Com a agilidade de quem tenta varrer a poeira para debaixo do tapete, lavei o rosto na pia, sentindo a água gelada contra a pele. Esfreguei com força, como se pudesse apagar não só qualquer vestígio persistente de palidez, mas também a sombra da preocupação que teimava em se alojar em meus olhos. Precisava parecer firme, inabalável, mesmo que por dentro eu estivesse um nó de nervos. Sequei o rosto sem pressa, me olhando no espelho por um instante, buscando algum sinal de que a fachada se sustentaria. Respirei fundo, o ar frio preenchendo meus pulmões, e ajeitei a gola da camisa, como se um simples gesto pudesse restaurar a ordem no caos que se instalara na minha vida.
Então, dei o passo decisivo. Estiquei a mão, girei a maçaneta e abri a porta. E ali estava ele, o Lobo Mau, encostado no batente, usando um macacão cinza de encanador que parecia mais uma fantasia do que um uniforme. Nas mãos, ele segurava uma caixa de ferramentas, visivelmente amassada e arranhada, com uma pátina de ferrugem que sugeria que ela era mais velha que o próprio conceito de encanamento. O sorriso macabro e o olhar selvagem contrastavam de forma tão grotesca com o uniforme de trabalho que a visão era, para dizer o mínimo, surreal. E, francamente, ligeiramente ridícula. Tão ridícula que, por um breve e precioso instante, a tensão que me apertava o peito cedeu, e uma risada genuína, apesar de nervosa, escapou dos meus lábios.
Johnny me encarou, a expressão endurecendo. Antes que eu pudesse controlar a risada, ele se moveu com a velocidade de um predador e segurou a gola da minha camisa com uma mão, os dedos apertando o tecido. “Seu merdinha!”, rosnou, a voz grave e rouca que eu conhecia tão bem, agora carregada de uma raiva contida. “Você não tem medo de morrer, filho da puta?”
Meu corpo tremeu involuntariamente sob o aperto, um arrepio que não tinha nada a ver com a água fria do rosto. Mas forcei meus pés a permanecerem plantados no chão, meus olhos a encontrarem os dele. Tentei projetar o desprezo que sentia. “A culpa é sua por mentir para minha avó que era encanador”, respondi, a voz saindo um pouco mais rouca do que eu gostaria, um eco da minha vulnerabilidade.
O vilão estreitou os olhos. Um sorriso cruel começou a desenhar-se em seus lábios. “E como você tem tanta certeza de que é mentira, Chapeuzinho?”, ele provocou, o apelido soando como um chicote.
Respirei fundo novamente, reunindo o pouco de coragem que me restava. “Porque vi nos seus olhos”, comecei, e era verdade, havia uma malícia, uma falsidade que o denunciara. Mas a razão principal era bem mais prosaica. “E também porque você esqueceu de tirar a etiqueta de preço de seu uniforme”, adicionei, e estiquei a mão trêmula, apontando para o adesivo branco orgulhosamente colado na lateral da vestimenta.
O sorriso do predador desapareceu instantaneamente. Ele seguiu meu olhar até a etiqueta, uma expressão de surpresa irritada cruzando seu rosto antes de ser substituída pela habitual máscara de indiferença. Sem dizer uma palavra, rasgou a etiqueta, amassou-a na mão esquerda e enfiou no bolso do macacão. Então, deu um passo largo para o interior da cozinha, me forçando a recuar para dar espaço. Ele fechou a porta atrás de si com um clique definitivo, e a pequena casa pareceu encolher, o ar ficando denso com a sua presença.
Ele se aproximou, parando a poucos palmos de mim. Sua voz, antes um rosnado, abaixou consideravelmente, tornando-se um murmúrio perigoso e íntimo. “E aí?”, ele perguntou, com um tom quase casual que me fez gelar. “Recuperado do meu… tratamento intensivo?”
