O céu ainda nem dava sinais de clarear quando estacionei em frente ao prédio de luxo onde Bernardo e Pietro moravam. A cidade ainda dormia, mas dentro de mim tudo queimava. Ódio, mágoa, sede de justiça — ou vingança, dependendo de quem julgasse. Subi pelo elevador com as mãos suadas e a mente fervilhando. Não podia mais esperar. Era hora de agir.
Toquei a campainha e, em poucos segundos, a porta se abriu. Pietro usava apenas uma calça de moletom e os olhos pesados de sono, mas sorriu ao me ver.
— Pedro? Chegou cedo mesmo né ?!
— A gente precisa conversar. Agora. Bernardo tá aí?
Ele assentiu, me deu passagem, e eu entrei. O apartamento era amplo, com um perfume suave e discreto no ar. Bernardo estava na cozinha, já com uma xícara de café nas mãos, como se soubesse que o dia seria longo.
— Pedro — disse ele receptivo —, senta aí.
Me sentei na poltrona, apoiando os cotovelos nos joelhos. Respirei fundo. Era agora ou nunca.
— Eu tô pronto pra dar o próximo passo. E vou precisar de vocês.
Os dois me encararam atentos. Pietro se sentou no braço do sofá, os olhos mais despertos agora. Bernardo cruzou os braços.
— Que tipo de passo, Pedro?
— Eu quero acabar com o Mateus — falei, sem rodeios. — Quero destruir ele. Publicamente. - Já mandei a foto dele pra vocês no whatsapp!
Um silêncio pesado caiu na sala. Eu continuei:
— Quero que ele seja preso, humilhado. E pra isso, vou precisar que vocês plantem drogas e algumas coisas ilícitas na casa dele. Preciso que chamem a polícia depois, como se fossem vizinhos preocupados. Mas não é só isso…
Pietro me olhou como quem tentava entender até onde eu iria. Bernardo não desviava o olhar.
— Também quero que ele seja pego em flagrante… numa situação íntima. Comprometedora. Uma situação que acabe com a reputação dele. Quero ele no chão, sem dignidade nenhuma.
— Você quer… que ele esteja transando com alguém na hora da batida? — Bernardo perguntou, com um misto de surpresa e incredulidade.
Assenti, sem hesitar.
— Exatamente. E eu pensei… Pietro, você poderia seduzir ele. Você é bonito, sabe se insinuar. Mateus sempre foi do tipo babaca que cai fácil. Você entra, grava tudo escondido, faz ele confiar em você. Na noite marcada, a polícia aparece. E não só a polícia. Mando também uma equipe de reportagem. Com câmeras. Quero isso na televisão. Em toda a cidade. Quero ele destruído.
Pietro engoliu em seco, mas não disse nada por alguns segundos. Por fim, se levantou e andou até a janela. Ficou de costas, pensando. Bernardo me observava com intensidade.
— Pedro… você tem certeza de que é isso que você quer? — perguntou Bernardo.
— Mais do que nunca. Ele acabou comigo. Agora é minha vez de mostrar pra ele o que é cair.
Pietro virou devagar e se encostou na parede.
— Eu topo — disse, firme. — Se é isso que você precisa, vou fazer. A gente planta as drogas, arma a cena, chama a polícia. E eu me viro com o resto.
Bernardo suspirou e se levantou.
— Vai ser arriscado. Mas vamos fazer isso direito. Sem deixar rastros. Vamos precisar de alguém confiável pra plantar as coisas, e temos que manipular bem o tempo da denúncia e da chegada da imprensa.
— Eu cuido disso — garanti. — Só preciso que vocês façam a parte de vocês. E, Pietro… quero que grave tudo. Quero ver o olhar de desespero dele quando perceber que acabou.
Ele assentiu, agora completamente dentro do plano.
— Vai ser um espetáculo, Pedro. Vai ser o fim dele.
Me levantei, satisfeito. O coração ainda acelerado, mas firme. A primeira peça tinha sido colocada no tabuleiro.
— Obrigado, de verdade. Eu vou fazer com que ele pague por tudo. Pela dor, pelas cicatrizes, pelo silêncio que me obrigaram a manter - Respirei fundo - Depois disso vocês estão livres!
