Ficar ou não ficar?... - Parte 4

Um conto erótico de Paulinho (Por Mark da Nanda)
Categoria: Heterossexual
Contém 3627 palavras
Data: 21/07/2025 19:19:03

Suas palavras eram um desafio, mas também uma súplica, e eu, pobre tolo, me vi tocado por um sentimento que ainda ardia no meu peito. Mas, pelo menos, vi que no peito dela, em volta do pescoço, o colar com o pingente já não mais repousava e talvez isso pudesse ser o meu alento.

[CONTINUANDO]

Seis meses se passaram desde aquela noite à beira do rio, onde Emilinha me deixou flutuando com suas palavras enquanto um docinho de abóbora afundava nas águas escuras do rio que corta Passa-Vinte. O tempo, esse tirano que não respeita corações partidos, correu como o vento que varre os morros, rápido, mas deixando um rastro de poeira que não assenta. Eu, teimoso como mula de roça, não queria, mas voltei a andar com Emilinha, já que agora ela não parecia querer me dar paz, mas foi aos poucos, como quem pisa em chão rachado, temendo que se quebre de vez.

Não foi fácil, confesso. Nossos encontros, no começo, eram cheios de silêncios, daqueles que falam mais que as palavras, que gritam dúvidas e sussurram promessas frágeis. Mas o amor, esse bicho danado de complicado, como ela mesma me disse, tem um jeito de costurar o que foi rasgado. Aos poucos, voltamos a conversar mais tranquilamente, a passear até altas horas na praça, nossas mãos se encontraram na vida, e os risos, antes tímidos, já ecoavam como nos dias de criança, quando o mundo era só bolinha de gude e risada solta.

Eu queria crer que o pior tinha ficado pra trás. A imagem da varanda, aquele vulto que talvez fosse um beijo, ou talvez somente uma brincadeira sem graça da danada da lua, empurrei pro canto mais escuro da minha cabeça, como uma enxada quebrada jogada na tulha. Emilinha, com seus olhos que agora não pareciam guardar mistérios e aquele perfume de jasmim que me fazia tremer as pernas, parecia mais presente, mais disposta, mais minha, ou seria o que meu coração, tolo que é, queria acreditar?

As prosas na pracinha, os doces de abóbora divididos à beira do rio, os olhares trocados na missa de domingo, tudo apontava pra uma reconciliação. O colar com o pingente de coração, aquele que o talzinho do Leonardo deu, não brilhava mais no pescoço dela, e isso, pra mim, era um sinal de que ele, com seu jipe reluzente e suas histórias de Beagá, tinha virado passado. Mas, quem já amou sabe: os olhos se enganam, o coração aceita fácil, mas o ciúme... Há! Esse bicho traiçoeiro, nunca dorme de verdade. E foi assim que, numa tarde quente de janeiro, com o sol de Passa-Vinte derretendo até as ideias, que decidi tomar uma decisão que mudaria de vez a minha vida, mas resolvi antes abrir meu peito pro meu pai, Seu Ciro.

Ele estava no quintal, como sempre, afiando uma enxada, o som da pedra no metal marcando o silêncio, como se o mundo esperasse minha coragem. Cocei a nuca, com a voz tremendo, e falei:

- Pai, eu tô pensando num trem aqui... Ó só, eu... tava pensando em dar um passo além com a Emilinha.

Meu pai parou a pedra, olhou para mim, ergueu uma sobrancelha e coçou a cabeça, com aquele olhar matuto que misturava desconfiança e uma ironia que ele nem sabia que tinha:

- Passo além!? - Disse, com um meio sorriso que parecia rir de mim e do mundo. - Cê tá querendo fazer safadeza com a moça, Paulo?

Fiquei roxo, balançando as mãos como se espantasse um enxame de abelhas:

- Ara! Claro que não, pai! - Retruquei, mas um sorriso travesso escapou, me traindo: - Ainda não, né?... Mas não é isso não, pai! Ara, sô! Eu tô pensando em pedir a Emilinha em casamento, pra gente ficar noivo.

