica, gerando gritos e correria. Porém, antes que o desespero tomasse conta, os kaçauerés do Garantido — empurradores das alegorias vermelhas — correram para ajudar. Juntos, seguraram as estruturas em colapso, trazendo baldes de água e abafadores improvisados com lonas.
Mais tarde, em entrevista à rádio local, Ribeiro, presidente do Caprichoso, resumiu o sentimento geral com sabedoria:
— A rivalidade fica dentro da arena. Lá fora, o que prevalece é o Festival dos bois.
Otaviano, presidente do Garantido, também se pronunciou:
— Eles ajudaram a salvar nossa noite. E nós retribuímos. Quando a roda de uma das nossas alegorias quebrou, foram eles que fizeram a força extra para que ela entrasse. Gratidão define.
Agora, dentro da sala de imprensa do Bumbódromo, a tensão pairava no ar. Era segunda-feira, o dia mais aguardado e temido: a apuração das notas. Representantes das duas agremiações, jurados e jornalistas estavam reunidos, atentos. Um telão estava posicionado ao centro e, atrás dele, uma longa mesa acomodava os fiscais e a comissão organizadora. A regra era clara: 21 itens avaliados, notas de 0 a 10 com casas decimais, e a soma das três noites determinaria o campeão.
Otaviano limpava o suor da testa com um pano azul, inquieto.
— Por que essa porcaria ainda não começou? — resmungou.
— Calma, pai. — pediu Jonas, embora seu tom traísse a ansiedade. Estava tão nervoso quanto ele, talvez mais.
Do lado de fora, Cauê, impedido de participar por ser parte da comissão artística do Caprichoso, assistia de outro ponto do Bumbódromo, onde um grande telão transmitiria a apuração. Estava cercado de músicos e companheiros de equipe. Mãos suadas, pernas inquietas, olhos atentos. Pegou o celular e assistiu, com um sorriso sereno, uma entrevista que sua mãe, Milena, dera na última noite. Ela falava sobre emoção, sobre entrega. Ele sabia: os palcos eram o destino natural dela.
Milena, por sua vez, havia escolhido o Curral do Garantido para acompanhar o resultado. Lá, centenas de torcedores já se reuniam, batucando tambores e entoando toadas. Com ou sem vitória, haveria festa. Assim era Parintins.
A transmissão começou. A apresentadora surgiu em cena, enfeitada com penas coloridas e uma maquiagem exuberante. Sua voz era firme, embora animada:
— Boa tarde, Amazonas, Brasil! Estamos ao vivo para a apuração oficial do Festival Folclórico de Parintins! Vamos rever as regras e lembrar da seriedade do julgamento. São 21 itens avaliados por nossos jurados especializados. Vence o boi com maior soma ao fim das três noites.
As câmeras mostravam o público nas arquibancadas, vibrando. Os envelopes começaram a ser abertos. Um a um, os nomes dos itens foram lidos, as notas exibidas.
Primeira noite:
Caprichoso — 419,8
Garantido — 419,6
Gritos e aplausos ecoaram do lado azul. Jonas respirou fundo, aliviado. Otaviano deu um pequeno sorriso, contido, como se não quisesse se iludir cedo demais.
Segunda noite:
Garantido — 419,5
Caprichoso — 419,3
Agora foi a vez do lado vermelho vibrar. Milena pulava no meio da multidão do curral. Cauê apertou os lábios. Empate técnico.
A apresentadora voltou ao centro da imagem.
— Empate! Eita, galera, falta pouco para conhecermos quem vai ser o campeão do Festival Folclórico de Parintins. Voltamos já, não saiam daí! — disse com um sorriso que não escondia a tensão do momento.
Cauê olhou para William, seu companheiro de percussão.
— E o que acontece se empatar?
— Os dois são campeões. — respondeu William, com os braços cruzados.
— Já aconteceu antes?
William fez que sim com a cabeça e mostrou no celular uma imagem emblemática: Ribeiro e Otaviano no palanque, lado a lado, segurando o troféu em um ano de empate. Nenhum dos dois sorria. Era um retrato da frustração compartilhada.
— Caramba... — murmurou Cauê, fitando a imagem. — Nunca vi o chefe tão triste.
— Pois é. Foi um ano horrível.
No ar, uma pausa. A tensão aumentava. Restava apenas uma noite, uma chance, um suspiro. E ainda que a rivalidade fosse real, todos sabiam que ali, naquele exato momento, Parintins respirava uma única coisa: paixão.
