A semana começou conturbada, depois de um fim de semana maravilhoso na praia junto com o Léo. Quando voltamos para casa, enfrentamos um trânsito terrível, chegando em casa no meio da madrugada. Dormimos poucas horas, para não dizer minutos. E não deu outra: acordamos atrasadíssimos. Eu sempre uso uma frase, que corrobora isso: Odeio segunda-feira! Para mim, a única coisa boa da segunda feira é que o dia mais longe da próxima segunda feira. Nada acontece de bom em uma segunda feira. Na semana anterior, minha médica alterou as dosagens dos meus hormônios. Isso normalmente não me afetava tanto, mas dessa vez o efeito foi mais marcante e evidente. Eu estava em um misto de ansiedade, tensão, estresse e irritabilidade, que nem eu mesma estava me aguentando naquela segunda. Juntem tudo isso com as poucas horas de sono e a correria por sair atrasada. Pronto: quase uma tragédia anunciada.
Chegamos no escritório, dei um beijo discreto no Leonardo e me direcionei para minha sala. Normalmente, eu era muito fechada em relação a minha vida pessoal. Na verdade, nunca fui de me abrir muito com as pessoas. No escritório, muito embora eu me soltasse mais o com Léo, sempre buscava manter o profissionalismo junto com ele. Tudo bem que as vezes a gente abusava um pouquinho kkk, o que era delicioso. Mas sempre buscamos ser discretos, para evitar falatórios e comentários. Nos já estávamos morando juntos a alguns meses, e ainda assim poucos colegas apenas desconfiavam da nossa relação. Quando cheguei na minha sala, Matheus já estava lá. Ele estava fazendo um relatório dos andamentos processuais. Eu nem havia ligado o computador e ele me chamou:
- Doutora, podes dar uma olhada aqui?
Fui até ele, e ele me mostrou um processo extremamente importante que perdemos o prazo para realizar uma manifestação, fazendo com que perdêssemos o processo. Esse processo estava aos cuidados do doutor Carlos, que era simplesmente o advogado mais antigo do escritório. Já trabalhava lá antes mesmo de eu começar. Doutor Carlos presenciou meu inicio no escritório, como uma simples auxiliar jurídica, ainda no início da minha transição, quase uma faz tudo, até ser o que sou hoje, uma das sócias do escritório. Ele não era um mal profissional, muito pelo contrário. Porém, era acomodado, não tinha ambições na vida. Fazia o feijão com arroz e pronto. Não demonstrava aspirações a querer maiores coisas. Raramente dirigia a palavra a mim, ou me pedia algo. De certa maneira, parece que ele me evitava. E como ele nunca me deu motivo, eu tambem não o procurava. No maximo bom dia, boa tarde ou bom descanso. Normalmente ele tratava a maioria das questões com o Leonardo.
Olhei aquele processo nas mãos do Matheus, e um calor subiu pelo meu corpo. Não era possível que justo aquele caso tão sensível tivesse sido negligenciado.
—Essa sentença saiu quando? — perguntei, tentando manter a calma.
— Na segunda-feira retrasada, doutora... — ele respondeu, um pouco hesitante.
Eu respirei fundo. O protocolo da contestação tinha prazo fatal, e o prazo já havia se esgotado. Com um aperto no peito, agradeci ao Matheus e fui direto até a sala do Carlos.
— Doutor Carlos, posso falar com o senhor?
Ele me olhou por cima dos óculos.
— Pode, doutora Juliana. Entrei, fechei a porta e fui direta.
— Perdemos um processo importantíssimo. O senhor deixou passar o prazo da manifestação no caso da senhora Valéria Borges. O senhor sabe o que isso significa, né?
Ele demorou a reagir. Por um instante, pensei que ele fosse negar. Mas não: apenas deu de ombros e respondeu com frieza:
— Acontece, Juliana. Não é o fim do mundo.
— Com todo o respeito, doutor Carlos, isso não pode acontecer.
