O fim do expediente no mercadinho sempre vinha com aquele misto de cansaço e ansiedade. Bernardo e eu já estávamos há mais de uma semana nessa cidadezinha, vivendo discretamente no apartamento que Pedro alugou pra gente. Pedro nunca falou exatamente o que tinha sofrido nas mãos de Mateus ou de outros. Disse apenas que queria justiça — à sua maneira — e que confiava em mim pra fazer essa parte suja do trabalho. Eu sabia o suficiente. O bastante pra obedecer sem questionar.
Estava encostado no balcão, tirando o uniforme, quando Bernardo veio do fundo com um saco de feijão na mão.
— Leva isso aí. Vai fazer hoje? — ele perguntou.
— Você faz. Coloca de molho e tempera daquele jeito que eu gosto. Quando eu voltar, quero a casa cheirando a alho — falei com um sorriso maroto, entregando o avental nas mãos dele.
Bernardo fez uma careta.
— Eu te conheço, Pietro. Tenta não exagerar, tá? A gente veio pra isso, beleza, mas não quero ver você se embolando. Se ele for daqueles que se apaixonam fácil...
— É melhor ainda — interrompi. Me aproximei e beijei de leve a testa dele. — Você sabe que, se você estiver por perto, não vou conseguir agir. Não posso ter o teu olhar me segurando.
Ele suspirou e assentiu, com aquele olhar que era um misto de ciúmes e cumplicidade.
— Vai, então. Mas me manda mensagem se ele fizer alguma gracinha demais.
— Relaxa. Hoje é só o início. Nem encosto. Só deixo ele curioso.
Saí pela porta lateral do mercadinho e comecei a caminhar até a praça. Eu vestia uma camisa simples de botão, dobrada até o cotovelo, uma calça jeans escura que marcava bem as pernas, e um tênis limpo. A aparência era casual, mas pensada nos mínimos detalhes. Sedução tem que parecer natural — mesmo quando é planejada até o último suspiro.
Cheguei à praça alguns minutos depois. Ela estava quase como eu esperava: algumas crianças ainda corriam em volta da fonte central, idosos jogavam dominó numa mesinha perto da banca de jornais, e dois casais trocavam carícias nos bancos mais afastados. Me sentei perto de uma árvore, numa parte que dava vista direta pro banco que Mateus costumava usar — já sabia disso pelas minhas últimas três idas ao local. Sempre no mesmo horário, sempre o mesmo banco, o mesmo ar de quem não tinha pressa pra nada.
E, como se obedecesse a um roteiro que só ele conhecia, Mateus apareceu.
Caminhava devagar, um boné cobrindo parte do rosto, a regata cinza colada ao peito largo. Ele parecia sempre à vontade no próprio corpo, como se soubesse o efeito que causava e não se importasse de exibir. Se aproximou, olhou ao redor como quem procura um lugar de costume, e então me viu.
Eu estava de pernas cruzadas, com os braços apoiados no encosto do banco, olhar direto nele. Não desviei. Fixei como se fosse curiosidade — ou desejo. Ele me viu, hesitou um segundo e seguiu até o banco de sempre, mas olhou de novo. E dessa vez, demorou um pouco mais. Funcionou. A dúvida ficou plantada. Um homem bonito, sozinho, olhando pra ele de forma clara. Era o primeiro laço do laço.
Levantei do banco lentamente, ajeitei a camisa e caminhei até uma parte mais isolada da praça, onde as árvores criavam sombra suficiente pra esconder sorrisos e intenções. Encostei na árvore como quem não tem pressa. Fingi mexer no celular, mas sentia o olhar dele queimando minhas costas.
Dois minutos depois, ouvi passos. O faro dele era previsível.
— Tá perdido aí, não? — ele perguntou, parando a uns dois passos de mim.
Levantei os olhos devagar, com um meio sorriso.
— Não. Tava só esperando ver se você vinha.
