Já era noite. A chuva fina batia suave na janela do nosso quarto, enquanto o som de Victor e Léo preenchia o ar num volume baixo e envolvente. Eu estava deitada entre os braços do Léo, com a cabeça encostada em seu peito quente e nu, sentindo a respiração tranquila dele, o cheiro da nossa pele misturada após o banho demorado que havíamos tomado juntos. Estávamos em paz. E depois de tudo que havia acontecido na semana — a tensão, as mudanças, as decisões — aquele silêncio entre nós tinha sabor de acolhimento, de reencontro.
— Amor… — rompi o silêncio, com a voz baixa. Eu promovi o Matheus.
— Ah, é? — ele disse, brincando com meus cabelos. — E o que o estagiário virou agora? Sócio?
— Assistente pessoal. — ri. — E ele se emocionou tanto…Ele se abriu comigo. Contou da vida difícil, da irmã que ele criou praticamente sozinho… E também… contou sobre os sentimentos dele. Sobre se sentir diferente desde sempre. Sensações que eu mesma conheci tão bem um dia.
O Léo me apertou um pouco mais nos braços.
— Ele te contou tudo isso?
— Contou. E foi de cortar o coração, mas também foi lindo. Ele tá se descobrindo, Léo. Aos poucos, com medo, mas com brilho nos olhos. Me disse que eu sirvo de inspiração… E eu senti… senti que ele precisa de nós agora.
— Então vamos estar com ele — Léo disse, convicto, sem hesitar nem por um segundo. Se tem uma coisa que a gente sabe, é como é importante ter apoio nessa fase. Tu sabe disso melhor do que ninguém, minha advogata. E se ele te escolheu pra abrir o coração… é porque confia de verdade.
Léo ficou em silêncio por um instante. Depois, beijou minha testa.
— Eu tava pensando… — murmurei, enquanto fazia círculos com os dedos no peito dele. A gente podia fazer uma festa de final de ano aqui do escritório. Uma festa temática, com fantasias. Um clima leve, pra comemorar os resultados do ano, que foram incríveis… e pra celebrar a liberdade, a coragem, a diversidade também.
— Festa à fantasia? — ele sorriu, malicioso. E eu vou de quê? Príncipe encantado da advogata?
— Claro! — dei um risinho. — Porque eu vou de rainha, óbvio. Mas, falando sério… seria o espaço perfeito pra que o Matheus possa explorar uma nova faceta. Um lugar seguro, leve, divertido. Talvez seja o momento certo dele mostrar quem está nascendo de verdade ali dentro.
Léo ficou pensativo, mas com um sorriso no canto da boca. A ideia é perfeita. A gente fecha o ano com chave de ouro, e ainda marca o renascimento de alguém. Vai ser uma festa que ninguém vai esquecer. Me aconcheguei mais ainda nele, o coração quente de amor, de esperança, de propósito. Eu e Léo éramos mais do que um casal apaixonado. Éramos porto seguro um do outro.
A semana começou com aquele clima típico de dezembro: todos no escritório meio acelerados, tentando fechar os últimos prazos, concluir os relatórios, atender clientes ansiosos antes do recesso. Mas havia também uma energia diferente no ar — uma mistura de leveza e expectativa. Na quarta-feira pela manhã, pedi que todos se reunissem na sala de reuniões. Léo entrou junto comigo, sorrindo, enquanto eu me posicionava na frente da equipe com um ar decidido, mas leve. Estava de vestido vinho, maquiagem impecável e o batom vermelho que se tornara quase minha marca registrada. Olhei para cada um ali, e comecei:
— Gente, eu chamei vocês aqui porque, antes de mais nada, eu quero agradecer. Esse ano foi desafiador, intenso, mas também foi o melhor ano da história do nosso escritório. Isso é mérito de cada um aqui, falei com sinceridade, observando sorrisos tímidos e olhos atentos. Continuei:
— E por isso, como forma de agradecimento e também de encerramento do ano, decidimos fazer uma festa de fim de ano, no último sábado antes do recesso… E vai ser uma festa à fantasia! Nada de terno e gravata, nada de tailleur. Quero ver criatividade, diversão, e liberdade! Anunciei, arrancando palmas e risos da equipe.
— Ah, e sim, vai ter prêmio pra melhor fantasia! — completei, piscando com charme.