Ele não aceitou muito bem minha cobrança, e replicou:
— O que não pode acontecer é você vir até aqui me incomodar por uma besteira dessas. E outra coisa… eu não vou ser cobrado por um viadinho de saias. Antes de voce começar a dar esse rabo eu já era advogado aqui nesse escritorio. Para você estar irritadinha desse jeito, só pode ser falta de pica nesse cu magrelo.
Ele disse em alto e bom tom, quase como se fosse para o escritório todo ouvir. Fiquei em choque, com o sangue fervendo. Mas não pude aceitar isso.
— Doutor Carlos, vou pedir que o senhor recolha suas coisas e saia do escritório. O senhor está demitido.
Ele se levantou da cadeira enfurecido, gritando:
— Quem tu pensa que é para me demitir????
Nisso, ao ouvir o princípio da discussão, Leonardo entrou de repente na sala e completou:
— Ela é a dona do escritório, e o senhor retire-se antes que fale mais besteiras que possam lhe prejudicar ainda mais.
O silêncio que se seguiu parecia pesar toneladas. O doutor Carlos me olhou com ódio nos olhos, mas também com surpresa — como se só ali tivesse finalmente entendido que seus anos de empresa não o colocavam acima de ninguém. Ele bufou, olhou para o Léo e, sem conseguir argumentar, recolheu seus pertences com movimentos duros, agressivos. Fechou a pasta com força, socou a caneta no bolso e saiu esbarrando na porta, deixando atrás de si um rastro de tensão e raiva. Leonardo se aproximou de mim assim que ele saiu. Com a voz baixa, firme e carinhosa:
— Você tá bem?
Eu apenas balancei a cabeça. Não queria chorar, mas meu corpo tremia. Não era só a raiva pelas palavras nojentas que ouvi. Era também o alívio por não me calar. Por não aceitar. Por ser quem sou, e fazer valer minha dignidade.
— Eu tô aqui, Ju. Sempre vou estar — ele sussurrou, me puxando com cuidado para um abraço.
Demorei um segundo antes de me permitir ser envolvida por aquele abraço quente, firme, seguro. Um lugar de paz no meio de um dia de guerra. Ficamos assim por alguns minutos, apenas respirando. Depois de toda a tensão com o doutor Carlos e sua saída vergonhosa do escritório, era necessário seguir — com dignidade, com firmeza, com respeito. Assim que nos recompusemos, Leonardo saiu da sala e chamou Matheus discretamente.
— Matheus, por favor, convoque todos para uma reunião de emergência na sala de reuniões. Agora.
Em poucos minutos, as secretarias, os advogados e estagiários do escritório estavam reunidos. A tensão ainda pairava no ar, mas agora misturada à curiosidade e ao silêncio respeitoso que se instala quando se sente que algo importante está prestes a acontecer. Leonardo ficou de pé, à frente da mesa central. Pousou as mãos sobre a madeira escura, olhou ao redor e respirou fundo antes de começar:
— Imagino que muitos aqui já saibam do que aconteceu nesta manhã. E não estou aqui para repetir palavras ofensivas ou dar palco para atitudes intoleráveis. Estou aqui para reafirmar o que este escritório representa.
Fez uma breve pausa e continuou:
— Meu pai fundou este lugar com muito esforço. E por muito tempo este escritório permaneceu estagnado. E foi aí que ela chegou. Juliana! Ele virou o rosto em minha direção. Eu estava sentada um pouco afastada, com Matheus ao meu lado, e senti meu coração acelerar.
— A doutora Juliana não foi apenas uma profissional brilhante. Ela foi — e é — o motor dessa nova fase do nosso escritório. Ela foi a força que tirou esse lugar do piloto automático e levou ao sucesso. Sob sua liderança e experiencia, trouxe inovação, organização e resultados que nunca havíamos alcançado antes. Aqui, não há espaço para preconceito, para desrespeito, para covardia. Quem estiver conosco, que esteja com valores. Quem não conseguir entender isso, que procure outro lugar.