Dentro da sala de imprensa, a perna de Jonas não parava de balançar, como se quisesse correr para o futuro e descobrir logo o desfecho. O coração apertado batia no ritmo das expectativas. Ele queria a vitória — mais do que isso, ele precisava dela. Aquele ano tinha sido diferente. Pela primeira vez, ele sentiu que carregava nas costas o peso simbólico de colocar o Caprichoso dentro do Bumbódromo. Talvez fosse pretensão, talvez só ousadia de quem sempre sonhou alto. Mas, no íntimo, Jonas acreditava que o universo lhe devia esse momento.
A transmissão recomeçou. As luzes da sala se intensificaram e o silêncio pesado tomou conta do ambiente. A contagem de votos teve início, e cada número anunciado desenhava um cenário imprevisível. Décimos de diferença separavam a glória do fracasso. Entre os itens individuais, as batalhas também se desenrolavam — Milena, por exemplo, conquistou a vitória como Levantadora de Toadas, vencendo Sérgio por apenas dois décimos. A emoção bateu de surpresa. No curral, o grito dos torcedores do Garantido ecoou como uma onda.
Milena, confusa a princípio, só entendeu o que acontecia ao ver os olhos marejados dos colegas e sentir os abraços apertados ao seu redor. Ela havia vencido. Assim como ela, outros itens do Garantido brilharam: cunhã-poranga, pajé, apresentador. Mas o Caprichoso não ficou para trás — conquistou o Amo do Boi, a sinhazinha da fazenda e a porta-estandarte. Era um embate acirrado, como poucos já vistos.
No Bumbódromo, a tensão atingia o ápice. As três últimas notas seriam decisivas. O placar geral oscilava entre esperança e desespero. Quando a apresentadora leu o último "nota 10", o nome do boi vencedor foi anunciado.
O chão pareceu tremer.
Alguns gritaram, outros choraram. Houve quem permanecesse imóvel, em choque. Os músicos do Garantido explodiram em festa, e William começou a pular como uma criança. Cauê demorou alguns segundos para processar, mas, ao ver os colegas em êxtase, entendeu: o Garantido era o campeão do Festival de Parintins. Um sorriso alargou seu rosto, e ele se juntou à celebração.
— Vamos! — gritou William, puxando os amigos rumo à saída. O caminhão aguardava para levar o grupo em desfile do Bumbódromo até o Curral.
Cauê correu atrás dos amigos, mas algo o fez diminuir o passo. A poucos metros, avistou Jonas. Estava parado, imóvel. Ao seu lado, Otaviano mantinha uma expressão cerrada de frustração. Ele acenou brevemente e seguiu em direção à área interna, junto da equipe do Caprichoso.
Jonas, por sua vez, olhou para Cauê. Sorriu — ou tentou sorrir. Mas o sorriso não se sustentou. Lágrimas silenciosas começaram a escorrer, traçando caminhos lentos pelo rosto abatido. A expressão que antes carregava orgulho e esperança, agora cedia lugar ao peso da derrota.
Cauê parou. O coração apertou ao ver o quanto aquela derrota doía. Sem pensar duas vezes, atravessou o corredor e foi até o namorado. Sem dizer uma palavra, o abraçou com força. Não importava quem estivesse olhando. Naquele instante, só existia Jonas — e a dor que ele carregava.
Cauê sabia. Sabia das madrugadas sem dormir, das reuniões tensas, dos detalhes revistos mil vezes, da pressão que Jonas colocou sobre si mesmo. Sabia de cada tentativa de fazer tudo dar certo. E agora, ele só queria ser abrigo.
Jonas afundou o rosto no ombro de Cauê. Chorou em silêncio, como quem se permite desabar apenas nos braços de quem ama. Os dois permaneceram abraçados por longos minutos, enquanto o mundo ao redor parecia girar em outra velocidade.
Cauê apenas o envolvia com carinho, passando os dedos devagar pelos fios do cabelo suado e murmurando palavras que não precisavam ser ditas. Às vezes, o consolo não está nos discursos, mas na presença. E naquela noite, entre o som dos tambores e dos fogos ao longe, o que salvou Jonas do abismo foi um abraço.
— Vai, meu amor. — balbuciou Jonas, a voz embargada, antes de limpar as próprias lágrimas e encarar Cauê com doçura. — Vai com teus amigos. Vai comemorar a vitória do teu boi.
— Jonas, eu não...
— Precisa sim. Eu te amo, tu sabe, né? — disse, tocando o rosto do namorado com delicadeza, como se quisesse guardar aquela memória na pele. Sorriu, e dessa vez o sorriso era leve, apaixonado, cheio de gratidão. — Tu dá sentido à minha vida, mas eu preciso desse momento pra mim. Amanhã, eu quero te ver.
