O frio persistia como um lembrete constante de que estavam longe de casa. Atravessando trilhas vazias e caminhos esquecidos pelo tempo, o grupo de jovens heróis seguia rumo a Kinopla. Até aquele ponto da jornada, não havia sinal de ataque, emboscada ou qualquer informação nova. Era como se o mundo ao redor os observasse em silêncio, esperando algo. Nenhum plano sólido, nenhuma estratégia concreta. Apenas a esperança simples — e desesperada — de chegar e resgatar os pais.
Durante as paradas, Clarissa se afastava do grupo para treinar. Estava determinada a dominar seus poderes, mas o progresso era lento. Ela conseguia levitar por alguns segundos, sentia a leveza tomar seu corpo, mas logo perdia o equilíbrio e caía no chão. Mesmo assim, não desistia.
— Parece que as melhores habilidades ficaram com as meninas. — Comentou Bartolomeu, observando a amiga com os olhos semicerrados. — Magia e voo? Quem não quer isso?
— Prefiro ter força. — Retrucou Julius, com um sorriso largo e confiante. — Viu como a gente deu uma surra naquelas caveiras?
Ele abriu os braços, gesticulando com entusiasmo, e acabou acertando Romeu de leve.
— Desculpa. — Lamentou, envergonhado.
— A gente se acostuma. — Respondeu Romeu, com um meio sorriso que arrancou risadas dos amigos.
O clima, por um instante, pareceu mais leve. As lembranças de aventuras passadas emergiram.
— Precisava ver nas nossas férias, Romeu. — Contou Bartolomeu, rindo ao lembrar. — Julius era um acidente ambulante.
— Bartolomeu! — Exclamou Catherine, em meio a um acesso de riso. — Nossa, lembra do tio Eron?
Clarissa arqueou as sobrancelhas, curiosa.
— O que o Julius fez de tão terrível?
— Foi culpa dele. Ok? — Retrucou Julius, cruzando os braços antes de cuspir no chão.
— O que ele fez?! — Romeu perguntou, rindo com antecipação.
Bartolomeu sorriu, saboreando a lembrança.
— O tio Eron chegou com uma bandeja de champanhe para nos receber. Aristocrata maldito. Aí o Julius tropeça nele. O tio caiu da escada. Desde esse dia, somos banidos da casa dele.
— Só por isso? — Romeu pareceu surpreso.
— Não foi só isso. — Interveio Catherine, ainda sorrindo. — O tio tinha uma coleção de vasos raros, do mundo inteiro. Peças únicas.
— Julius tentou ajudar, escorregou de novo… — Completou Bartolomeu, contendo o riso.
— Ele derrubou a coleção inteira. Setecentas peças. "Seu endiabrado!" — Bartolomeu imitou o tio, arrancando gargalhadas de todos.
Todos... menos Mitty. O príncipe levantou-se de súbito, irritado.
— Querem parar de rir?! — Gritou, afastando-se em direção às tendas.
— Calma, realeza. — Murmurou Bartolomeu, indo atrás dele.
Julius trocou um olhar com Romeu. A mensagem era clara: não valia a pena se envolver naquilo. O clima entre eles já estava instável o suficiente. Comprar briga com o príncipe de Framon não ajudaria em nada.
Com o silêncio que se seguiu, o grupo desmontou o acampamento e seguiu floresta adentro. O terreno ficava cada vez mais íngreme, mas os poderes dos jovens tornavam a jornada mais fácil. Ninguém reclamava. Pelo menos não em voz alta.
Depois de horas de caminhada, encontraram um vilarejo escondido entre as colinas. Dessa vez, não havia sinais de destruição ou medo. O povo os recebeu com sorrisos e até ofereceram abrigo.
A casa destinada ao grupo ficava no centro da vila. Era uma construção de dois andares, imponente, com sete quartos e uma varanda ampla. Ao entrarem, depararam-se com uma mesa farta — mais do que podiam sonhar nos últimos dias.
Começaram com um caldo espesso de frutos do mar. Depois, carne de cordeiro assada, suculenta e macia. Comeram como se não houvesse amanhã. E repetiram.
— Isso é um banquete! — Disse Romeu, maravilhado.
— Depois de tanto pão seco e raízes amargas, merecemos. — Afirmou Catherine.
Quando terminaram, Gerfo, o responsável pela vila, apareceu. Era um homem robusto, de sorriso fácil e olhos atentos. Conduziu um pequeno tour pela casa, apontando cada cômodo com orgulho.
Julius, silencioso até então, se perdeu nas lembranças. A decoração da casa, o cheiro da madeira, os retratos antigos — tudo o fazia lembrar de casa.
