NARRAÇÃO - ETHAN
Quem diria: eu estou namorando. E, de quebra, fiz uma amiga. Quer dizer, a Betty parece um fantasma ao meu redor. Ela quase não interage, pois está quase sempre com um livro nas mãos. O tema favorito da minha amiga é bruxaria. Se os meus pais descobrirem as minhas duas últimas aquisições, eu vou direto para o centro de cura gay.
A Betty parece não se importar com os comentários que as pessoas fazem sobre suas roupas e seu jeito de ser. Eu deveria fazer o mesmo, não é? Pena que sou um covarde. Estamos aproveitando um tempo livre no jardim da escola. Os dois jogados na grama, aproveitando o sol, já que não é todo dia que o clima fica agradável neste lugar.
— Oi, pessoal. Tem espaço para mais um? — Pergunta Jimmy, nos pegando de surpresa.
— Oi, Jimmy. — Digo, levantando de tão nervoso.
— Se joga, parceiro. Só não quero muito barulho. Estou no capítulo da troca de corpos. — Pede Betty, sem tirar os olhos do livro.
— Senta. — Aponto para o chão, sentando junto com Jimmy.
Que coisa estranha. Eu nunca tive um namorado. Eu pergunto sobre o clima agradável? Melhor não. Então voltamos a atenção para Betty e fazemos algumas perguntas sobre bruxaria. Pela primeira vez, a minha amiga demonstra interesse em interagir com outros humanos. Ela explica sobre a Wicca, que é uma religião baseada em práticas pagãs.
Na minha vida, fui ensinado que o único caminho é Jesus. Porém, Betty fala com tanta propriedade sobre a magia Wicca que me deixa interessado em pesquisar sobre o assunto. De acordo com a Betty, a Wicca enfatiza a conexão com a natureza e o respeito pela Terra. Eles acreditam na dualidade divina representada pela Deusa e pelo Deus, que são vistos como aspectos complementares do divino.
— E você já lançou algum feitiço? — Questiona Jimmy, que está de fato interessado na magia.
— Faço coisas pequenas. — Revela Betty, abrindo o livro e mostrando a imagem de uma moça sendo reverenciada pelos quatro elementos. — É mais sobre o nosso estado de espírito do que outra coisa e...
— Ei, Jimmy! — Trevor grita pelo melhor amigo. — Vem cá!
— É o Trevor. — Jimmy me olha antes de acenar para o melhor amigo. — Eu preciso ir. Betty, valeu pela aula. — Agradece, levantando-se e indo em direção ao Trevor.
— Ele deve ter virado a escola de cabeça para baixo. — Comenta Betty, pegando o livro e voltando à sua leitura.
— Como assim? — Questiono.
— O capitão do time de futebol com a desajustada/bruxa e o menino gay. Isso é estranho, né? — Ela joga a pergunta de volta para mim.
O menino gay. Ela disse que eu sou um menino gay. Será que ela sabe de algo? Eu devo desmentir? Betty continua olhando para o livro. Ela nem deve saber o que se passa dentro de mim agora. Eu quero vomitar. Eu quero desaparecer. Todos vão saber a verdade sobre mim.
— Ah, e sobre você ser gay, relaxa. Eu não sou a porra de uma homofóbica. E, se alguém mexer contigo, eu vou lançar um feitiço para matar o desgraçado. — Ela avisa, ainda concentrada no seu livro.
Era para a frase me deixar aliviado, mas nada me tira da cabeça que todos vão descobrir e serei obrigado a ir para o centro de conversão gay. Eles farão uma lavagem cerebral e não serei mais eu no comando, mas sim a personalidade que os meus pais vão escolher.
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NARRAÇÃO - JIMMY
— Você tá doido? — Questiona Trevor, colocando a mão no meu ombro.
— Sai fora. — Digo, o afastando. — Qual é a baboseira da vez?
— Você está andando com os esquisitões... Vai querer a Bettany no nosso grupo também? Já não basta o crentinho de araque. — Comenta Trevor, me balançando.
— Eles são gente boa, cara. Qual é, Trevor? Esse é o nosso último ano aqui. Eu cansei de seguir o que as pessoas ditam como certo — Afirmo, batendo três vezes no ombro dele. — Precisamos de mudanças, meu amigo. Vou pro treino — Digo, correndo na direção do estádio.
Após a cirurgia, meu pai sumiu de casa. Ele continua arredio e evita conversar comigo. Eu não reclamo. Espero que ele tenha aprendido a lição. E se eu tivesse morrido? Enfim... É melhor focar nos treinos e nas provas que se aproximam. Também preciso conseguir um trabalho para juntar dinheiro.
Quero viajar para um lugar distante, esquecer essa vida de cachorro e focar em crescer. Talvez eu faça faculdade de Educação Física e ache alguma escola para lecionar. Eu sou o responsável por treinar a maioria dos novatos, ou seja, ensinar é a minha praia.
Recentemente, recebi um e-mail de uma universidade comunitária que adorou o meu perfil. Nunca fui pirado em entrar em uma universidade de renome. Qualquer uma que me aceite e fique a mais de 10 mil quilômetros desta cidade, eu topo.