Ciro arregalou os olhos e soltou uma gargalhada tão alta que as galinhas no terreiro cacarejaram em protesto, como se quisessem me defender de tamanha maldade:

- Noivo, Paulinho!? Uai, menino, cê tá querendo crescer rápido demais, tá não? - Disse, limpando uma lágrima de riso com as costas da mão: - Mas tá certo disso mesmo? Ó lá, hein!? É um pedido sério esse que cê tá considerando... A Emilinha é moça direita, filha dos nossos amigos. Tem que ter uma baita certeza...

Suspirei, olhando pros morros distantes, onde o verde parecia esconder as respostas que eu buscava:

- Eu sei, pai, mas eu amo aquela menina! Mesmo com tudo que aconteceu, que... Bão, já ficou pra trás. Eu sinto que é ela. Eu sei que é ela. Quero mostrar que sou homem de valor, que posso cuidar dela, como o senhor disse.

Ciro parou de rir, mas o sorriso ainda dançava nos olhos. Ele me olhou como se visse um pedaço da sua própria juventude, quando ele mesmo, talvez, sonhara um dia com a minha mãe:

- Tá bão, fio. - Disse, com a voz mais séria, mas ainda com um toque leve, como quem sabe que a vida é mais riso que choro: - Se é isso que tu quer, vai ser, mas tem que ser do jeito certo... Mulher gosta de romantismo, mas não exagera, que senão vira palhaçada. Leva uma flor, fala com o coração... Mas, ó, fala com o Seu Zé Maria e a Dona Clara antes. Eles são à moda antiga. Sem a bênção deles, cê não vai a lugar nenhum. E, menino, cuidado com esse coração ciumento, que ele já quase te meteu em encrenca antes.

Sorri, sentindo o peito mais leve, embora o ciúme, que ele mencionou, desse um leve beliscão na alma. A ideia do noivado, embora me desse um frio na barriga, parecia o caminho certo pra resolver de vez qualquer dúvida do passado, do presente e do futuro. Imaginava Emilinha com um anel no dedo, os olhos brilhando de amor, e Passa-Vinte inteira comentando na venda do Seu Zé Formoso, com aquela fofoca que é o pão nosso de cada dia no interior. Era um sonho simples, mas, pra mim, era tudo.

Nos dias seguintes, me joguei nos preparativos. Com o dinheiro que juntei na roça, comprei um par de alianças de prata, simples, mas bonitas, na joalheria de São Tomé das Vinhas. Escolhi um buquê de rosas vermelhas, colhidas pela Dona Alzira, que tinha o jardim mais bonito da região. Ela só não deu com a língua nos dentes porque meu pai tava junto e exigiu discrição, com aquele olhar que fazia até os mais falantes calarem a boca. Comprei um terno xadrez, que o vendedor jurou que “era moda em Beagá”, e passei a camisa de linho com tanto capricho que meu pai zombou:

- Ara, Paulinho... Cê tá parecendo a noiva preparando o enxoval pro casório!

Rimos juntos, pai e filho, como não fazíamos desde que minha mãe partiu pra morada do pai celestial. Ciro também se arrumou, mas à moda dele: camisa de algodão bem passada, calça de brim limpa e o chapéu de palha trocado por um de feltro, comprado na feira de Pouso Verde de Cima.

No sábado seguinte, no meio de uma tarde quente, quase início da noite, saímos à pé rumo à casa de Emilinha. Eu levava o buquê numa mão e a caixinha das alianças na outra, o coração batendo como tambor de quadrilha. Chegamos ao portão, bem no pé da escada que dá para a varanda, e, como é costume no interior, batemos palmas pra nos anunciar:

- Ô de casa! - Gritou meu pai, com a voz grave ecoando forte.

Dona Clara apareceu na varanda, enxugando as mãos num avental. Ao nos ver, eu com as rosas e a caixinha, e meu pai todo arrumado, ela franziu a testa, surpresa, como se visse um fantasma:

- Boa tarde, Dona Clara! - Cumprimentei, portando o melhor sorriso que um homem nervoso poderia apresentar: - Vim falar com a Emilinha e... e com vocês também.