A reação foi animada. O pessoal adorou. Alguns já cochichavam sobre ideias, duplas, fantasias temáticas… e, num cantinho da sala, Matheus estava com aquele sorriso nervoso, mas os olhos brilhavam. Nos dias seguintes, fui observando, com ternura no coração, o quanto Matheus estava começando a se permitir. Na quinta-feira, notei um leve brilho nos lábios dele. Um gloss transparente, discreto, mas lindo. Combinei com um elogio:
— Ficou ótimo esse brilho, Matheus. Realça teu sorriso, disse ao passar por ele, que sorriu meio envergonhado.
Na sexta, ele apareceu com as sobrancelhas perfeitamente desenhadas. Quando passou por mim com uma pastinha de documentos, olhei com carinho.
— A sobrancelha nova te deu um olhar mais marcante… gostei — comentei.
Ele ruborizou. Na outra semana, reparei as unhas lixadas, limpas, com base. E ele cada vez mais delicado nos gestos, mais atencioso no tom de voz. Eu via aquela mesma caminhada que um dia eu também trilhei — cheia de medo, mas com lampejos de esperança. Em um dos intervalos, ele bateu na minha porta, segurando um bloquinho.
— Doutora Ju… posso te incomodar um minutinho?
— Sempre, meu bem. Entra.
Ele se sentou à minha frente, ajeitando a barra da calça, passando a mão delicadamente pelos cabelos que agora usava um pouco mais compridos, com uma leve curvatura nas pontas. Os lábios estavam com um gloss translúcido, e um cheirinho leve e adocicado escapava de seu perfume.
— Doutora Ju… eu queria te agradecer por tudo que tem feito por mim, de verdade. E... também queria te contar uma coisa, disse, mexendo nervosamente os dedos com as unhas bem cuidadas e lixadas.
— Claro, me conta.
— A Mariana… minha irmã… ela tá me apoiando tanto. Ela disse que nunca imaginou que teria uma irmã, mas que tá adorando essa ideia. Que tá feliz por mim. A gente até tem se divertido com isso. Ela me ajudou a escolher esse gloss, acredita?
Sorri com o coração derretido.
— Acredito sim. Ela tem muito bom gosto.
— E Doutora… — ele baixou os olhos e depois voltou a me encarar com uma sinceridade pura — será que eu posso... aos poucos... ir me permitindo ser mais delicado? Ser mais eu? Me cuidar mais, quem sabe... ir assumindo mais isso? Me levantei, dei a volta na mesa e segurei as mãos dele. — Meu amor… você não precisa pedir permissão pra ser quem você é. Mas, se quer saber minha opinião: sim, por favor, se permita. A cada dia, mais. Você merece florescer. E eu estarei ao teu lado pra te ajudar a desabrochar do jeitinho que você quiser. Os olhos dele marejaram. Ele sorriu, respirando fundo como quem se libertava mais uma vez.
Enquanto ainda trocávamos palavras carinhosas, percebi o olhar de Matheus escapar pela fresta da porta entreaberta. Segui o olhar. Era Heitor, o novo advogado recém-contratado passando com sua pasta embaixo do braço e um terno bem ajustado. Moreno, elegante, com aquele ar sério, mas sorriso fácil. Heitor olhou de relance para dentro da sala e, ao notar Matheus, o canto da boca se ergueu com sutileza. Um cumprimento silencioso, porém cheio de intenção. Matheus desviou o olhar, mas não conseguiu esconder o sorriso bobo que brotou nos lábios e as bochechas coradas
. — Tá rolando alguma coisa aí que eu devia saber? — provoquei, com um risinho cúmplice.
— Ai... É bobeira. Mas... o Heitor é tão educado, tão gentil. Sempre tem uma palavra doce. Outro dia elogiou meu perfume. E... sei lá, acho que ele notou algo em mim. Às vezes ele me olha de um jeito que... me faz esquecer do mundo.
— Isso não é bobeira. Isso é encanto — falei baixinho, apertando levemente suas mãos. E você tem esse poder, Matheus. Ele sorriu largo.
— Matheus, vejo que esta empolgado com tudo que vem acontecendo. Isso é maravilhoso. Como devemos te chamar?
— Eu… tenho pensado num nome. Já faz tempo. E quando você falou da festa, me veio como um estalo. Melissa. Esse nome me arrepia, me emociona. Eu queria estrear… ela. A Melissa. Mas eu não sei como. Não sei o que vestir, como andar, como me portar… Levantei da cadeira e fui até ele, sentando ao seu lado.
