Fiquei esperando na portaria, como minha irmã havia pedido. Alguns minutos depois, ela chegou. Abriu a porta do passageiro e eu entrei no carro, colocando minha mala no banco de trás. Partimos em silêncio rumo à casa dela.
— Eu sabia que essa conversa com o Renato seria difícil — disse ela, com os olhos atentos à estrada, mas com o coração claramente voltado para mim. — E, pelo seu estado, a reação foi exatamente como eu imaginava...
Passei as mãos no rosto, tentando conter as emoções que ainda ferviam em mim. Encostei a cabeça no vidro da janela, sentindo o frio do mundo do lado de fora contrastar com a turbulência dentro de mim.
— Pois é... — Murmurei. — A conversa foi complicada. O Renato explodiu. Teve um momento em que ele ameaçou me dar um tapa..., mas desistiu no último instante. Eu... eu bem que merecia. Porque...
— Maris! — minha irmã me cortou com firmeza. Seu tom não tinha espaço para autocomiseração. — Chega de se lamentar. Não tem como reverter o passado. Você precisa pensar no presente, para que o seu futuro tenha alguma chance de ser melhor.
O silêncio que se seguiu não foi vazio. Foi denso. Cheio de verdades que doíam, mas libertavam. Lágrimas silenciosas rolaram pelo meu rosto, não por tristeza, mas por alívio. Pela primeira vez em muito tempo, alguém me lembrava que eu ainda podia escrever um novo capítulo — mesmo que o anterior tivesse sido um desastre.
Meu celular começou a tocar. Por um instante, meu coração acelerou — pensei que fosse o Renato. Mas não. Era o Daniel.
— Quem é? — perguntou minha irmã, sem tirar os olhos da rua.
— Daniel — respondi, sentindo o nó na garganta apertar.
O toque insistente ecoava no carro, como um lembrete cruel do que ainda estava pendente. Tocava. Tocava. Até que minha irmã, com a calma cortante de quem está acostumada a lidar com feridas humanas, falou com firmeza:
— Isso é outra coisa da qual você não pode fugir. Atenda. Dê um basta nisso.
Ela estava certa. Muito certa.
Respirei fundo e atendi. Coloquei no viva-voz. Precisava que ela ouvisse. Precisava não estar sozinha nisso.
— ENTÃO VOCÊ CONTOU AO RENATO SOBRE O NOSSO CASO, MARIS? — a voz de Daniel explodiu do outro lado da linha. — VI QUE ELE ME LIGOU, MAS NÃO ATENDI!
Ele estava transtornado. E era nítido. A raiva transbordava em cada sílaba. Ele não esperou resposta. Continuou:
— MARIS, NÓS PRECISAMOS CONVERSAR, PORRA!
Houve uma pausa. Eu o ouvi respirar fundo, como quem tenta segurar uma avalanche.
— Olha só... Eu entendo que cometemos um erro com o Renato. Nós o traímos, tanto você quanto eu. Mas... eu realmente me apaixonei por você. Eu mesmo achei isso estranho, nunca fui de me apegar a ninguém... mas aconteceu. Essas coisas... não têm explicação. Simplesmente... acontecem.
Silêncio.
O peso do que ele disse pairava no ar. Minha irmã, ao volante, apenas me lançou um olhar e fez um gesto discreto com a mão: Fala.
— Olha, Daniel... — comecei, com a voz trêmula mas decidida. — Sim, nós erramos. O Renato se afastou de mim, mergulhou no trabalho, mas eu também não fui atrás, não conversei. E você... você se aproveitou de um momento em que eu estava vulnerável.
Do outro lado, o silêncio foi interrompido por uma explosão:
— COMO É QUE É? — gritou Daniel, furioso. — QUER DIZER QUE EU SOU O FILHO DA PUTA DA HISTÓRIA? QUE EU TE SEDUZI? QUE ME APROVEITEI DE VOCÊ, SUA VADIA?! EU NÃO TE FORCEI A DAR ESSA SUA BUCETA PRA MIM! NÃO FUI EU QUE TE OBRIGUEI A ME DAR SEU CUZINHO! DE QUEM FOI MESMO A SUGESTÃO PRA TRANSARMOS NA SUA CASA, HEIN?
Foi quando o semáforo fechou. Minha irmã parou o carro bruscamente.