- Tarde... - Ela resmungou, parecendo mais perdida que gambá em perfumaria: - Mas... que cês tão fazendo aqui, Paulinho?

- Uai! Eu namoro a sua filha, Dona Clara, venho quase todo dia, lembra? - Falei, ainda sorrindo, mas sentindo um estranho calafrio na espinha, como se a lua, ainda que de dia, já quisesse zombar de mim outra vez:

- Uai digo eu, Paulinho.... - Ela se aproximou da muretinha da varanda, o olhar cada vez mais intrigado.

- Por que mesmo? - Perguntei, estranhando a prosa.

Aliás, vendo a expressão dela, o meu próprio sorriso murchou na cara, igual às rosas no calor daquele dia abafado:

- Emilinha tá aí? - Perguntei, com a voz já tremendo.

- Ela... - Dona Clara pigarreou, constrangida. - Ela... não tá. Ela foi pra Beagá...

- Beagá... a capital!? - Minha voz saiu mais alta que o planejado, elevada pelo ciúme que acordou rugindo forte no meu peito.

- Isso! - Confirmou Dona Clara, hesitante, como se soubesse que algo tava errado.

- Na casa do Leonardo? - Insisti, sentindo o chão tremer sob meus pés, ou talvez as minhas próprias pernas sobre o solo firme.

- Isso... - Ela respondeu e os olhos dela se arregalaram brevemente, como se tivesse percebido um engano, enfim.

Registro que há momentos na vida em que o coração para, e o mundo, esse tirano indiferente, segue girando. O buquê tremia na minha mão e a caixinha das alianças parecia pesar uma tonelada. Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Dona Clara chamou o marido:

- Zé! Ô Zé... Vem cá, homi! Tem visita querendo falar com a gente!

Os segundos até Seu Zé Maria aparecer pareceram anos. Ele veio, com a camisa de manga longa e o cinto de fivela grande brilhando como só. Ao me ver com o buquê e a caixinha, e meu pai tão sério quanto juiz de comarca, ambos muito bem trajados, melhor do que de dia santo, entendeu na hora o motivo da visita:

- Bão, Seu Ciro? Paulinho?... - Disse, tentando plantar alguma calma no desespero cada vez mais crescente em meu peito: - Vamo entrá, tomá um cafezin...

Dei um passo no rumo da casa, mas meu pai pôs a mão no meu ombro, me segurando fora, como se soubesse que o pior ainda estava por vir:

- Que tá acontecendo aqui, Paulinho? - Perguntou Seu Zé Maria, com um tom mais de pai preocupado que de curioso.

Eu, atordoado, tentei falar, mas as palavras tremiam. Meu pai, com a voz rude, tomou a frente:

- Cadê a menina Emilinha, Seu Zé? E que história é essa de moça direita viajar sozinha, ainda mais para Beagá?

Antes que Seu Zé respondesse, levantei a caixinha, com a voz falhando:

- Eu... vim falar com a Emilinha, Seu Zé. Queria... pedir ela em noivado.

A caixinha na minha mão dizia mais que mil palavras. Dona Clara e Seu Zé trocaram olhares e vi uma dor nascer, crescer e fazer morada no coração de minha quase futura, mas agora ex-sogra. A tensão só ficava cada vez mais pesada, pior do que o calor de janeiro. Dona Clara, com a voz tremendo, explicou:

- Paulinho, a Emilinha me disse que ocês tinham terminado. Inclusive, foi por isso que ela pediu pra passar uns dias na casa da irmã Valdete, lá na capital. Daí... Daí ontem, o... o Leonardo veio buscar ela e... ela foi...

Meu chão sumiu de vez. Olhei para o meu pai em pânico, uma dor tomando conta do meu peito que cheguei a pensar que fosse passar mal. O buquê tremia e a caixinha... essa já havia caído no chão há tempos. Peguei ela novamente, coloquei no bolso e suspirei fundo. Terminado? Como, se a gente tava bem? Ou teria sido eu, tolo que sou, enganado outra vez pelo meu coração? Emilinha, com seus olhos sorridentes, teria mentido pra mãe, pra mim, pra todos? Ou seria a vida, essa mestra cruel, rindo da minha esperança?