Alguns colegas assentiram. Outros ainda pareciam absorver as palavras.
— E mais do que isso… — ele continuou, com a voz agora mais baixa, mais quente. E além de ser minha colega de trabalho, minha sócia, além de tudo o que representa como profissional, Juliana é a mulher com quem eu compartilho a vida. Aquela com quem eu durmo, acordo, discuto, reconcilio, e amo. É minha parceira em todos os sentidos da palavra. A mulher com quem eu vou me casar. E hoje, mais do que nunca, eu me orgulho de estar ao lado dela. Como homem, como advogado, como sócio.
Houve um momento de silêncio. Eu não sabia se segurava as lágrimas ou o sorriso. E logo um burburinho cortou o ar. Vi olhares cruzarem a mesa. Uns surpresos. Outros solidários. Outros, visivelmente tocados pelas palavras, lançaram olhares de respeito. Um ou dois desconcertados. Me mantive ereta, profissional, com um leve sorriso educado nos lábios, mas por dentro, uma onda de gelo percorreu minha espinha.
A reunião terminou com aplausos espontâneos. Olhares mais firmes, mais verdadeiros.
Após a reunião, o clima no escritório parecia ter mudado. Eu sentia os olhares, agora diferentes. Não de julgamento, mas de reconhecimento, curiosidade talvez. Ainda assim, aquilo me pesava. Eu precisava respirar. Quando todos se dispersaram, me aproximei de Leonardo, ainda na sala de reuniões.
— Léo, posso falar contigo um minutinho? — pedi num tom baixo, mas firme.
Ele assentiu de imediato. Caminhamos até minha sala. Fechei a porta devagar.
— Ju… — ele começou, mas eu ergui a mão, interrompendo com firmeza.
— Léo… — falei baixo, porém cortante. — Tu não podia ter feito aquilo.
— Feito o quê?
— Me exposto. Assim. No meio de todo mundo. Nossa relação, tudo o que vivemos… é nosso. Eu sempre preservei isso no escritório, tu sabe. E agora tu solta que vai casar comigo, como se fosse só mais uma informação da pauta?
Ele respirou fundo, frustrado, passando a mão nos cabelos.
— Eu falei com orgulho, Ju. Tu tem ideia da mulher que tu é? Eu queria que todos soubessem. Eu queria que tu fosse reconhecida por tudo.
— Eu sei, Léo... — suspirei, cruzando os braços. Mas tem dias em que eu só queria ser a advogada Juliana, não a mulher trans, não tua namorada, não um símbolo de resistência. Só a profissional. Só eu. Eu quero ser reconhecida pelo que faço. Pelos resultados. Pelos processos. Pelo meu trabalho. Não preciso que o escritório saiba com quem eu durmo pra saber meu valor. Ele ficou em silêncio. Eu continuei:
— E quanto a esse "vai casar comigo"... — fiz aspas com os dedos —, seria bom que a gente conversasse antes, né? Porque até onde eu sei, pedido de casamento é algo íntimo, não anúncio de empresa. Vi nos olhos dele o arrependimento. A tristeza.
Ele franziu a testa, surpreso.
— Ju... eu não pensei que te incomodaria. Mas eu precisava falar aquilo. Tu não é só minha namorada. Tu é parte da alma disso aqui. Eles precisavam saber quem tu é. Eu só… queria que tu soubesse que eu tô contigo. Que não tenho medo de mostrar isso. Que tu é tudo pra mim.
— Eu sei, Léo. Mas eu quero que as pessoas saibam disso quando eu escolher mostrar. E quando a gente decidir, juntos, como viver isso.
Ele assentiu, compreendendo.
— Eu errei.
Ele se aproximou e pegou minha mão com delicadeza.
— Me perdoa se eu te expus. Eu só queria que todos entendessem quem é a mulher extraordinária com quem eu divido minha vida. Eu sorri de leve, mas os pensamentos pesavam.