Antes que eu conseguisse responder, ela pegou meu celular da minha mão e, com um único gesto firme, desligou a chamada. Desligou o aparelho.
— Por que você fez isso? — perguntei, surpresa e ferida. — Você mesma disse para eu falar com ele...
Ela me encarou. O tom era grave, mas sereno — o de quem já viu muito, o de quem já leu almas em frangalhos.
Ela respirou fundo. Seus olhos estavam firmes, mas não havia julgamento, apenas preocupação.
— Sim, eu disse. Porque você precisava ouvir a verdade, e ele precisava ouvir a sua. Mas uma coisa é ter uma conversa difícil. Outra é entrar em uma espiral com alguém emocionalmente desregulado.
— Mas ele... ele não passou dos limites — falei, tentando justificar.
— Ainda não — ela respondeu com firmeza. — Mas ele está perigosamente perto. E você viu como, em segundos, ele saiu da culpa para te agredir verbalmente, sexualmente. Isso não é amor, Maris.
Ela fez uma pausa. Um silêncio carregado de memória. Seus olhos buscaram algo no passado.
— Eu já vi o Daniel se irritando em outras situações... — disse, pensativa. — Lembra da festa de aniversário do Renato? Aquela de dois anos atrás?
— Lembro — respondi, olhando pela janela como se pudesse encontrar a cena lá fora.
— Eles estavam jogando baralho, entre amigos. No começo, era só diversão. Mas, em determinado momento, o Daniel perdeu uma rodada para aquele funcionário dele ... como é mesmo o nome dele?
Ela franziu a testa, tentando puxar da memória.
— Tobias — completei. — O Tobias.
— Isso. — Ela assentiu. — O Tobias começou a tirar sarro, e logo os outros entraram na onda. Até o Renato riu. Mas o Daniel não gostou nem um pouco. Você viu. Ele se levantou e partiu pra cima do Tobias, deu umas porradas nele. Foi preciso separar.
Fiquei em silêncio. Eu lembrava. Lembrava de cada segundo. Mas o que me marcou não foi só a briga — foi o jeito como o Daniel reagiu, como se uma parte dele tivesse se rompido por dentro.
— Na época, todo mundo achou que ele exagerou — ela continuou. — Riram, comentaram por dias. Mas você... seu olhar era diferente. Eu percebi. Você ficou assustada.
Assenti, devagar. Não era algo que eu gostava de lembrar.
— E sabe o que é isso, Maris? — ela disse, agora com aquele tom que só uma psicóloga consegue ter: direto, empático, mas firme. — É um padrão. O Daniel não sabe lidar com frustração. Quando se sente exposto, ridicularizado, ou contrariado, ele perde o controle. E isso não é apenas temperamento forte. Isso é falta de autorregulação emocional. Pode parecer pequeno — uma briga no jogo, uma ligação cheia de gritos — mas são partes de um mesmo comportamento. E, com o tempo, essas partes se juntam... e podem formar algo perigoso.
Ela respirou fundo, esperando que eu absorvesse.
— O mais preocupante não é o que ele fez — disse, com calma —, mas o que ele se sente no direito de fazer. Ele agrediu Tobias porque sentiu-se no direito. E hoje, gritou com você, te humilhou, falou absurdos... porque sentiu-se no direito. Percebe?
Eu fiquei em silêncio. Pela primeira vez, vi tudo como ela estava vendo. E aquilo doía. Mas também me despertava.
— Maris — ela completou, mais suave agora —, quando o medo começa a se confundir com desejo, e a culpa com paixão, a gente precisa parar. Respirar. E se perguntar: isso é amor ou é um alerta?
O semáforo abriu, e seguimos. Ela, atenta na avenida, prosseguiu e continuou falando o seguinte:
— Amor não tenta destruir quem está partindo. Amor sofre, sim, mas não tenta machucar. O que ele sente é posse. Controle. Ele se sente traído, exposto... e está projetando tudo em você.
— Você acha que ele é perigoso? — perguntei, com a voz quase falhando.
— Potencialmente, sim. — Sua resposta foi rápida, sem hesitação. — Não estou dizendo que ele vai fazer algo agora, hoje..., mas ele está em um estado emocional que, se alimentado com mais frustração, pode levá-lo a agir de forma impulsiva, talvez até violenta.
Fiquei em silêncio. Senti medo. Não dele, exatamente, mas de tudo que eu tinha ignorado até ali.
Ela segurou minha mão.