- Terminado!? - Repeti, com a voz fraca: - Mas a gente... a gente tava bem, Dona Clara. Tava tudo certo...

Seu Zé Maria, com o rosto vermelho de raiva, deu um tapa firme na muretinha de sua casa:

- Essa história tá muito estranha, Clara. Eu falei procê que tinha capivara nesse milharal. - Ele olhou pra Dona Clara, que balançou a cabeça, negando o óbvio, mas tão surpresa quanto ele: - Essa menina vai me ouvir, Paulinho! Isso não se faz com um rapaz direito como ocê!

- Não precisa, Seu Zé. - Falei, com uma calma que nem eu sabia de onde vinha agora, mas que fez até meu pai se calar e me olhar surpreso: - Eu entendi tudo. A vida tem dessas coisas...

- “Tem dessas coisas”!? Tem não, Paulinho! - Seu Zé bateu a mão novamente na mureta, derrubando um vasinho de planta que fez a madeira do piso da varanda ranger: - Essa a Dona Emilinha vai me explicar tim-tim por tim-tim!

Balancei a cabeça, negando novamente, com o coração partido, mas a voz firme:

- Essa conversa é do senhor com ela, Seu Zé. Se antes não tava terminado, agora tá. Eu paro por aqui. Desisto da sua filha.

Dona Clara, com lágrimas nos olhos, tentou apaziguar:

- Paulinho, por favor, fio, fica calmo. Deixa eu e o Zé Maria ir atrás dela. Deve de ter sido só um mal-entendido...

- É, Paulinho, entra, senta aqui, toma um cafezin, vamos proseá direitinho essa história... - Insistiu Seu Zé, apontando para dentro da varanda da sua casa.

Mas eu, com o orgulho ferido e o ciúme queimando como brasa, fui irredutível:

- Não, Seu Zé, Dona Clara. Gradeço demais tudo o que ocês fizeram, mas pra mim já deu. Se ela foi pra Beagá, pra casa do Leonardo, inventando essa história toda, é que ela não me escolheu. Eu não vou correr atrás de quem não me quer.

Subi os degraus da varanda e entreguei o buquê pra Dona Clara, num gesto que era mais uma despedida do que cortesia. Meu pai, que até então observava, pôs a mão no meu ombro assim que desci, como quem diz: “É isso, menino, agora é seguir em frente.”

A volta pra casa foi silenciosa, com a lua e apenas uma ou duas estrelas como testemunhas do meu sofrimento. As rosas, deixadas com Dona Clara, eram como um símbolo do que poderia ter sido, mas que, por um capricho do destino, ou da vontade de uma mulher caprichosa, deixou de ser.

Ao cruzar a ponte que corta Passa-Vinte, tirei a caixinha com as alianças do bolso e joguei com toda força rio adentro. Se o coração de uma mulher é um mistério como o fundo de um rio, que aquele ficasse guardado mais um. Meu pai não disse nada, mas sei que se doeu por mim, vi nos olhos dele, mas preferiu nada falar para não piorar o que já estava ruim. Era uma ferida funda e ele sabia que cicatriz assim endurece o couro e faz o homem crescer.

Chegando em casa, assim que entramos, meu pai quebrou o silêncio autoimposto:

- Paulinho, senta aqui. - Apontou pro nosso sofá de madeira rústica e tecido simples onde tantas prosas já foram travadas: - Tu tá com o coração partido, eu sei... Mas a vida não para, fio. Tu é jovem, é forte, é direito. Se a Emilinha não viu isso, o erro foi dela, não teu. Logo, logo, uma moça vai te enxergar como ocê merece e te dar um lar amoroso pro’cê chamar de seu.

Eu, com os olhos marejados, evitei encarar ele e só balancei a cabeça:

- Pai, eu achei que dessa vez era pra valer. Achei mesmo que a gente tava bem... Mas ela foi pra... pra casa do talzinho! Poxa, pai! O que foi que eu fiz pra merecer essa sina?