— Vou dar uma volta... preciso esfriar a cabeça.
Leonardo apenas assentiu, me acompanhando com o olhar até eu desaparecer pelo corredor. Desci até o fumódromo (toda empresa que se preze tem um cantinho do cigarro kkk). Já fazia tempo que eu não fumava. Desde a faculdade, era algo que eu só fazia em momentos extremos. A tensão da manhã tinha me deixado à flor da pele. Chegando ao fumódromo, encontrei Matheus encostado na parede, cigarro entre os dedos, o olhar perdido no pátio. Ele me olhou surpreso.
— Doutora... não sabia que a senhora fumava.
— Nem eu, sorri fraco. Só em dias como hoje.
Ele riu de canto e fez um gesto oferecendo o isqueiro. Acendi meu cigarro e ficamos alguns segundos em silêncio. O barulho da cidade abafado pelas paredes do prédio. Até que ele soltou:
— É verdade aquilo que o doutor Leonardo disse? Que vocês estão juntos?
Olhei de lado, puxei o cigarro devagar antes de responder:
— É verdade. A gente está junto sim.
Ele assentiu, como quem digeria uma informação importante.
— Achei bonito. O jeito que ele falou... parecia muito sincero.
— Foi — respondi, com um leve sorriso. E nós dois se conhecemos na faculdade, sabia? Ele arqueou as sobrancelhas, curioso.
— Sério?
— Sério, dei outra tragada antes de continuar.
— A gente se conheceu no ultimo semestre da faculdade. Eu ainda era conhecido por Juliano. Um dia, eu estava no intervalo das aulas, sozinho, fumando e ele veio me pedir um cigarro.
— Clássico. — Matheus sorriu.
— Pois é.
— E vocês ficaram amigos?
— Na época, nem tanto. Algumas semanas depois fizemos um trabalho de faculdade juntos em que tiramos uma das melhores nota da turma. Depois da aula saimos para comemorar e começamos a nos conhecer melhor. A vida separou a gente depois. Quando comecei a trabalhar aqui eu nem sabia que o Doutor Leonardo era filho do doutor Airton. Mas o destino, Matheus... ele gosta de brincar.
Nos entreolhamos. Um silêncio confortável se instalou. Eu terminei o cigarro e o esmaguei no cinzeiro.
— Bom... hora de voltar. A gente tem uma pilha de processos pra revisar.
Ele apagou o dele também e sorriu:
— Tô contigo, doutora.
Nos dias que seguiram à reunião, o clima no escritório mudou. Não era nada explícito, nem escancarado, mas os olhares diziam mais do que as palavras. Alguns colegas passavam por mim e abaixavam os olhos, como se estivessem pisando em ovos. Outros sorriam de forma contida, um pouco sem jeito, tentando demonstrar empatia. E havia aqueles que, com sinceridade, se aproximavam com palavras doces.
— Doutora Ju… só queria dizer que admiro muito a sua força. De verdade. — disse uma das assistentes, me entregando uma pilha de petições.
— Obrigada, minha flor. — respondi com um sorriso calmo, mesmo que por dentro eu ainda estivesse digerindo tudo.
O mais curioso, no entanto, era como as pessoas agora me observavam com mais atenção. Antes, eu passava pelos corredores como qualquer outra advogada do escritório — elegante, firme, centrada. Mas agora, parecia que tudo em mim havia ganhado uma nova lente: o salto que eu usava, o batom sempre impecável, os gestos delicados, a maneira como eu conduzia uma reunião ou como revisava um processo. No café, uma dupla de advogados cochichava algo assim que eu entrei. Quando me notaram, emudeceram.
— Bom dia. — disse, olhando nos olhos dos dois.
— Bom dia, doutora! — responderam em uníssono, apressadamente.