— Melissa é um nome lindo. Suave, doce e forte. E se for isso que você sente, então ela merece nascer com tudo que tem direito. Eu te ajudo, claro que ajudo. A gente pode pensar numa fantasia que te represente, mas que te faça sentir linda.
A semana no escritório ia se encerrando com aquela energia leve e alegre no ar. Os elogios à festa fantasia não paravam de surgir, os funcionários estavam entusiasmados com a celebração, e tudo estava indo no ritmo certo. No fim da tarde, depois de todos saírem, fui até a sala do meu Léo. Ele estava encostado na mesa, afrouxando a gravata, e me olhou com aquele sorriso que me desmonta.
— Já terminou os despachos, doutora? — perguntou com aquele tom brincalhão, me puxando pela cintura assim que me aproximei.
— Terminei, doutor. E acho que agora é hora de um intervalo muito bem-vindo — murmurei, beijando o pescoço dele devagar.
Ele me apertou contra si, encostando o rosto no meu pescoço.
— Esse seu perfume me deixa completamente fora do ar…
Nos beijamos com desejo contido, daqueles que só a rotina consegue adiar. Depois, sentados lado a lado no sofá da sala dele, com as luzes mais baixas e o barulho da cidade distante, encostei a cabeça no ombro dele.
— Amor… estou pensando em tirar o dia de folga amanhã.
— Cansada? — ele perguntou, fazendo um carinho nos meus cabelos.
— Um pouco, mas não é por isso. É por alguém que precisa da gente agora.
Ele ergueu uma sobrancelha, curioso.
— Melissa.
— Ah… sorriu. Vai ser amanhã?
— Quero levar ela para se preparar, Léo. Ajudar ela a escolher roupas, maquiagem, ensinar a andar de salto, como se portar, sabe? Quero que seja um dia especial. A primeira vez que ela vai poder se olhar no espelho e dizer: “Essa sou eu.”
Léo me olhou nos olhos com tanta ternura que senti os olhos arderem.
— Você tem noção do quanto está mudando a vida dessa menina? Ju… você é extraordinária.
— Ela merece, amor. Eu vi nos olhos dela. A insegurança, a dúvida... a mesma que eu sentia no começo. Eu não tive ninguém pra pegar minha mão e dizer “vai dar tudo certo”. Quero ser isso pra ela.
Ele me puxou num abraço apertado e sussurrou:
— Então vai. Leva ela pra florescer. E se precisar, eu peço o dia inteiro de folga no escritório pra gente fazer uma revolução ali dentro. Com salto, gloss e muito amor.
Eu ri, emocionada, e o beijei.
— Te amo tanto, Léo. Obrigada por me ajudar a ajudar os outros também.
— E eu te amo por ser exatamente assim, minha doutora advogata maravilhosa. Agora vai lá e transforma a Melissa na diva que ela nasceu pra ser.
No dia seguinte, deixei uma mensagem para toda a equipe informando que estaria ausente por um compromisso pessoal e importante. Melissa me esperava na frente do prédio, ansiosa, de gloss discreto nos lábios, uma camisa social leve e a calça jeans justa que ela agora usava com naturalidade. Os olhos brilhavam, mas as mãos trêmulas revelavam o nervosismo.
— Pronta pra começar a viver? — perguntei com um sorriso.
Ela assentiu, segurando firme minha mão. E fomos.
Passamos horas incríveis no centro da cidade. Levei a Melissa a uma boutique especializada, daquelas que respeitam a identidade e acolhem com carinho. Começamos com lingeries, algo simbólico, algo só dela, e depois vieram vestidos, saias, peças delicadas e bem femininas. Em um momento ela experimentou uma blusa de tule com brilhos, se olhou no espelho e disse baixinho:
— Sou eu, doutora… pela primeira vez, sou eu.
Depois fomos escolher sapatos. Os olhos dela se fixaram em um par de scarpins pretos com salto médio e detalhe em verniz. Quando calçou e deu os primeiros passos, riu, desequilibrada, e caiu nos meus braços.
— É como reaprender a andar… — disse entre risos e lágrimas. Mas dessa vez com sentido.
Fizemos também uma sessão de maquiagem suave e delicada. Dei dicas, mostrei como esfumar os olhos, aplicar a base correta pro tom dela, segurar o pincel com leveza. Ensinei até os truques de como sorrir com batom, sem borrar, risos, cumplicidade, transformação.