O treinador é outro que está pegando leve comigo. Minhas participações nos treinos são mínimas. Observo meus colegas e faço apontamentos do que funcionou ou não. Confesso que é muito chato. Não sabia que ia sentir falta do campo e de me sentir necessário.
Os encontros com o Ethan são mais suaves do que eu gostaria, mas, da última vez que transamos, senti uma dor desconfortável no abdômen, então achei melhor sossegar o facho. Só os lábios do meu namorado conseguem me manter satisfeito, por enquanto.
No intervalo, pego uma comida leve, mas não encontro nenhum amigo. Em uma das mesas, avisto o Ethan e a Betty. Sem pensar duas vezes, sento com eles. De repente, todos os alunos começam a nos olhar de maneira estranha; alguns comentam, outros só observam.
— O que é isso no seu prato? — Pergunto à Betty, que me encara de maneira engraçada. A comida dela parece ter sido atropelada por um caminhão.
— Macarrão de abobrinha. — Ela responde. — Pode ter certeza de que é melhor do que essa comida industrializada. Mas, quem está julgando, né? Se o futuro é a morte...
— A Betty sempre positiva e esperançosa — Comenta Ethan, e nós dois abrimos um sorriso.
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NARRAÇÃO - ETHAN
Estamos no porão da escola, longe do olhar alheio. Foi o Jimmy e o Trevor quem descobriram o lugar. Ele apareceu todo animado, dizendo que tinha achado um canto onde a gente podia ficar mais à vontade, sem ter que dar satisfação o tempo todo. O local parece ter sido esquecido desde os anos 90. As paredes estão descascando, tem um cheiro meio estranho de mofo misturado com coisa velha, e as luzes piscam de vez em quando. Mas, mesmo assim, é perfeito.
Tivemos que limpar um pouco, mas o local se transformou no nosso cafofo particular. Dizem que uma garota foi assassinada pelo zelador no porão; por esse motivo, a direção decidiu lacrar a área. Mas o Trevor conseguiu uma cópia da chave.
Como o melhor amigo do Jimmy não tem muitas namoradas, ele acabou ficando com a chave, e usamos a sala desde então. Eu adoro beijar o meu namorado. A boca dele é deliciosa e hipnotizante. É como se fosse um ímã que me puxasse para perto.
Aqui embaixo embaixo, a gente se sente invisível. Ninguém passa, ninguém olha, ninguém julga. É o único lugar onde posso segurar a mão do Jimmy sem medo, onde nossos beijos não precisam ser roubados às pressas no corredor ou escondidos atrás de uma pilastra. Aqui, dá pra respirar. Conversamos sobre tudo — às vezes coisas bobas, como séries que a gente vê escondido da família, e às vezes coisas mais pesadas, como o medo de alguém descobrir.
Hoje, por exemplo, falamos sobre a visita de um orientador foi até o colégio. Nós passamos por um teste vocacional e, segundo o resultado, tenho perfil para escritor. Na verdade, eu tinha um espaço online onde publicava meus textos e contos, mas, com certeza, os meus pais não aprovariam o estilo de escrita.
Um radiante Jimmy aparece e mostra o seu resultado. Certeza que o meu namorado recebeu orientação em profissões como jogador ou educador físico.
— Educação física? — Questiono ao ver o papel.
— Sim.
— Acertei! — Exclamo. — Imaginei essa opção ou jogador de futebol, sei lá, algo do tipo. — Comento, pois realmente achava isso.
— Sei lá, eu gosto de futebol americano, só não é algo que me imagino fazendo a longo prazo. — Ele explica e me pressiona contra a parede. — Mas tem algo que eu gostaria de fazer a longo prazo. — Confessa, me beijando no pescoço. Deixo a mochila cair no chão. — E isso também — Diz, me beijando na boca.
De repente, senti uma fisgada. Não sei como aconteceu, mas, em um momento, eu beijava o Jimmy e, ao abrir os olhos, quem me beijava era a Betty.
— O que está acontecendo aqui? — Pergunta o diretor, que está acompanhado de alguns homens. — James? — Questiona ao ver Jimmy ao nosso lado.
— Opa. — Solta Betty, com cara de debochada, enquanto limpa o batom preto que está na minha boca. — Desculpa, diretor. Eu tava mostrando ao Ethan como é que se beija de verdade. Espero que não tenha problema.
— Os três para a diretoria! Agora! — Grita o diretor, apontando para a porta. — Desculpem, senhores. Esses alunos estão cada dia mais fora de controle. — Então, percebo que existem três homens ao lado dele. Meu Deus, estou muito ferrado.
Subimos os três em silêncio. O diretor continua fazendo companhia para os homens estranhos. Eu quero morrer. Será que ele viu o meu beijo com o Jimmy? No meio do caminho, a Betty explica que já usava aquela sala para tentar convocar a aluna morta e estava dormindo quando nos viu chegar.
— Vocês são muito lentos. Eu vi a silhueta do diretor abrindo a porta e não tive outra reação. Inclusive, Ethan, você beija bem, hein. — Ela pisca na minha direção. — Pensando pelo lado positivo, a fuinha do diretor não viu o amasso de vocês. E não se preocupem comigo. Para quem eu vou contar? Para a aluna morta?
— Obrigado, Betty. — Digo, mas meu coração parece que vai sair pela boca. É a primeira vez que vou para a diretoria. O que vai acontecer?