Me despedi dos dois com um aperto de mão forte. Quando saí do prédio, o sol ainda não tinha nascido, mas dentro de mim já clareava. Não era paz — longe disso. Mas era o início da queda de quem um dia me fez acreditar que eu não valia nada.
E dessa vez, ele ia ver. Todos iam verA janela do avião embaçada pelas nuvens me lembrava o quanto o tempo pode ser instável, como a vida, como eu. Desembarcar em São Paulo, depois de tudo, me deu uma sensação esquisita.
Peguei o Uber ainda com a mochila nas costas. O motorista mal falou comigo, e isso foi perfeito. Eu queria silêncio. Queria olhar pela janela e reconhecer os prédios que me viram passar fome, a calçada onde eu me encolhi certa noite, esperando o sol nascer como se ele trouxesse algum tipo de alívio. Era tudo tão familiar… e tão distante ao mesmo tempo.
No banco de trás, tirei uma foto discreta. Era só a paisagem da cidade cinza pela janela do carro. Postei no story com a localização: São Paulo - SP. Sem legenda. Quem sabia, saberia.
Fechei o celular e encostei a cabeça no vidro, mas o barulho da notificação vibrou segundos depois. Instintivamente, abri.
Arthur tinha visto.
Senti o coração acelerar. Ainda doía. Mesmo depois de tudo que ele me fez, parte de mim ainda reagia ao nome dele como um reflexo antigo. Antes que eu pudesse racionalizar, mais uma notificação apareceu.
Arthur tinha postado um story também. Uma foto dele, visivelmente abatido, saindo do hospital. De jaleco ainda. Com os cabelos meio bagunçados e a legenda simples: "Um dia de cada vez."
Fiquei ali, encarando a tela por uns bons segundos. Tive que respirar fundo. Meu dedo pairava sobre o teclado e, contra todo bom senso, eu escrevi:
— Tá tudo bem com você?
Esperei. Quase achei que ele fosse ignorar. Mas então, a resposta apareceu:
— Tô melhor, Pedro. Obrigado por perguntar.
Foi isso. Simples. Quase frio. Mas sincero. Senti um peso estranho no peito. Um arrependimento não declarado, talvez? Ou só a lembrança de que um dia, mesmo que por pouco tempo, a gente foi algo. Ou quase foi.
Voltei a guardar o celular no bolso, tentando ignorar o vazio, mas algo me incomodou. Peguei o telefone de novo, fui até o chat. O status de “online” sumiu. Nenhuma foto no perfil. Cliquei. A confirmação veio em silêncio, seca:
Você foi bloqueado.
Fiquei ali, olhando pra tela acesa, como se ela fosse me dar explicação. O Uber virou a esquina e o prédio do hostel onde eu ficaria apareceu pela janela. Um gosto amargo subiu pela garganta.
Ele me bloqueou.
Eu não sabia exatamente por quê. Talvez tenha sido só impulso. Ou talvez a resposta dele tenha sido uma despedida disfarçada. Um aceno final. Um “siga sua vida” sem poesia.
Desci do carro com a mochila nas costas e o coração mais pesado do que quando tinha chegado. São Paulo nunca foi gentil comigo. Mas agora, pelo menos, eu não era mais o mesmo garoto frágil que ela tentou engolirEstava sentado num café discreto, com o notebook aberto e a cabeça a mil, organizando os próximos passos da minha estratégia. São Paulo fervia lá fora com seu cinza frenético, mas aqui dentro o tempo parecia suspenso. Até que o celular tocou. Flávio.
Meu coração travou por um segundo. Respirei fundo antes de atender.
— Alô?
A voz dele veio forte, carregada de raiva e mágoa:
— Pedro, que porra é essa? — ele começou, sem cerimônia. — Você simplesmente some, vai pra São Paulo do nada, e eu fico sabendo por um story? É isso mesmo?
Fechei o notebook devagar, tentando pensar no que dizer.