— Maris, você não está sozinha. E você não deve se culpar por ter procurado afeto onde sentia carência. Mas agora, o mais importante é se proteger emocionalmente. Criar limites. Cortar o contato, ao menos por um tempo. E, se precisar, vamos pensar até em uma medida protetiva, sim?
Seus olhos não falavam como irmã. Falavam como profissional. Alguém que já vira mulheres serem engolidas por relações assim.
E dessa vez, eu acreditei nela.
Finalmente chegamos à casa da minha irmã, já era noite. Adentramos o elevador e ela, me abraçando, falou:
— Eita, irmãzinha cabeça dura essa que eu tenho, hein... — e esfregou a mão esquerda na minha cabeça.
Eu sabia que ela queria apenas me confortar, fazer com que eu esquecesse do problema que estava tendo, pelo menos por um tempinho.
Quando chegamos, minha irmã olhou pra mim com aquele jeitinho cuidadoso dela e falou:
— Por que você não vai tomar um banho? Um banho quente é bom pra relaxar...
Eu sabia que ela não falava isso só por falar. Minha irmã é psicóloga, entende dessas coisas. Ela sabia que um banho quente ajuda a tirar o peso do corpo, como se a água levasse embora um pouco do que a gente carrega por dentro também. Não resolve tudo, claro. Mas naquele momento, era a forma mais simples e silenciosa de dizer: cuida de você um pouco. Recomeça por aí.
E eu fui. No apartamento da minha irmã, os três quartos possuem suítes. Escolhi um dos dois que estavam vagos e adentrei com a minha mala. A coloquei na cama e fui para o banho. Lá eu poderia refletir melhor sobre o que estava ocorrendo comigo.
Com a água caindo pelo meu corpo, passei a relembrar do caso com o Daniel e das coisas que minha irmã me disse sobre ele. Lembro-me da primeira vez em que transei com ele, lá na minha casa. Eu estava me sentindo sozinha, jogada para escanteio. O Renato não deixou de ser amoroso, mas foi ficando menos presente, menos carinhoso. O caso com o Daniel também aconteceu porque ele era uma pessoa muito próxima da gente. O sexo naquele dia foi consequência de uma tensão sexual que já vinha se acumulando há algum tempo.
Quando transamos pela primeira vez, ali naquele sofá, ele estava com uma disposição absurda. Eu parecia ser a última mulher da Terra. Ele metia com violência, estocadas fundas, e o barulho do contato entre nossos corpos era alto. Meus gemidos de prazer o estimulavam ainda mais. Ele puxava meus cabelos, me chamava de vagabunda, puta, vadia... essas coisas. Dizia que aquilo era o que ele desejava fazia tempo. Que eu nem imaginava quantas vezes ele já tinha batido punheta pensando em mim. Todas aquelas palavras sujas me excitavam. Não posso negar.
Mas tem um detalhe que só agora me veio à mente. Naquela trepada, em um certo momento, ele falou no meu ouvido:
— Em alguma coisa eu tenho que me dar bem. O Renato é casado com você, é um empresário melhor que eu, tem mais grana e as pessoas o adoram. Estar aqui te fodendo é uma vitória pra mim.
Na hora, no calor do sexo, eu não dei muita importância ao que ele disse. Estava excitada demais, envolvida demais. Mas agora... agora tudo parece fazer sentido. Era inveja o que ele sentia do Renato?
Sim... era inveja. Mesmo que Daniel também tivesse se tornado empresário — assim como eu e Renato — a diferença é que ele não era sensato com os negócios e muito menos com o dinheiro. Começou a ganhar dinheiro e já queria ostentar, comprando carros importados, imóveis luxuosos, tentando mostrar sucesso ao mundo. Enquanto a gente, mesmo ganhando bem com os nossos negócios, sempre mantivemos os pés no chão. Sempre pensamos no amanhã.
O Renato construiu tudo com paciência, com foco, sem precisar se provar. E talvez isso incomodasse o Daniel. Talvez, estar comigo não era só desejo — era também uma forma de competir, de vencer o Renato em algo. Mesmo que de um jeito covarde, pelas costas.
E agora, sozinha aqui no banho, com a água escorrendo no meu corpo e as palavras dele ecoando na minha mente, eu me perguntava: será que eu fui mesmo amada por ele... ou apenas usada como instrumento da inveja que ele sentia do homem com quem eu era casada?