Mateus arqueou uma sobrancelha.
— Esperando por mim?
— Talvez. Ou talvez você seja só o tipo de distração que me agrada.
Ele riu. Um riso quase tímido, mas com malícia.
— Você fala sempre assim? Direto?
— Não. Só quando me interessa.
Ficamos nos encarando por alguns segundos. O vento balançava as folhas e trazia o cheiro distante de churrasco de alguma casa próxima. O clima entre nós era quente, tenso. Eu media as palavras. A cada frase, lançava mais um anzol. Ele mordeu o lábio e olhou pro chão, como quem pensa se deve ficar ou sair.
— Sou o Enzo — disse, estendendo a mão.
Ele apertou com firmeza.
— Mateus. Não te vi por aqui antes.
— Cheguei tem pouco tempo. Tô trabalhando no mercadinho, ali perto da lotérica.
— Sozinho na cidade?
— Não. Moro com meu namorado.
Ele arqueou as sobrancelhas, e eu deixei o silêncio se esticar. Depois continuei, como se não fosse nada.
— Mas temos um relacionamento aberto. E... bom, às vezes eu gosto de escolher com quem passo meu tempo.
Mateus deu um risinho e balançou a cabeça.
— Direto e sem vergonha nenhuma, né?
— Melhor do que fingir o que não sou. E você? Gosta de homens?
Ele desviou os olhos, como se aquilo o pegasse desprevenido, mas depois voltou a me encarar com um sorriso enviesado.
— Depende do homem.
— Boa resposta — sussurrei.
Por alguns segundos, ninguém falou nada. Só o som das folhas se movendo e o leve zumbido da cidade ao longe. Mas o jogo estava montado. E ele já estava jogando.
— Se quiser sentar, tem um banco ali — falei, apontando com a cabeça.
— Só se você for junto.
— Achei que nunca fosse pedir.
E fomos. Sentamos lado a lado, sem pressa. Conversamos mais. Coisas triviais. Ele falou que andava procurando trabalho. Eu fingi me interessar. E no meio disso tudo, o olhar dele ia dos meus olhos pros meus lábios e voltava. Eu deixava ele mirar. Era isso que eu queria. O plano de Pedro estava em andamento.
Mateus estava ao meu lado, no banco frio de concreto, as pernas levemente afastadas, o braço roçando no meu de tempos em tempos como se fosse sem querer. Eu sabia que não era. Cada movimento dele já começava a trair o interesse que fingia não sentir. Estávamos ali fazia talvez meia hora. E, com cada minuto que passava, eu apertava mais os nós dessa teia.
— Você é mais misterioso do que parece — ele comentou, virando um pouco o rosto pra mim. O boné fazia sombra no olhar, mas dava pra ver o brilho curioso por trás.
— E você é mais fácil de ler do que gostaria.
Ele deu uma risada curta e me cutucou com o ombro.
— Tá se achando, hein?
— Não. Só sei jogar quando vejo o tabuleiro.
— E você acha que eu sou o quê? Uma peça?
Me virei, devagar, ficando mais próximo. O rosto dele estava perto o suficiente pra que eu sentisse o cheiro leve de desodorante barato e o suor seco do fim do dia.
— Acho que você quer ser jogado. Só ainda não entendeu as regras.
O silêncio caiu como uma cortina entre nós. Ele desviou o olhar, respirou fundo. Estava desconcertado. Mas ficou. Não levantou. Não me empurrou. Estava gostando daquilo. Do risco. Da provocação.
Meu plano exigia calma. Nada de pressa. Nada de beijos por impulso ou confissões adiantadas. Eu tinha que fazê-lo se abrir aos poucos, me ver como algo que ele desejava — e depois, como algo que precisava. E aí, só aí, eu ia mostrar quem era que mandava no jogo.
— Faz o que quando não tá por aqui? — perguntei, mudando o tom, deixando mais leve.