— Flávio, calma…
— Calma, o cacete! — ele interrompeu. — Eu achava que a gente tava ficando sério. Achei que a gente tava… sei lá, começando alguma coisa de verdade. Mas você sempre faz pouco caso de mim! Sempre me deixa em segundo plano! E agora vai embora sem nem avisar? Me faz de idiota?
Fiquei em silêncio por um momento. Doeu ouvir aquilo. Não porque ele estava errado — mas porque ele estava certo.
— Eu… eu precisava vir com urgência. Foi questão de negócios, Flávio. Não foi por mal. Não é que eu não me importe com você, é só que… às vezes eu me perco no que tô fazendo, no que tô construindo. Eu tô tentando resolver algumas coisas importantes aqui, coisas que podem mudar tudo. E eu vou precisar passar um tempo em São Paulo pra isso.
Do outro lado, o silêncio ficou denso. Eu podia imaginar ele esfregando o rosto, nervoso, decepcionado.
— Parece que eu sou só mais um na sua vida, Pedro. Que eu sou o cachorrinho que você chama quando quer carinho e ignora quando tá ocupado.— a voz dele agora era baixa, mas carregada de dor.
Me doeu mais do que eu esperava.
— Eu sei que parece isso, mas não é. Eu juro. Eu devia ter te ligado, devia ter te explicado… me desculpa. Mesmo. Você não merece isso.
— Você vai voltar?
— Vou. Ainda não sei quando, mas vou.
Silêncio de novo. Até que ele disse:
— Então tá. Eu vou esperar você voltar. Mas, por favor, Pedro… para de me tratar como se eu fosse descartável.
Fechei os olhos e respirei fundo.
— Eu prometo que não vou mais fazer isso. E, aliás… ?
Ele hesitou por um segundo, mas a resposta veio firme:
— Topo.
— Obrigado, Flávio. De verdade.
— Se cuida aí, Pedro.
— Você também.
A ligação caiu, e eu fiquei olhando pro celular por um tempo. A culpa apertava o peito, misturada com um sentimento estranho que eu tentava ignorar. Flávio tinha razão. Eu tava tão focado em vencer, em me vingar, em controlar tudo… que às vezes esquecia das pessoas que realmente estavam do meu lado.
Mas agora, talvez ainda desse tempo de fazer diferente. Talvez.
Ainda estava sentado no café com o notebook fechado ao meu lado e uma xícara de café já quase fria. O sol de São Paulo começava a bater pelas janelas grandes de vidro!
Liguei pra Flávio e ele atendeu com um “Oi” meio seco, mas o simples fato de ter atendido já era um alívio.
— Flávio, preciso te pedir um favor. Um grande favor mesmo — falei, mexendo no café sem coragem de dar mais um gole.
— Lá vem...— ele resmungou do outro lado.
— Eu deixei a chave do meu apartamento na portaria. Já avisei que você vai passar lá hoje. Vai ter uma transportadora chegando à tarde pra empacotar tudo… comprei aquela casa nova, lembra? Só que não vou conseguir estar aí pra acompanhar.
— E você quer que eu vá lá, ajude os caras a embalar as coisas e acompanhe até a nova casa?
— Isso. Só preciso que você oriente os meninos, veja se tá tudo certinho e entregue tudo lá. Confio mais em você do que em qualquer outra pessoa pra isso.
Do outro lado, silêncio por alguns segundos. Peguei a xícara com as duas mãos, quase como se fosse um escudo.
— Tá bom, Pedro. Eu vou lá, ajudo eles e deixo tudo direitinho na casa nova.
Soltei o ar devagar, como se só agora meu corpo tivesse permitido relaxar.
— Sério, Flávio, isso me ajuda demais. De verdade. Quando eu voltar, vou te recompensar. Do jeito que você quiser.
— Quero pizza e um vinho decente. — ele disse, num tom mais leve. — E talvez… um pouco da sua atenção de verdade.
Sorri sozinho, encarando o fundo do café.
— Fechado. Vai ter pizza, vinho, e minha atenção total. Obrigado mesmo, Flávio. Você é incrível.
— Tô começando a acreditar nisso, viu.
Desliguei e encostei a cabeça na parede fria do café.
Continua...