Um deles me lançou um sorriso envergonhado. Mas nem tudo era desconforto. Teve também a colega da área cível que passou por mim na copa, me entregando um papel esquecido na impressora e, com um olhar genuíno, comentou:
— Queria te dizer que você inspira muita gente aqui. Não só por ser quem você é, mas por como você é. Aquilo me tocou profundamente. Sorri de volta, agradecida. Já Matheus… ele também parecia sentir a mudança. As pessoas olhavam diferente pra ele. Uns com uma pontinha de desconfiança. Outros com sarcasmo escondido nas entrelinhas. Eu percebia. No primeiro dia, ao entrarmos juntos na sala de reunião, uma das estagiárias mais antigas sussurrou algo no ouvido de outra e ambas riram abafado. Fingi não ver. Mas Matheus notou. E ficou quieto, mais do que o normal. À tarde, ele me ajudava com a organização de uns arquivos antigos quando comentou, de forma leve, como quem quer sondar:
— Doutora… você acha que tem gente aqui pensando besteira sobre mim… sobre a gente?
Parei por um instante, olhei nos olhos dele.
— Acho que as pessoas pensam o que quiserem, Matheus. A gente só precisa saber quem somos. O resto é ruído.
Ele assentiu devagar, pensativo, com um meio sorriso.
— É. Faz sentido.
Ao longo da semana, percebi que ele começou a se portar de maneira mais cuidadosa. Ainda fazia perguntas, ainda observava minhas roupas, maquiagem, jeito de andar… mas agora era mais contido, mais atento aos olhares ao redor. Mesmo assim, não deixou de demonstrar respeito. E, ao seu jeito, carinho também. Enquanto isso, Leonardo fazia questão de agir naturalmente comigo, sem alterar nossa rotina. Ele me chamava de “doutora” no ambiente profissional, mas nos momentos certos — numa troca de olhares rápida, num toque de mão ao passar um processo, num bilhetinho deixado na minha agenda — ele me lembrava que eu era muito mais do que uma sócia. Eu era a mulher da vida dele. E, com tudo isso acontecendo… eu sabia que algo estava sendo gestado. Algo ainda maior. O que quer que viesse, eu estava pronta para enfrentar.
Os dias que antecederam aquele fim de semana foram um verdadeiro vendaval emocional. Eu ainda sentia os efeitos da nova dosagem dos hormônios — meu corpo parecia viver um turbilhão próprio, misturado a um estresse que se acumulava com o cansaço e a pressão da rotina intensa. Não bastasse isso, naquela semana eu e o Leonardo tivemos a nossa pior briga. Não era uma discussãozinha qualquer. Foi feio. Aquelas diferenças que às vezes surgem entre dois profissionais apaixonados pelo que fazem, que sabem exatamente o que querem e como querem, explodiram. Divergimos em tudo: estratégia em um processo importante, decisões financeiras do escritório, e até pequenas coisas do nosso dia a dia em casa viraram munição.
— Tu sempre quer controlar tudo, Léo! — eu disse, tentando conter o choro.
— E tu sempre se fecha, Ju! Não dá espaço pra ninguém te ajudar!
— Você não confia nas minhas decisões?
— Não é isso! — Léo respondeu, já impaciente.
Aquela troca de palavras duras se estendeu por horas. Depois virou silêncio. Um silêncio doído. E, por minha parte, persistente. Passei dias sem dirigir a palavra pra ele. Respondia apenas o essencial no trabalho, com o mínimo de cordialidade. Em casa, mal olhava em sua direção. Dava gelo, um gelo tão intenso que até me gelava por dentro. E ele sentia. Dava pra ver no olhar dele. Na sexta-feira, encontrei um envelope na minha gaveta. Dentro, um bilhete: “Hoje, às 20h. Restaurante La Vinha. Música ao vivo. Vai ser bom. Vista algo que te faça sentir a mulher mais poderosa do mundo. Beijo, Léo”. Não respondi. A verdade é que, por mais magoada que eu estivesse, algo em mim queria escutá-lo.