Nesses 8 meses em que mantive o caso com o Daniel, não dá pra dizer que me apaixonei. Eu estava no automático. Me envolvi? Sim. Mas não foi amor. Era tesão, curiosidade, carência… tudo misturado. Uma vez, no motel, ele me perguntou se eu estava apaixonada por ele. Respondi que não. Ele ficou desconcertado, visivelmente incomodado, mas não disse mais nada. E eu também preferi não prolongar.
Quando o Renato comentou que minha irmã deu um choque de realidade nele, aquilo mexeu comigo. Sabe quando você desperta? Como se a ficha caísse? Foi isso. É como em tantos outros casos de infidelidade. A pessoa vai se envolvendo, se deixando levar pelas transas boas, pela adrenalina, pelos encontros secretos, mas em algum momento, bate o estalo.
Quantas mulheres casadas não vivem isso? Estão com o marido, mas acabam cedendo a um colega de trabalho, a um vizinho, a um amigo da família… Só que o sexo, por mais gostoso que seja, não segura tudo. A realidade bate. No meu caso, era isso: eu estava traindo o Renato, mas sem querer renunciar a ele eu não queria o Daniel pra minha vida. Não como marido. Só queria ser desejada. Sentir aquela safadeza de novo. Mas no fim, tudo isso cobra um preço.
Fiquei bastante tempo no banho. Quando saí, uma coisa chamou minha atenção: a porta do banheiro estava um pouco aberta… Eu jurava que tinha fechado. Estranho. Saí pelada, só com a toalha enrolada na cabeça, fui até minha mala, escolhi uma roupa e me vesti — coloquei uma calça de moletom e uma blusinha branca. Sequei mais um pouco o cabelo e saí do quarto.
Fui direto pra cozinha. Quando cheguei lá, vi minha irmã e o Rodolfo, o marido dela. Ela estava preparando a janta. Assim que me viu, o Rodolfo veio logo falar comigo:
— Maris… sinto muito pelo que aconteceu. Que coisa, hein?
Ele me abraçou forte, o corpo dele bem colado no meu. Achei estranho…, mas abracei de volta.
Depois do abraço, ele ainda falou:
— Olha só… eu e a Letícia estamos preparando a janta. E pode ficar aqui em casa o tempo que quiser, tá? O TEMPO QUE VOCÊ QUISER.
Na hora, eu sorri e agradeci. Foi automático. Mas por dentro… não sei. Me bateu uma sensação estranha. Ao mesmo tempo que eu estava feliz pelo acolhimento, principalmente da minha irmã, aquela generosidade, aquela empolgação exagerada dele… era estranha. Tinha algo ali que não combinava com a situação.
Logo depois que falou aquilo, Rodolfo olhou pro meu corpo — da cabeça aos pés. Sem disfarçar. Minha irmã estava de costas, cortando legumes, e respondeu:
— Isso mesmo, mana. Pode ficar aqui o tempo que desejar.
Nesse momento, Rodolfo olhou pra ela, ainda de costas, e balbuciou algo. Não consegui entender o que foi. Mas não parecia algo qualquer. Me causou um arrepio.
Mas… talvez eu esteja delirando. É, com certeza estou. O Rodolfo sempre foi gentil comigo. Educado. Nunca me desrespeitou. Nunca deu abertura para nada. Sempre me tratou como irmã da Letícia e só.
Eu é que devo estar sensível demais com tudo que aconteceu. Abalada, vulnerável. Estou imaginando absurdos. Criando coisa onde não tem. Talvez tenha sido só um gesto de carinho, de apoio… e eu estou vendo sombra onde só tem luz. Talvez. Mas… por que, então, essa sensação estranha ainda não passou?
Quando o jantar ficou pronto, comemos juntos — minha irmã, Rodolfo e eu. Conversamos sobre assuntos variados, e eu percebi que os dois faziam um esforço claro para me deixar mais à vontade. Tentavam me distrair, me fazer rir, aliviar o peso do que estava acontecendo.
Depois da refeição, minha irmã e eu fomos para a sala. Rodolfo ficou na cozinha, dizendo que lavaria a louça. Achei aquele gesto gentil, como sempre. Minutos depois, ele se juntou a nós no sofá.
Num momento de silêncio, comentei que estava com uma sensação estranha. Um aperto no peito que eu não sabia explicar. Rodolfo, rápido, respondeu:
— Relaxa, Maris… isso com certeza não é nada.