Quando paramos para almoçar, ela estava emocionada. Contou como a irmã, Mariana, estava vibrando com tudo, ajudando em casa, incentivando, até chamando ela de “irmãzinha”.
Naquela tarde, depois do almoço, levei Melissa a uma pequena sala espelhada anexa à loja. Era um espaço usado para ajustes e testes de roupas, mas que naquele dia virou a nossa passarela particular.
Ela segurava o par de scarpins com uma mistura de encantamento e medo. Me sentei em um dos pufes, calcei meus próprios saltos e disse, com um sorriso:
— Hoje a doutora vai ser sua professora de passarela.
Ela riu, nervosa.
— Ai, Doutora… e se eu cair?
— Primeiro, hoje eu sou a Juliana...a Ju. Segundo, se você cair? Então levanta com classe, sacode o cabelinho, e segue linda.
Ela respirou fundo, calçou os saltos, e ficou em pé. As pernas tremiam, mas havia um brilho nos olhos dela que não dava pra descrever. Dei os primeiros passos e mostrei:
— Pés em linha reta, postura ereta, ombros soltos, quadril leve… você não pisa com força, você desfila.
Melissa tentou. Cambaleou um pouco. Se apoiou na parede.
— Vamos de novo — disse, estendendo a mão.
Ficamos ali por mais de uma hora, entre tentativas, tropeços, risos e aplausos. Eu batia palmas toda vez que ela dava dois ou três passos firmes. E aos poucos, ela foi pegando o jeito. O andar foi ficando mais leve, mais natural. Os movimentos mais confiantes.
— Eu tô mesmo fazendo isso? — perguntou, sem acreditar.
— Você está arrasando, Melissa. Você é uma mulher linda. E anda como uma deusa.
Ela deu mais uma volta. Dessa vez, fez até um giro no final, levantando a pontinha do pé como uma bailarina. Rimos alto, abraçadas.
— Amanhã, a gente treina de novo — disse eu. — Vou te ensinar a sentar com elegância, a cruzar as pernas, a usar salto como se tivesse nascido nele.
— Obrigada, Ju. Por tudo. Por me ver. Por acreditar. Por me ensinar a ser… eu.
Enxuguei uma lágrima discreta no canto do olho. Havia algo mágico naquilo. Eu me via nela, anos atrás. E agora era minha vez de guiar alguém na travessia.
— Você não precisa me agradecer, Mel. Eu estou fazendo por você o que eu gostaria que tivessem feito por mim. Agora vai e pisa forte… mas com charme.
E ela foi. Dando passinhos cada vez mais seguros, mais femininos, mais dela.
— Eu nunca pensei que ia viver isso, Ju… me vestir como eu sempre quis… ter alguém me chamando de Melissa. E agora tem até o Heitor… — sorriu, olhando para baixo, corada.
— E vocês vão juntos à festa?
— Quero ir com algo que combine com ele. Ele disse que queria algo meio fantasia medieval… tipo um cavaleiro. E eu queria ser algo mágico… tipo uma fada. Uma fada gótica!
— Perfeito! — eu disse. Uma fada gótica, com asas transparentes, brilho, vestido curto preto de tule e corset, salto fino… e make esfumada com pedrinhas coladas nos olhos. Vai deixar o Heitor louco.
Ela ficou muda, só apertando meus dedos, arrepiada da cabeça aos pés.
— Você acha mesmo?
— Eu tenho certeza, Melissa. Você vai chegar como quem nasceu pra ser admirada.
Mais tarde, quando retornei para casa, Léo estava me esperando no sofá, com uma taça de vinho. Me joguei nos braços dele e contei tudo. Ele ouviu encantado e orgulhoso.
— Estou imaginando a cena… que coisa linda. E a sua fantasia? Já pensou?
— Quero algo à altura da ocasião. Eu e você, um casal memorável. Que tal eu de Rainha do Tarot… e você de Rei de Espadas? Algo elegante, dramático, místico. Eu com coroa, luvas rendadas, meia arrastão, salto altíssimo e espartilho. Você com aquele terno preto bordado que compramos em Gramado, e uma capa longa com detalhes dourados.
Ele me olhou com um sorriso malicioso.
— Vai ter que me segurar na festa, doutora. Ou eu te arrasto pra algum canto escondido.
— Vai ter que segurar essa espada bem firme então, meu rei…
Rimos, brindamos, e dormimos de conchinha, com o coração aquecido por tudo que estávamos construindo — não só entre nós, mas ao nosso redor também.