Ele falou de alguns bicos, de um tempo que passou fora, de como às vezes vinha ali pra "esfriar a cabeça". Não contou muito. Mateus era do tipo que falava pelas metades. Mas eu só precisava ouvir o suficiente. Cada informação era uma arma futura.
— E você? — ele devolveu. — Disse que mora com o namorado. Vocês são de onde?
— Longe. Viemos recomeçar. Vida nova, sabe?
— Fugindo de quê?
Sorri.
— De tudo. E talvez... vindo em direção ao que eu ainda nem sei.
Mateus me olhou de novo. Mais sério, dessa vez. Eu podia sentir o desejo se arrastando por debaixo da pele dele como uma corrente elétrica. Era só tocar. Bastava esticar o dedo e tudo desmoronava. Mas eu não queria isso. Ainda não.
Me levantei devagar, como se tivesse decidido de repente que era hora de ir.
— Eu vou nessa — falei. — Se ficar muito fácil, perde a graça.
Ele piscou, como quem não entendeu.
— Ué... vai sair assim, do nada?
— A gente se vê de novo. Eu sei disso. Você sabe disso.
— Convencido pra caramba.
Me aproximei mais uma vez, agora a poucos centímetros, e sussurrei:
— Confiança é só o nome bonito da certeza que a gente tem do próprio veneno.
Saí andando, sentindo o olhar dele nas minhas costas. Um arrepio me percorreu — não por desejo, mas pela adrenalina do controle. Estava funcionando. Ele estava fisgado. Não seria rápido, mas seria certo. E quando a hora certa chegasse... eu ia fazer valer cada lágrima que Pedro não derramou na nossa frente.
Cheguei no apartamento e abri a porta devagar. Bernardo estava de avental, a cozinha cheirando a alho e louro. Ele me olhou, de olhos atentos.
— E aí?
— Ele mordeu. Não até o fundo... mas mordeu.
Bernardo enxugou as mãos e cruzou os braços.
— Pietro... só lembra que isso é perigoso. Se ele perceber qualquer coisa...
— Ele não vai. Ele quer ser enganado. Só não sabe ainda.
— E quando ele quiser mais?
Me aproximei e abracei Bernardo por trás, encostando o queixo no ombro dele.
— Aí ele vai implorar... E vai ser o momento em que a gente vai esmagar tudo.
Ele assentiu, em silêncio.
A guerra estava só começando. E Mateus... Mateus não tinha a menor ideia de com quem estava lidandoO sino da porta tocou pela terceira vez naquela manhã, e eu ajeitei o uniforme com um sorriso automático no rosto. O mercadinho já estava cheio, e eu no balcão, como sempre, atendia com agilidade, respondendo com bom humor às perguntas repetidas dos clientes e passando os produtos no caixa com a rapidez de quem já sabia até de cor o código das bolachas recheadas e do sabão em pó.
Sempre fui bom nisso — disfarçar.
Ali, atrás do balcão, ninguém imaginava o que eu realmente fazia naquela cidade. Pra todos os efeitos, eu era só mais um jovem educado, dedicado e prestativo. Um dos melhores funcionários que o mercadinho já teve, segundo Seu João, o dono do lugar.
Enquanto isso, Bernardo, meu namorado, estava no depósito, cuidando da descarga do caminhão que chegara mais cedo. Ele sempre dava conta das tarefas mais pesadas, organizava as caixas com precisão, empilhava sacos de ração, conferia notas. Às vezes, passava pela frente só pra pegar algum item ou me avisar de algo com um aceno rápido.
A gente mantinha tudo no lugar. O disfarce, o comportamento, o tom de voz.
Mas antes que o dia acabasse tranquilo demais, veio o veneno habitual.
— E aí, Pietro… já decorou o preço da farinha ou quer que eu escreva num papelzinho? — disse Ricardo, o filho do Seu João, encostado numa prateleira com o ar de quem não tem nada pra fazer, mas insiste em atrapalhar.