Letícia completou com um tom doce:
— Tudo que você precisa agora é descansar, mana. Só isso.
Assenti com a cabeça. Talvez fosse isso mesmo. Talvez. Mas aquela sensação não passava. E a maneira como Rodolfo olhou pra mim naquele instante… não sei. Algo ali me inquietava. Ficamos batendo papo por mais de uma hora e meia, eu acho.
Até que Rodolfo quebrou o silêncio com a voz calma:
— Que tal tomarmos um chá, hein? Um chá antes de dormir faz bem.
Letícia logo concordou e se levantou dizendo que o ajudaria, mas ele respondeu de forma inesperadamente firme:
— NÃO.
O tom mais alto do que o habitual fez minha irmã parar no lugar. Ele pareceu perceber de imediato e, suavizando a voz, completou:
— Não precisa, querida. Fica aqui com a Maris, eu cuido disso.
E sem esperar resposta, levantou-se e foi para a cozinha. Letícia me olhou sorrindo, como se quisesse tranquilizar qualquer sensação estranha:
— O Rodolfo é sempre assim… prestativo.
Poucos minutos depois, ele voltou com a bandeja e três xícaras. Nos serviu, e ele me entregou uma com um sorriso gentil:
— Toma tudo, Maris. Chá é bom pra acalmar.
— Eu já disse isso a ela — completou Letícia, bebendo a dela com gosto.
Enquanto o tempo passava, seguimos conversando. Conversa vai, conversa vem… até que comecei a sentir uma sonolência estranha. Pesada. Incômoda. Quase no mesmo instante, Letícia levou a mão à testa e comentou:
— Amor, vamos dormir… estou morrendo de sono.
Rodolfo bocejou em seguida, como se o cansaço tivesse vindo de repente para ele também:
— É… vamos sim.
— Eu também vou pra cama — falei, tentando disfarçar o torpor que crescia em mim.
Rodolfo se levantou, desligou a TV, e fomos todos dormir.
Mas algo naquela noite... algo não parecia certo.
Quando cheguei no quarto, fui direto para a cama como se algo me puxasse. Joguei a mala no chão com certa pressa, e a toalha que estava sobre a cama, apenas a empurrei por cima dela. Meus movimentos já estavam lentos, desconectados. Deitei-me. A maciez da cama parecia me engolir, me envolver como braços invisíveis. Meus olhos pesavam — as pálpebras lutavam para se manter abertas, mas era inútil. Havia um silêncio estranho no ar, uma paz que soava artificial… inquietante.
Fechei os olhos. E naquele exato instante, tudo apagou. Como se alguém tivesse desligado um interruptor dentro de mim. Não houve sonhos. Nem tempo. Apenas o vazio. Um vazio absoluto. E a sensação estranha, lá no fundo, de que algo não estava certo.
Acordei no dia seguinte com a cabeça pesada, como se não tivesse dormido… e sim, apagado. Meus olhos custaram a abrir. A luz do quarto parecia mais forte do que o normal, tudo me incomodava. Me levantei devagar, com o corpo estranho, como se estivesse fora de mim — ou dentro de algo que não me pertencia.
Caminhei até o banheiro arrastando os pés, sentindo uma leve tontura. Quando me sentei no vaso sanitário, um arrepio atravessou minha espinha. No instante em que comecei a urinar, uma dor aguda me fez prender a respiração. Ardia. Muito. Como se algo ali dentro estivesse machucado, violado, alterado de alguma forma que eu não compreendia.
Minha respiração acelerou. Um medo irracional começou a crescer. Quando tentei me limpar, outra dor me fez estremecer — agora, mais abaixo, mais atrás. Era como se meu corpo quisesse me contar algo…, mas sem palavras.
Fiquei parada ali, sentada, com os olhos arregalados, tentando entender o que estava acontecendo. Não lembrava de nada incomum. Nenhum som durante a noite. Nenhuma movimentação. Nada. Mas o meu corpo… o meu corpo dizia outra coisa. Ele sabia de algo. Algo que a minha mente se recusava — ou era incapaz — de acessar.
Voltei lentamente para o quarto, olhando ao redor como se algo ali pudesse me dar respostas. Mas só encontrei o silêncio. Um silêncio pesado. Como se a casa inteira soubesse o que eu não sabia.
continua...