— Eu também te amo. — respondeu Cauê, antes de puxá-lo para um beijo. Um beijo que misturava entrega e despedida, desejo e promessa. Um beijo lento, apaixonado, selvagem, daqueles que selam destinos.
— Vão pra um quarto! — gritou alguém, arrancando uma risada abafada dos dois.
Sem dizer mais nada, Cauê se afastou. O coração ainda palpitava com a intensidade do momento, mas agora batia no ritmo frenético da vitória. Seguiu pela rua em direção ao caminhão onde o troféu do Garantido seria transportado até o Curral. Era tradição: o boi campeão desfilava pelas ruas de Parintins, levando consigo a alegria e o orgulho de um povo inteiro.
Com a ajuda dos amigos, Cauê subiu no caminhão, e quando os primeiros acordes da toada tocaram no sistema de som, ele não se conteve. Gritou, dançou, ergueu os braços. O coração parecia vibrar junto com os tambores e os gritos da multidão. A cidade inteira parecia respirar junto com ele.
No Curral do Garantido, o vermelho e branco tremulava com intensidade nas bandeiras, nos corpos pintados, nos olhos brilhantes de quem resistiu e venceu. Aquela não era uma simples festa. Era um rito ancestral. Os batuques pareciam vir do centro da terra, cruzando gerações até ecoarem ali, na alma vibrante da ilha.
Milhares cantavam em uníssono, suas vozes cortando o ar quente e úmido da floresta. A toada da vitória misturava-se aos choros emocionados e aos gritos de alívio. O chão de terra batida tremia com os passos dos brincantes. Dançavam como se tomados por uma força divina, movidos por fé, suor e paixão. No palco improvisado, os itens oficiais surgiam entre lágrimas e fogos de artifício. A Sinhazinha da Fazenda ergueu os braços como se coroada pelo próprio povo, enquanto o Amo do Boi conduzia o coro de milhares.
Havia abraços apertados, copos de cerveja erguidos ao céu, crianças nos ombros dos pais, idosos de olhos marejados que não arredavam pé — como se aquela noite fosse o ápice de uma vida inteira de fé. A alma do Garantido pulsava em cada canto, em cada canto.
E foi no meio daquele mar vermelho que o troféu chegou. Brilhante sob a luz dos refletores, ele reluzia como uma joia sagrada. Um caminhão decorado, envolto em flores e bandeiras, trouxe o símbolo da vitória em meio à euforia geral. Milena já estava no palco, sua voz potente ecoando as toadas que marcaram aquele ano. Cada verso que ela cantava era devolvido em coro por uma multidão embriagada de alegria.
Logo atrás do troféu, um caminhão frigorífico encostou: mil litros de cerveja, oferecidos por uma marca local, como presente pela vitória. Foi o estopim. Copos se ergueram, jorraram brindes e promessas de amor eterno ao boi do coração valente.
Cauê desceu do caminhão e, ao encontrar a mãe, correu para abraçá-la com força. Eron e César já estavam ali, celebrando, com os olhos brilhando de emoção. A família estava unida — rindo, chorando, cantando — naquele instante em que tudo fazia sentido.
Eron, que em outros tempos duvidara da viagem, agora olhava para a esposa e para o filho com orgulho. Ele os amava profundamente e, ali, naquela festa desmedida, reconhecia o valor da entrega, da fé e da coragem. Sentia-se parte de algo maior, algo que nascia da alma e que só quem vive Parintins podia entender.
Ribeiro, com os olhos marejados, pediu silêncio e subiu ao palco improvisado para discursar. Seu timbre firme rasgou o ar da noite:
— Hoje estamos celebrando a união do Garantido! — gritou, levantando o troféu. — Esse troféu é mais do que uma vitória, é um símbolo da nossa resistência, da nossa força, da nossa união! Quero agradecer a cada um que colaborou, de alguma forma, para esse momento. Hoje vencemos juntos, e no próximo sábado, vamos continuar a celebração em Manaus. Porque todos nós somos vencedores... e todos nós merecemos comemorar!
A multidão explodiu. Fogos cortaram o céu. A bandeira do Garantido rodopiava no alto, solta no ar, como se dançasse com o vento e com os espíritos da floresta. Sob o luar amazônico, o Curral era mais do que um ponto de chegada: era um encontro de família. Um santuário da cultura, da emoção e da identidade.
***
E quem disse que o clima do lado azul era de enterro?
No curral do Caprichoso, a música ainda tocava. Não havia choro ou lamentações públicas — havia dignidade. Havia força. No palco, Otaviano segurava firme o microfone, o suor escorrendo pela têmpora, mas o peito inflado de orgulho.