— Gerfo, meu amigo, mais uma vez, obrigado pela hospitalidade. — Agradeceu Bartolomeu, apertando o ombro do homem.
— Claro! Precisando de qualquer coisa, me chamem. Vou trancar a porta. De madrugada, esse lugar vira um gelo. — Avisou Gerfo. Já na porta, virou-se com um sorriso malicioso. — Aproveitem a noite.
Assim que ele saiu, Bartolomeu voltou sua atenção para Mitty. Algo estava errado. Em menos de três dias, o príncipe perdera o brilho dos olhos. Estava pálido, inquieto. Eles conversaram por um tempo. Mitty, com a voz firme, assegurou que estava tudo sob controle. Mas Bartolomeu não acreditou.
A noite parecia tranquila quando os jovens se recolheram aos seus aposentos. Quer dizer, quase todos. Romeu, tomado pela paixão, deixou discretamente seu quarto e, na ponta dos pés, dirigiu-se ao quarto de Julius. O guerreiro mal podia esperar para estar ao lado do amado.
Mas o que nenhum deles sabia era que a casa era, na verdade, uma armadilha cuidadosamente arquitetada por Cen. Como uma entidade viva, uma fumaça verde se espalhava sorrateiramente pelos cômodos, infiltrando-se nas frestas e atravessando as portas. Romeu passou por ela sem sequer perceber.
No quarto ao lado, Clarissa teve o sono interrompido por um ruído vindo da parede. Curiosa e inquieta, levantou-se da cama e aproximou-se para ouvir melhor. O som tornava-se mais intenso... até que, de súbito, dezenas de aranhas começaram a sair pelas frestas da madeira. Ela gritou. Tentou abrir a porta, mas estava trancada.
Aterrorizada, lembrou-se de seus poderes e, com esforço, levitou para escapar das criaturas venenosas que cobriam o chão.
No corredor, o silêncio era tão profundo que Bartolomeu dormia como uma pedra. Só foi despertado por uma grande explosão. Sonolento, cambaleou até ficar de pé e agarrou a espada instintivamente. O cheiro de fumaça confirmou suas suspeitas: havia um incêndio.
— Isso é fogo!!! Fogo!!! — Gritou, correndo até a porta, queimando-se na maçaneta. — Deus! Socorro! Julius, Catherine, a casa está pegando fogo!!! Abram! — tossia entre os gritos, engasgado pela fumaça densa.
Enquanto isso, Catherine Mazzaro sonhava com o príncipe Mitty. Em meio ao sonho, sentiu cócegas em seus pés e despertou assustada. Estalou os dedos, acendendo a vela com magia, e deparou-se com Mitty em pé à sua frente.
— Calma, Cathy. Sou eu. — Disse ele, sorrindo de forma estranhamente sinistra.
— Mitty?! O que está fazendo aqui? Não estou em trajes decentes! — Protestou, puxando os lençóis para se cobrir.
— Eu confio em você... mas estou apaixonado pelo Julius. — Revelou, com um brilho estranho nos olhos.
— O quê?! — Mal teve tempo de reagir. Mitty desembainhou a espada e a apontou para ela.
— O que significa isso, Mitty?! — Questionou a moça, lançando um feitiço de proteção às pressas.
A feição do príncipe começou a se distorcer. Sua pele tornou-se escamosa, os olhos reptilianos. Diante dela, não estava mais um humano, mas uma criatura réptil monstruosa. Catherine, desesperada, lançou esferas de energia, mas nenhuma fazia efeito.
No outro quarto, o verdadeiro Mitty despertava de um tormento mental. As vozes em sua cabeça, fruto do veneno de Cen, estavam ficando cada vez mais intensas. Precisando de ar, desceu até a porta principal, mas encontrou tudo trancado — portas, janelas, até a luz parecia apagada pela própria casa.
— Mas que inferno! — Rosnou, tentando abrir as janelas bloqueadas por tábuas. — Quem colocou isso aqui?
Sem sucesso, foi de quarto em quarto, batendo e chamando. Nenhuma resposta.
Enquanto isso, no quarto de Julius, ele e Romeu conversavam em tom íntimo, distraídos em seu próprio mundo. O bater na porta os sobressaltou.
— Se esconde. Debaixo da cama. — Pediu Julius, apressado.
— Tudo bem. — Romeu deslizou silenciosamente para debaixo da cama.
— Oi? — Julius abriu a porta e ficou cara a cara com Mitty.
— Mata ele! — Ordenou uma voz na mente de Mitty. Ele lutou para resistir.
— Mitty? — A cara de Julius era de poucos amigos.
— Tem algo errado. A casa está toda trancada. Ninguém responde.
Julius correu até o quarto de Bartolomeu e tentou forçar a porta. Romeu, preocupado, saiu do esconderijo.