Ciro suspirou, coçando a barba rala, e me apertou de lado, ombro com ombro, num abraço raro entre nós:

- Ocê não fez nada, mas cê vai fazer: cê vai levantar a cabeça, Paulinho! Mulher é rio, já te disse... Tu nadou e tentou mergulhar, mas esse rio não era pro’cê. Agora, é hora de sair dessa correnteza, chacoalhar o couro e procurar outra margem. Cê é meu filho, tem meu sangue e gente de Ciro Sandoval Silva não se curva pra nada, nem ninguém.

Dei um sorriso amarelo, olhando de soslaio pro meu pai, mas as palavras dele, sábias que fossem, não apagavam a dor. O ciúme, aquele velho companheiro, voltou quase gritando: “Eu te disse, não te disse!?” Pois é, só quem já sofreu por amor sabe que o ciúme não precisa de provas: ele se alimenta de sombras e as sombras em Passa-Vinte são muitas.

Coisa de dois dias depois, uma poeira subiu na estrada de terra que corta Passa-Vinte. Um robusto Rural Willys, sujo, mas novo, parou na frente da nossa casa. Era um tio-avô da minha finada mãe, Seu Barnabé Bustamante, pecuarista famoso lá para as bandas de Goiás. Ele era uma figura digna de periódico: pernas finas, barriga saliente, cabelos brancos tingidos de um castanho acaju que lembrava um apresentador da televisão. Os olhos verdes não brilhavam, faiscavam, e a voz rouca e grave fazia até os bois mais bravos obedecerem. Desceu da condução, com um chapéu de couro que parecia ter vida própria, pois saiu voando e caiu no chão. Ele pegou o danado, bateu na própria calça, sujando-a, e abraçou meu pai, dando um sonoro tapa em suas costas que quase o derrubou:

- Ciro, seu cabra velho! Como tá essa vida boa, homi? - Disse, com um sorriso que mostrava dentes tortos, mas ainda assim cheios de carisma:

- Tô na luta, Barnabé! - Respondeu meu pai, rindo: - E ocê, seu bode velho? Faz o que por essas bandas?

Barnabé deu uma gostosa risada da provocação, pigarreou, cuspiu um catarro pra longe e disse:

- Tava resolvendo uns negócio em São Paulo e decidi passar pra ver a família, uai! E aproveitar pra tomar um café daqueles que espero que a Rosinha tenha te ensinado a passar!

Tomamos café com um bolo de aipim feito ainda de manhã, o primeiro que meu pai não queimava. Barnabé notou que eu estava calado, sentado num toco com a cara mais triste do que cachorro abandonado. Ele franziu a testa e resmungou:

- E esse menino, Ciro, que tá com cara de quem perdeu o gado na enchente?

Tentei disfarçar, mas Seu Barnabé não era homem de aceitar meias respostas, muito menos resposta nenhuma. Sentou do meu lado, tirou o chapéu e, com um olhar que não admitia desobediência, disse:

- Desembucha, rapaz! O que tá te dando essa gastura toda?

Meu pai, que observava de perto, deu-me um aceno, como quem dizia: “Fala, Paulinho, põe pra fora, que esse aí não desiste.” Sem escolha, contei tudo: Emilinha, a amizade, o namoro, o ciúme, a varanda, o colar, a tal ida para Beagá... Barnabé ouviu em silêncio, mastigando o terceiro pedaço de bolo, e quando terminei, deu uma risada estranha, meio seca, meio calma, que ecoou forte:

- Rapaz, tu é muito novo para sofrer de amor. Mas quer saber? Isso é bom! - Disse, batendo no meu joelho: - Quer dizer que tu tem coração, que tem sangue nas veias! Mas ó... Ficar aqui, chupando ponkan e chutando pedrinha, não vai te levar a lugar nenhum. Por que tu não vem comigo pra Goiás? Lá tem espaço, tem outros ares, tem trabalho... Sai um pouco daqui, menino! O coração se ajeita, cê vai ver...

Hesitei, olhando pra ele e depois pro meu pai, que coçou a nuca, pensativo:

- Tô certo ou num tô, Ciro? - Perguntou Barnabé, com um tom que já era quase uma ordem.