O sorriso cruel se alargou, predatório, sabendo exatamente a que se referia. Não havia necessidade de palavras explícitas, a lembrança estava fresca e vívida, quente e dolorosa, gravada na minha pele e na minha memória. Senti meu rosto corar intensamente, não de vergonha, mas de uma mistura de raiva e o eco da dor, a lembrança vívida e inescapável do meu cuzinho se arrombando sob ele na floresta.
Engoli em seco, tentando manter a compostura. “Ainda não”, admiti, a voz baixa, mal audível.
Johnny riu. Não foi uma risada divertida, mas um som áspero, seco e sem remorso, que parecia arranhar o silêncio entre nós. Ele me olhou de cima a baixo, os olhos fixos no meu rosto agora vermelho. “Bom”, ele proclamou, a voz carregada de um prazer sádico. “Parece que destruí mesmo o seu cu, bichinha!”
A crueldade casual daquelas palavras me atingiu como um raio, apagando qualquer vestígio de humor ou alívio que eu pudesse ter sentido. A etiqueta, o macacão ridículo, tudo sumiu. Restou somente o predador, lembrando-me da sua capacidade de causar dor e do seu completo desprezo por mim. “Isso não tem graça”, retruquei, a voz agora mais firme, impulsionada pela indignação e pela necessidade de me defender. Tentei soar o mais autoritário possível, apesar de tudo. “E as goteiras não vão se consertar sozinhas”, acrescentei, desviando o foco para a única razão pela qual ele deveria estar ali. “Então, menos papo e mais trabalho.”
A gargalhada de Johnny, alta e descontrolada segundos antes, cessou de repente, como se um interruptor tivesse sido desligado. O sorriso debochado que contorcia seus lábios se dissipou instantaneamente, dando lugar a uma expressão de frieza calculista, uma ameaça velada que fez meu sangue gelar. Sem qualquer aviso, sem um som sequer, seu punho colidiu com força total contra o meu abdômen.
O impacto foi avassalador, um choque cego que me tirou o ar dos pulmões em um grito mudo. Uma dor aguda, ardente e lancinante explodiu a partir do ponto de impacto, irradiando-se como fogo por toda a minha barriga. Meus músculos se contraíram involuntariamente, e eu me curvei sobre a dor, um gemido rouco escapando dos meus lábios. Sem controle sobre minhas pernas, despenquei, os joelhos batendo com força dolorosa contra o piso frio da cozinha. Fiquei ali encolhido, tentando recuperar desesperadamente o fôlego, o corpo tremendo. A dor era excruciante, um peso opressivo que me esmagava, e uma onda de náusea subiu pela minha garganta, ameaçando me fazer vomitar o pouco que eu tinha no estômago.
Pairando sobre mim, o monstro me olhou de cima com aqueles olhos azuis, frios e completamente desprovidos de qualquer empatia ou misericórdia, implacáveis como gelo. “Não se esqueça nunca mais com quem você está falando, Tiago”, sibilou ele, a voz reduzida a um murmúrio baixo e perigoso, carregado de ameaça e desprezo, mais afiada que uma lâmina. E então, no auge da minha agonia, veio a ordem cruel, fria e sem qualquer traço de humanidade: “Agora, levanta daí, seu inútil. E me arranja uma limonada. Bem gelada. Agora!”
Agonizando no chão, cada fibra do meu ser gritando de dor e humilhação, eu sabia, com uma certeza nauseante, que a resistência era fútil. Não havia para onde ir, ninguém para solicitar ajuda. Forcei meus músculos machucados a reagirem, cada contração um suplício. Com imensa dificuldade, apoiando-me em tudo o que encontrava, me levantei do piso frio, o corpo inclinado, a dor latejando violentamente a cada respiração, a cada movimento torturado. Cambaleei, mais do que caminhei, até a geladeira, com o objetivo singular de pegar os limões e espremê-los para fazer a bebida que meu agressor exigia, a humilhação me queimando por dentro tanto quanto a dor me dilacerava.