— O que houve? — Quis saber Romeu, sem se importar com a presença de Mitty.
— Mata eles, Mitty. Você não quer essa raça dominando o mundo! — A voz insistia, enquanto Mitty suava em tensão.
— As portas não abrem, ninguém responde. Meus poderes não funcionam. — Explicou Julius.
— Cala a boca!!! — Gritou Mitty, agarrando a cabeça com as mãos.
— Tem algo de errado com essa casa... — Murmurou Mitty, os olhos assombrados.
Os três correram para a sala e confirmaram: todas as saídas estavam seladas. Romeu tentou remover uma tábua da janela, mas, mesmo com força sobre-humana, não conseguiu.
Voltaram ao corredor e forçaram, juntos, a porta do quarto de Bartolomeu. Encontraram o guerreiro dormindo profundamente, indiferente ao caos. Tentaram acordá-lo, em vão. O mesmo aconteceu nos quartos de Catherine e Clarissa. O que os alarmou foi a expressão de sofrimento no rosto dos amigos adormecidos.
— Deve ser algum tipo de feitiço. — Disse Julius, tentando manter a calma.
— Precisamos sair dessa casa. — Completou Romeu.
— Mate-os! Agora! — A voz berrava na mente de Mitty.
A única rota livre era a chaminé. Estreita demais para Romeu ou Mitty. Julius seria o único capaz.
— Julius é perigoso. Mate-o. — Sibilava a voz, cada vez mais agressiva.
Mitty começou a tirar a armadura, ficando apenas de ceroulas. As vozes chamavam-no de covarde.
— Vai dar uma olhada nos outros, por favor... — Romeu pediu.
— Não me dê ordens, maricas. — Respondeu Mitty, subindo as escadas, visivelmente alterado.
— Maldito. Teve a oportunidade perfeita. — Zombava a voz.
— Me deixem! — Implorou Mitty antes de desmaiar.
— É arriscado. Não vá. — Pediu Romeu a Julius, acariciando seu rosto.
— Tem algo muito errado aqui. Precisamos descobrir. — Julius beijou-o e, decidido, foi até a chaminé.
— Por favor... cuidado. — Sussurrou Romeu.
— Estou pronto. — Olhando para cima. — Cadê os limpadores de chaminé quando precisamos deles? — Brincou Julius, tentando manter o ânimo.
Subiu pela chaminé e, apesar de sujo e coberto de fuligem, saiu ileso. O vilarejo, porém, estava deserto. Nem uma alma viva. Nenhuma luz. Nenhum som.
Até que ouviu um ruído vindo de uma construção maior. Espada em mãos, aproximou-se. No porão, encontrou dezenas de pessoas dormindo, como em transe.
— Gostou do meu trabalho? — Uma criatura, com aparência de coelho demoníaco, surgiu das sombras. — Me chamo Morfeus. Sou o seu pior pesadelo.
— Mais uma criatura horrenda de Cen, que criativo. — Soltou Julius, empunhando a espada, pronto para lutar.
Morfeus pairava no ar, cercado por névoas ondulantes e sombras que pareciam sussurrar horrores. Seus olhos penetrantes se voltaram para Julius, e sua voz, arrastada e cruel, ecoou com malícia:
— Tenha cuidado, garoto. — Alertou ele, enquanto estendia a mão em um gesto místico.
Diante de Julius, o cenário se transformou. Uma visão angustiante tomou conta de seus olhos. Clarissa tremia, envolta em pavor. Aranhas grandes e grotescas subiam umas sobre as outras, formando uma escada viva, tentando alcançá-la. Seus gritos abafados e olhos marejados cortavam o coração de qualquer um.
Mais adiante, Bartolomeu jazia inerte no chão, envolto em fumaça espessa. Tossia, sufocado, inconsciente, vítima de um incêndio fora de controle.
E Catherine... Catherine corria por sua vida, escapando por pouco das investidas de um réptil colossal que surgia das sombras, escamoso e sedento por destruição.
— Se algo acontecer comigo... os teus amiguinhos ficarão presos nesses pesadelos para todo o sempre!!! — Rosnou Morfeus, antes de desaparecer em uma espiral de fumaça negra, deixando Julius imóvel, tomado pelo desespero.
— Droga. Deve haver um jeito. — Murmurou ele, o medo martelando forte no peito.
— Você pode derrotá-lo. — Contou uma voz anasalada surgida das sombras.
Julius virou-se num sobressalto. Uma criatura de olhos grandes e expressão assustada emergiu.
— Fique longe! Quem... quem é você?!