Meu pai suspirou, me olhando com uma mistura de preocupação e dor:

- Se é pra fazer o menino virar homem, Barnabé, e ele quiser...

Meu pai me olhava e eu não sabia o que responder. Ele mesmo continuou:

- E se ele for, cuida dele, hein? Que ele é meu orgulho. - Disse, com os olhos marejados.

Fiquei surpreso com as palavras do meu pai. Sabia que ele gostava de mim, mas nunca o tinha ouvido falar assim, com tanto carinho. Ainda ressabiado e após quase meia hora de insistência do Seu Barnabé, aceitei. Não porque eu queria deixar Passa-Vinte, mas porque sentia que, se ficasse, a dor me engoliria vivo.

Dois dias depois, eu jogava uma mala pequena no Rural Willys do Seu Barnabé. Antes de subir, virei pro meu pai e estendi a mão:

- Sua bênção, meu pai...

Os olhos do meu pai, que já marejavam desde o dia do convite feito pelo Seu Barnabé, deixaram a água cair, enfim. Por um instante, ele ficou apático e então ele não apertou minha mão, mas me puxou para um abraço que carregava toda a dor de não ter conseguido me proteger daquela ferida. Me apertou forte, como se não quisesse me deixar ir e beijou meu rosto com um ardor que eu nunca tinha sentido:

- Que Deus te abençoe, meu filho. - Disse, se afastando só o suficiente pra me olhar nos olhos: - Eu... Eu sou grosso, não sou bom com as palavra, mas sempre tive muito orgulho do’cê. E, ó... Tua mãe também tem, esteja onde estiver.

Meus olhos marejaram também. A saudade da minha mãe multiplicava a dor daquele momento. Só balancei a cabeça, concordando, sem condições de dizer uma única palavra:

- E, ó... – Meu pai se calou, pigarreando, ainda emocionado: - Não sei se já te falei, mas eu amo ocê, demais da conta.

Não aguentei mais e chorei, abraçando ele de volta. Foram segundos de lágrimas e uma alegria imensa que me uniu de verdade a ele. Barnabé assistia a tudo em silêncio de dentro do jipe. Enxuguei as lágrimas, subi na condução e olhei uma última vez pro meu pai, acenando, pra nossa casa, pros morros donde vinha aquele cheirinho de café. Partimos, deixando pra trás Passa-Vinte, com suas lembranças e mistérios não ditos.

OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.

FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DOS AUTORES, SOB AS PENAS DA LEI.

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Foto de perfil de Mark da NandaMark da NandaContos: 294Seguidores: 682Seguindo: 26Mensagem Apenas alguém fascinado pela arte literária e apaixonado pela vida, suas possibilidades e surpresas. Liberal ou não, seja bem vindo. Comentários? Tragam! Mas o respeito deverá pautar sempre a conduta de todos, leitores, autores, comentaristas e visitantes. Forte abraço.

Comentários

Foto de perfil de Hades123

Que conto maravilhoso, impecável retratando a vida no campo.⭐⭐⭐

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Paulinho montando no alazão selado que passou galopando na sua frente, dizem que isso só acontece uma vez na vida, torço muito por ele e até pela Emilinha, que não foi honesta, mas não tinha muitas opções para se-lo.

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Poxa velho sensacional, pena que você só posta um por dia, e demora um pouco mas essa história está muito bem escrita e essa de hoje foi emocionante. Ansioso pra ver o Paulinho dar a volta por cima e a Emilinha se lascar por ser uma ninfeta chifradeira.

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Caramba, por essa eu não esperava. Como é bom ser surpreendido por um conto dessa forma. Estou ansioso pelos desdobramentos, quando Paulinho e Emilinha se reverem, certamente estarão bem mudados, n]ao serão mais os jovens ingênuos do interior, pelo menos não da mesma forma.

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Excelente capitulo emocionante

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Conto de muito bom gosto. Uma pérola. Parabéns.

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A gente entra pra bater punheta e sai quase chorando com um contozaço desses! Ansioso pra próxima parte.

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