Olhei pra ele com um sorriso leve, sem perder a postura.
— Já decorei. Mas se quiser testar minha memória, pode trazer mais uns trinta itens pra eu escanear sem olhar.
Ele riu, mas havia uma pontada de irritação no tom.
— Tá se achando rápido demais. Mercado pequeno não exige tanto show.
— Não é show, é trabalho bem feito. Tem diferença — rebati, ainda com educação.
Ricardo me olhou de cima a baixo com aquele olhar carregado de ironia — e alguma coisa a mais que me incomodava sem eu saber explicar direito.
— Deve ser bom ter um namorado que faz tudo por você no depósito, né? Só ficar aqui, com a mão limpa e a boca pronta.
A provocação era direta, mas respirei fundo e fingi que não escutei a malícia por trás da frase. Apenas voltei a atender o próximo cliente. O velho do jornal e da coxinha.
— O de sempre, seu Alfredo? — perguntei, como se nada tivesse acontecido.
— O de sempre, meu filho. Só você acerta o ponto da balança certinho — disse ele, sorrindo.
Fiz a pesagem com atenção, e assim que o balcão ficou mais vazio, aproveitei pra ir buscar um pacote de arroz cinco quilos no depósito, a pedido de um cliente. Mas ao me aproximar da porta, parei quando ouvi vozes lá dentro.
— …Você acha que eu não percebo? Desde que vocês chegaram, você desvia de mim — disse Ricardo, com um tom que já não era só deboche. Agora tinha um quê de insistência, quase... desejo.
— Ricardo, para com isso. Eu vim aqui pra trabalhar. Tô com o Pietro. E você sabe disso — a voz de Bernardo era firme, mas soava desconfortável.
— Você pode estar com ele, mas ainda olha pra mim diferente — insistiu Ricardo.
— Você tá imaginando coisa. E é melhor parar com esse papo antes que eu perca a paciência.
Dei um passo pra trás, o peito um pouco apertado. Tive que respirar fundo antes de girar nos calcanhares e voltar ao balcão como se nada tivesse acontecido.
Peguei outro pacote de arroz da prateleira de ofertas e voltei ao balcão tentando manter a expressão tranquila, mesmo com o que tinha acabado de ouvir no depósito ainda martelando na minha cabeça. A imagem de Ricardo encurralando Bernardo com aquele tom insinuante não saía da minha mente.
Ajeitei o uniforme que teimava em coçar e passei um pano no balcão por puro reflexo, enquanto pensava nele — no Bernardo.
Ele tinha mudado bastante. Desde que a gente saiu da prisão, começamos a treinar todos os dias, até mesmo antes de conseguir esse emprego no mercado. Era o jeito que encontramos de não enlouquecer, de canalizar a raiva, a ansiedade, o passado inteiro que tentava grudar na gente como sombra. E como na prisão ele já vinha ganhando forma e ficando mais gostoso, imagine agora na academia!
Bernardo sempre foi um homem grande, forte, largo de ombros e de fala mansa. Mas agora... agora ele estava mais seco, definido. Os músculos apareciam com nitidez nos braços e no peito, mesmo por baixo da camisa do uniforme. O rosto afinado, a barba mais bem cuidada, aquele jeito calado que contrastava com o corpo forte... tudo nele chamava atenção. E talvez fosse exatamente isso que tinha feito Ricardo se morder de vontade.
Pensei nisso e mordi o canto da boca, incomodado.
Ricardo devia estar de olho, desde que começamos a trabalhar aqui. Gente como ele sente no ar quando alguém não é daqui. E mais ainda quando esse alguém é bonito de um jeito bruto e discreto, como o Bernardo.
Mas o que Ricardo não sabia — e ninguém ali sabia — é que quem estava por trás da aparência tranquila do casal recém-chegado era muito mais perigoso do que ele podia imaginar.
O jogo era nosso. E quem mexia as peças... era a gente.
Continua...