O apartamento dela era diferente do meu. Eu era do tipo que colocava tudo no lugar, linhas retas, paleta neutra, estante por cor e tamanho. O dela... era um universo em colapso com charme. Almofadas jogadas no chão, livros empilhados em escadas improvisadas, quadros tortos e fotografias presas com fita adesiva nas paredes.
Na primeira vez que fui até lá, Priscila abriu a porta com uma camisa de banda — The Doors, velha e larga — e uma taça de vinho na mão. Beijou meu pescoço sem dizer nada e puxou minha mão como quem diz: siga-me, e não pergunte por onde.
Transamos no chão da sala, depois ela se debruçou sobre a mesa da cozinha:
— Vem!
Eu obedeci a ordem. Foi intenso, estocadas fortes, a mesa se movia pela cozinha. Priscila só gritava:
— Fode! Fode mais! Não para de fuder! Delicia!
Ela gozou aos gritos, e eu também. Ficamos ali, um em cima do outro naquela mesa que já tinha ido parar no outro lado da cozinha.
O rádio tocava uma faixa instrumental de jazz obscuro e ela levantou e começou a dançar nua pela casa como se eu fosse só mais um visitante em sua galeria de delírios. Era libertadora. Intimidadora. Quase assustadora.
Depois, no sofá, enquanto a respiração ainda se encontrava em suspensões entrecortadas, reparei em uma caixa de madeira entalhada, em cima de um móvel antigo ao lado. Era bonita, quase cerimonial. Algo nela me puxava, mas não me atrevi a abrir.
Priscila percebeu meu olhar e murmurou, com a cabeça apoiada no meu peito:
— Não mexe ali.
— Por quê?
— Porque você não vai gostar.
Ela fechou os olhos e cochilou ali mesmo. E eu fiquei acordado, olhando para aquela caixa como se ela fosse uma porta trancada, com um nome rabiscado do lado de dentro.
Com o tempo, comecei a perceber pequenas fissuras no mundo colorido de Priscila. Mensagens que ela escondia, um número que aparecia mais de uma vez na tela do celular, chamadas recusadas com rapidez demais. O nome era sempre o mesmo: Gabriel.
Não era um nome comum. E ela nunca o mencionava.
Um dia, em um domingo de sol morno, fomos ao Parque da Aclimação. Ela deitou no meu colo enquanto eu lia um trecho de Cem Anos de Solidão, que ela mesma me dera.
— Luiz — ela disse, com a voz baixa, olhos fechados. — Já amou alguém até não se reconhecer mais?
— Talvez. — Fiquei em silêncio por um tempo. — Mas você me pergunta isso por causa de alguém?
Ela abriu os olhos lentamente, olhou para mim com aquele brilho dourado tão familiar, e disse:
— Porque às vezes acho que nunca deixei de amar alguém que já não existe mais.
Não respondi. Ela se levantou, caminhou até a beira do lago e ficou ali, parada, como se esperasse que algo emergisse da água. Ou do passado.
Duas semanas depois, tive a confirmação. Estávamos na cama, luz baixa, ela adormecida, e o celular vibrou. Por impulso, e talvez por medo, peguei. Era uma mensagem de Gabriel:
> “Você ainda sonha com aquele lugar na Bahia? Eu ainda lembro daquela noite que transamos na praia.”
Prendi a respiração.
Senti o peso de uma presença que eu não conhecia, mas que morava nela. Gabriel era mais que um nome. Era um eco. Um fantasma ainda morno, ainda vivo em algum cômodo secreto da mente e do corpo dela.
Coloquei o celular de volta sem dizer nada. E naquela noite, mesmo com ela aninhada em mim, me senti sozinho.
Na manhã seguinte, enquanto ela preparava café com canela, perguntei:
— Quem é Gabriel?
Ela congelou por um segundo, mas se recompôs rápido demais.
— Um capítulo antigo. Um daqueles que você pensa ter rasgado, mas que insiste em aparecer embaixo da cama, dobrado.
— Você ainda o ama?
Ela me olhou nos olhos, séria pela primeira vez em muito tempo.
— Não sei, Luiz. Mas ele foi o primeiro homem que me viu inteira... e o primeiro que me quebrou.
Fiquei em silêncio. Priscila era como uma chama que aquecia e queimava ao mesmo tempo. E agora eu sabia: ela ainda dançava entre brasas de um incêndio que eu não comecei. Mas ali, diante dela, percebi que talvez eu estivesse disposto a entrar nesse fogo. Mesmo sabendo que não sairia ileso.