Terminei o expediente e fui para casa. Léo ainda ficou mais um pouco no escritorio. Resolvi ir ao tal restaurante. Escolhi um vestido vermelho profundo, com um decote ousado e uma fenda lateral que revelava minhas meias arrastão. O batom, claro, era vermelho sangue. Salto agulha. Perfume intenso.
O lugar era aconchegante, à meia luz, com uma pequena banda no canto tocando um jazz gostoso, suave. O restaurante tinha um clima quase mágico, desses que embriagam os sentidos. Leonardo já estava lá, arrumado, elegante, com aquele olhar que sempre misturava desejo e ternura. Sentei. Ele se levantou, puxou a cadeira pra mim. Eu agradeci com um aceno discreto, sem um sorriso. A noite começou tensa. Ele tentou conversar, comentar sobre o dia, o escritório, até o vinho que escolheu — e eu apenas respondia com monossílabos ou olhares curtos. Ele suspirou algumas vezes. Estava sentindo o peso daquele silêncio, da minha distância.
— Eu já volto — disse, se levantando calmamente. Vi quando ele caminhou até o fundo do restaurante. Achei que fosse ao banheiro. Mas não. Ele subiu ao pequeno palco, trocou algumas palavras com o tecladista, pegou o microfone, e então ouvi a introdução suave da música começar:
Eu sou o brilho dos teus olhos ao me olhar
Sou o teu sorriso ao ganhar um beijo meu
Eu sou teu corpo inteiro a se arrepiar
Quando em meus braços, você se acolheu
Eu sou o teu segredo mais oculto
Teu desejo mais profundo, teu querer
Tua fome de prazer, sem disfarçar
Sou a fonte de alegria, sou o teu sonhar
Eu sou a tua sombra, eu sou teu guia
Sou teu luar em plena luz do dia
Sou tua pele, proteção, sou teu calor
Eu sou teu cheiro a perfumar o nosso amor
Eu sou tua saudade reprimida
Sou teu sangrar ao ver minha partida
Sou teu peito a apelar, gritar de dor
Ao se ver ainda mais distante do meu amor
Sou teu ego, tua alma
Sou teu céu, o teu inferno, a tua calma
Eu sou teu tudo, sou teu nada
Minha pequena, és minha amada
Eu sou teu mundo, sou teu poder
Sou tua vida, sou meu eu em você
A voz dele, doce e rouca, tremia um pouco no início. Mas bastaram os primeiros versos para prender todos os olhares do restaurante — principalmente o meu. Eu congelei. Eu amo Victor e Léo. Eu amo essa música...
O Leonardo que cantava ali era o mesmo que tinha me acolhido desde a faculdade, o mesmo que me chamava de “advogata” com um brilho safado no olhar, o mesmo que me puxava pra dançar na cozinha com a panela no fogo. E enquanto ele cantava, não era apenas a letra. Era tudo que ele nunca conseguiu colocar em palavras naquele nosso silêncio. Quando a música terminou, ele agradeceu com um sorriso tímido e desceu do palco, caminhando de volta até mim. Se ajoelhou ao meu lado, ali mesmo, entre os olhares dos outros clientes, e tirou uma caixinha de veludo do bolso. O restaurante inteiro se calou.
— Doutora Juliana… Ju… minha advogata… meu amor, minha mulher, minha força… desculpa. Por tudo. Por não te ouvir como devia. Por não te acolher do jeito que você sempre me acolhe. Eu sei que somos diferentes, mas é nessa diferença que eu encontro sentido. Eu te amo. E quero passar o resto da vida contigo. Casa comigo?
Minhas mãos tremiam. O coração estava um caos. Respirei fundo, e com a voz embargada, soltei:
— Tu é um idiota, Leonardo.
Ele sorriu, emocionado, com os olhos marejados.
— Mas eu sou tua. É claro que eu aceito. Aplausos tomaram o restaurante. E a gente se abraçou ali, com força, no meio do salão. O beijo veio em seguida, cheio de gosto de reconciliação, de perdão, de amor. Ali, entre lágrimas, riso e música, começava um novo capítulo da nossa história.