— Este ano, eu não saio da Arena com a sensação de derrota. — disse com a voz firme, encarando os olhos da multidão que vestia azul com tanto orgulho quanto ele. — A gente deu um show no Bumbódromo e nunca fiquei tão orgulhoso de vestir essa camisa.
Puxou a própria camisa do Caprichoso com força, como se quisesse colar aquele símbolo ao coração.
— Ano que vem, vai ser o meu último ano à frente do Caprichoso, por isso nós vamos fazer o show da nossa vida. Então, não fiquem tristes ou chorem. A cultura amazônica continua viva no Caprichoso! Vamo lá, Sérgio! Vamos agitar nossa torcida!
A multidão respondeu com palmas, gritos, batuques, como se o boi estivesse ali, vivo, pulsando junto a cada coração que formava aquela tribo azul.
— E me conta, como estão as coisas com o Cauê? — Perguntou Kelly, a sinhazinha do Caprichoso, além de ser grande amiga de Jonas.
— Estão ótimas. — Respondeu Jonas. — Inclusive, vamos sair essa semana. Queremos desestressar do festival. Tá afim? — Convidou o rapaz.
— Claro. Quem sabe não tem algum amigo dele do Garantido que valha a pena. — Brincou a moça.
— Amiga, não faça isso. É um pesadelo. — Aconselhou Jonas rindo.
— O teu pai vai embora? — Kelly apontou para frente.
Otaviano desceu do palco sem alarde e seguiu para seu escritório. Assim que fechou a porta, o som da festa virou ruído distante. Ele respirou fundo e olhou ao redor. Ali estavam os troféus, os projetos pendurados nas paredes, os mapas de arena, os croquis de alegorias — três vitórias seguidas. Um legado que ele mesmo ajudara a esculpir com sangue, lágrimas e tambor.
Caminhou até uma prateleira e puxou um álbum antigo. Ao folhear as páginas, se viu jovem novamente — olhos inquietos, pose de líder, sorriso maroto. Sorriu ao perceber a semelhança entre aquela imagem e Jonas.
— Nem tem como dizer que sou adotado, velho enxerido. — brincou Jonas, surgindo repentinamente na porta.
Otaviano levou um susto, mas logo se recompôs e se levantou, puxando a orelha do filho com carinho disfarçado de bronca.
— Que isso, garoto! Sou velho, mas ainda te dou uma surra.
— É uma brincadeira, paizinho. — Jonas riu, abaixando-se até ficar de joelhos, numa reverência afetiva.
Otaviano balançou a cabeça com um sorriso e foi até a janela. Lá fora, a festa continuava.
— Será que eu decepcionei eles?
— Claro que não, coroa. Tu nos conduziu bem. Infelizmente, essas coisas acontecem. — Jonas disse com sinceridade, aproximando-se.
Otaviano manteve o olhar na festa, mas sua mente já estava em outro lugar.
— O Cauê te faz bem, né?
Jonas sorriu, aquele sorriso tímido que guardava para as coisas que realmente lhe importavam.
— Um bem danado. Ele é um garoto enxerido que me deu tanto sem pedir nada em troca.
Otaviano assentiu, como quem reconhece uma verdade que só se revela com o tempo.
— Fico feliz por vocês, Jonas. Não deixe esse garoto enxerido fugir. Mesmo ele sendo... ele sendo...
— Deixa essa parte quieta, pai. — interrompeu Jonas, respeitoso, mas firme. — Sabe, hoje quando o Caprichoso perdeu eu senti um aperto tão grande no peito, mas o abraço do Cauê fez tudo ficar tão bem. Eu sei que tenho um bocado de defeitos, mas estou tentando. Eu juro.
Otaviano se virou. Viu o filho com os olhos úmidos, e naquele instante, ele já não via o menino teimoso de antes, mas um homem — um homem que ousava amar, que ousava mudar, mesmo carregando suas dores.
— Eu sei, curumim enxerido. Eu sei. — E o abraçou com força, como quem protege, como quem se despede de um fardo antigo.
— Obrigado por tudo, pai. Eu te amo. — Jonas murmurou, emocionado.
— Eu também te amo, Jonas.
Ali, entre o peso da perda e o consolo do amor, pai e filho entenderam que nem toda vitória precisa de um troféu para ser celebrada. Às vezes, vencer é apenas reconhecer a força de continuar, de amar apesar dos medos, de não se perder no próprio orgulho.
No Caprichoso, naquela noite, não havia troféu — mas havia afeto, coragem, herança e esperança.
E, afinal, são essas as pequenas vitórias que mantêm a cultura viva, e os corações também.