— Sou Klaudo. Me escute. Temos pouco tempo. Existe uma maneira de quebrar os sonhos de Morfeus. Precisa pegar o colar que está no pescoço dele. Ele prende as pessoas lá. — Explicou o estranho, antes de sumir da mesma forma enigmática com que apareceu.
— Espere!! — Pediu Julius, estendendo a mão, mas era tarde demais. — Ok... roubar o colar. Entendi.
Com o coração em disparada, Julius deixou a casa. Mas assim que pisou no lado de fora, foi surpreendido por um novo terror: uma horda de caveiras o aguardava, imóveis, com olhos vazios e intenções assassinas.
Sem escolha, ele empunhou sua espada. O brilho da lâmina parecia mais vívido do que nunca. Um a um, os monstros avançavam, e Julius, com coragem e precisão, derrubava cada um. O confronto foi brutal, mas ele venceu.
Com as mãos sujas de poeira e suor, correu até a casa onde seus amigos estavam presos. Arrombou a porta e encontrou Romeu e Mitty.
— Eu vou matar esse monstro! — Avisou Mitty, impulsivo, tentando sair.
Mas Romeu o segurou firmemente pelo braço.
— Escuta só. — Disse Romeu, encarando o príncipe. — Sabemos que você tem um problema com a nossa relação, mas o que está em jogo aqui é a vida dos nossos amigos. Pessoas que todos amamos.
Empurrou Mitty na direção de uma cadeira. Sem argumentos, ele se sentou.
— Ajude a gente ou fique quieto.
***
Enquanto isso, nas montanhas distantes de Kinopla, o desespero tomava conta dos pais dos jovens. No castelo de Cen, Celdo andava em círculos, consumido pela angústia. Culpava-se. Foi ele quem denunciou Cen no passado — e agora, aquele erro parecia ter dado origem ao monstro que ameaçava seus filhos.
— O motivo não é esse. — Disse Nilo, pousando a mão no ombro do amigo. — Cen já era mal antes de tudo. A denúncia apenas revelou o que já existia nele.
— Tenho medo que isso aconteça com Julius.
— O seu filho tem defeitos, mas jamais um coração cruel. Ele luta pelo bem, mesmo quando tudo está contra ele. — Afirmou o rei, com sinceridade. As palavras fizeram Celdo desabar em lágrimas.
Mas a paz daquele momento foi destroçada por uma voz familiar e odiosa.
— Que papinho chato. — Zombou Cen, que escutava cada palavra. — E saiba que não me interesso mais por você.
Num gesto cruel, lançou Celdo várias vezes contra a parede. Melody tentou intervir, mas seus poderes não surtiram efeito.
— O sofrimento de vocês está apenas começando. — Contou Cen, revelando em sua bola de cristal os horrores vividos por Bartolomeu, Catherine e Clarissa.
— Cadê o Julius? — Perguntou Celdo, entre feridas e respiração falha.
— Essa é a melhor parte. — Respondeu Cen, sorrindo. — Vai morrer. Envenenei o filho do Rei Nilo. Ele fará o trabalho por mim.
— Mitty nunca faria isso! Seu monstro! — O Rei Nilo gritou, agarrado às barras da prisão.
— Verdade. Ele não vai matar o Julius. Mas vai trazê-lo até mim. E, nesse momento, querido Celdo... você vai saber o que é sofrimento. Afinal, como você mesmo já pensou: um maricas não merece viver. Com um gesto violento, arremessou Celdo mais uma vez.
— Me mate. Acabe com a minha vida. — Implorou Celdo, rastejando.
— Mas qual seria a graça? — Respondeu Cen, entrando na cela, pegando Celdo pelo pescoço. — Quero te ver sangrar... pelos olhos e pela alma. — Sumindo em uma nuvem verde, deixando o homem caído e derrotado.
***
De volta à casa, Julius tentava montar um plano. Pegou uma xícara e começou a improvisar.
— Então... esse sou eu. — Apontou para a xícara. — Esse é o Romeu. — levantou uma faca. — Esse é você. — pegou uma coxa de frango, estendendo-a para Mitty.
— Eu sou o pedaço de frango comido? — Reclamou Mitty.
— Preste atenção no plano.
— O Romeu ou você não podem ser o pedaço de frango? — Questionou o príncipe, quando as vozes começaram a ecoar de novo em sua cabeça.
— Mate-os! Mate-os!
Julius revirou os olhos.
— Tá. Você é a xícara. Romeu é o copo. Eu sou a colher. Posso continuar agora?!
Mas o inesperado aconteceu.
Mitty levantou-se subitamente, puxou uma flecha da aljava e preparou o arco. Julius e Romeu se ergueram, alarmados.
— Tarde demais. — Afirmou Mitty, os olhos vazios, a flecha já voando em direção ao casal.